sábado, 26 de maio de 2012

Língua morta



Palavras me devoram como se saíssem dos olhos da esfinge. Decifrar-lhes as origens, os sentidos, os usos, é questão de vida ou morte, desde quando eu era criança perdida nos “por quês”.

Por isso, e também para aplacar o analfabetismo, vivo entre dicionários. Da língua portuguesa são diversos, a começar de uma edição antiga do Caldas Aulete, presente de meu avô, chegando aos populares Aurélio e Houaiss.

O Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha; e o Dicionário Analógico, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, com prefácio de Chico Buarque, não poderiam faltar.

Guardo compilações lexicais em latim, grego, inglês, francês, espanhol, tupi-guarani, que servem de antídoto a curiosidades pontuais, mesmo diante das facilidades do “professor” Google.

O xodó, no entanto, são os específicos: Calepino Potiguar, de Raimundo Nonato da Silva; Dicionário do Folclore Brasileiro, de Cascudo; Dicionário do Palavrão e Termos Afins, a Língua na Boca do Povo e Nomes Próprios Pouco Comuns, os três de Mário Souto Maior.

Encontrei em Natal, na última sexta-feira, adquirindo-a imediatamente, a obra Língua Morta - Palavras que Sumiram do Mapa. O autor é o jornalista Alberto Villas, de Belo Horizonte, terra maravilhosa onde aprendi que a mineira caminha à mineira sobre o coração dos homens, e até o mais prevenido, o mais cauteloso, se abestalha.

O livro é uma belezura na escrita, nas feições gráficas e no preço, trinta e poucos reais. Grande pesquisa, com orelhas puxadas por Max Gehringer.

O problema, meu e não dele, é que, lendo essa espécie de obituário linguístico, descobri que estou morto e não sabia, pois ainda uso, por exemplo, abafar no sentido de fazer sucesso, abarrotado para lugares cheios, abelhudo como sinônimo de curioso, abotoadura, acabrunhado, acamado.

Gosto de adular a mulher com quem sou amasiado, detesto gente afetada, não tomo dinheiro emprestado a agiota, considero-me um tanto ajuizado, conheci o velho alcaide Dix-huit Rosado, meus filhos costumam fazer algazarra antes de dormir e, ultimamente, tenho andado um tanto alinhado, a não ser nos alpendres da Mororó.

Sim, minha amásia me trata por amoreco quando estou amuado, porque não sabe contar anedota.

Os colunistas sociais daqui ainda escrevem sobre os babados, alguns amigos consomem bagulho, enquanto outros recitam poemas fesceninos, com palavras de baixo calão.

Já frequentei o baixo meretrício e o barangas.com, no tempo em que o barão pagava muita coisa, inclusive o carro de praça com destino à estrada de Baraúna.

Ah, na casa de minha avó, que sempre foi gente boa e nunca deu cascudo nos netos, tem janela basculante.

Dar bandeira, dar no couro... emburrado, encher linguiça... fajuto, ferro-velho... goiaba, grudada... indecência, inhaca... jaburu, jararaca... labuta, lascado...

Macarronada, maciota... nas coxas, negar fogo... ó do borogodó, obséquio... palerma, patota (aí, Carlos Santos!)...

Quinquilharia, quitute... roça, riscado... sabugo, sacou?... tamborete, tinindo... urinol, urticária... vaca-preta, varapau... xarope, xumbrega... zarolho, zombar...

E por aí vai, mas atenção: se essas palavras e expressões fazem sentido para você, tanto quanto para mim, sinta-se bem-vindo ao mundo dos mortos.

sábado, 19 de maio de 2012

LYON



Lyon, meu lugar predileto de Oropa, França e Bahia. Quando bate a tristeza, naquelas noites sem perspectivas, fecho os olhos e me sinto por lá, bebendo um scotch em francês.

 “Bom dia, tristeza. Que tarde, tristeza. Você veio hoje me ver”.

O coração é pequeno, mas o malte é puro e me leva a escorregar em lugares comuns, besteiras universais tipo dor de cotovelo, indecências, o ves...ti...do... da mulher que passa.

“Meu Deus, eu quero a mulher que passa!”.

Saudade das pequenas mortes. Se as palavras não me faltarem, talvez a tentação caia em mim e me arrebate na ilusão de um orgasmo. Se bem que aos 40, ninguém morre dessas coisas, no máximo desmaia.

“Tem o palor que irradia a estrela quando desmaia”.

Tinha 13 anos quando a primeira musa cravou-me ao Sol um gozo no centro da memória. De lá para cá, tirando as carícias do meu amor ausente, as lembranças são fortuitas. Tantas, também, fazer o quê?

“Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo”.

Cansado de acordar manhãs para escrever a história dos outros. Um dia, e me perdoem a sinceridade, direi apenas de mim. Pro inferno a universalidade que não me habitar.

“Para isso fomos feitos: para lembrar e ser lembrados”.

O Anjo Torto apareceu. Há eras não conversávamos. Falou de tristezas maiores que as habitantes desta página. Trouxe notícias do mundo de lá, da literatura, da poesia. Vai escrever sobre Vinícius de Moraes. Que inveja!




sábado, 12 de maio de 2012

Doutor Saraiva



Aprendi na escola de Vingt Rosado, meu saudoso avô, que solidariedade verdadeira manifesta-se espontânea e publicamente. Por isso, aqui estou, sem meias palavras, para hipotecar ampla, geral e irrestrita solidariedade ao desembargador Francisco Saraiva Dantas Sobrinho, apontado de maneira injusta como um dos envolvidos na operação “Sinal Fechado”.

Seu acusador, empresário Alcides Fernandes Barbosa, para fazer jus a benefícios da delação premiada, saiu-se com um absurdo. Segundo ele, o magistrado teria beneficiado a quadrilha, influenciado por João Faustino Neto, ao declinar da competência para julgamento de interesses do “Consórcio Inspar”, centro das falcatruas, remetendo o assunto à Justiça Federal.

Qualquer pessoa, com o mínimo discernimento jurídico, sabe que a decisão de Saraiva, ao contrário do que disse Alcides, foi ruim para os interesses da quadrilha. Benefício seria uma sentença favorável, na lata. A remessa do processo para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) acarretaria, sem dúvida, maiores dificuldades para o licenciamento pretendido.

Para início de conversa, o caso seria redistribuído eletronicamente assim que chegasse ao TRF5, podendo cair para qualquer dos integrantes daquela corte. Diante desse pormenor, e dizem que o diabo mora nos detalhes, estaria o delator premiado dizendo, indiretamente, que o Inspar influenciaria, além do nosso conterrâneo potiguar, 15 desembargadores federais.

Acompanho o trabalho de Saraiva desde o tempo em que, na condição de repórter policial, testemunhei seus esforços para consolidar um dos institutos mais importantes da Justiça mossoroense: o Tribunal do Júri Popular, espaço democrático em que cidadãos comuns decidem o destino de seus iguais envolvidos nos chamados “crimes dolosos contra a vida”.

De lá para cá, passados vinte e tantos anos, nunca ouvi comentário desabonador à conduta do magistrado e, diferentemente da interpretação de alguns colegas, considero as declarações de Alcides Fernandes como prova de que, se houve pressão, esta não produziu efeito, afinal, repito, a decisão “suspeita” fechou pelo menos um sinal para a turma do Inspar.

sábado, 21 de abril de 2012

As vaginas de Hazel Jones



Instigado pelo noticiário da “Folha de S.Paulo”, assisti à edição do programa britânico “This Morning”, veiculado na ITV1, no qual a inglesa Hazel Jones, loirinha de 27 anos, linda de morrer e de matar, apresenta-se como a iluminada possuidora de duas vaginas.

A galega enumera diversas vantagens, a começar pelas virgindades que perdeu em ocasiões distintas: “I lost my virginity twice”. Diz ainda que seu namorado é o único sujeito do Universo a penetrar genitálias diferentes sem o peso das traições na consciência.

Aposentado da vadiagem por tempo de serviço e contribuição, guardando, porém, pendor científico por questões do ramo, sinto-me à vontade para anotar impressões, indicar benefícios e riscos no relacionamento com uma moça dotada de tal atributo estético.

Homem para Hazel Jones deve ser bilíngue, a exemplo de Charles Phelan, amante de Melissa Hoffman, ela que, tendo somente uma, parece carregar dez pererecas. Vaginas, embora no mesmo organismo, falam idiomas diversos. E comunicação é fundamental.

Precisa ser muito divertido, carregar na mente brincadeiras da infância, tipo aquela do “Uni-duni-tê, sa-la-mê-min-guê, o sor-ve-te é co-lo-rê, a es-co-lhi-da foi... vo-cê!”. Ou “Passarás, passarás/ Mas algum há de ficar/ se não for o da frente/ tem que ser o de trás”.

]O cara tem de estar sempre disposto, naturalmente ou à base de Biotônico Fontoura com ovo de pata, leite condensado e chocolate em pó, não apenas a fim de satisfazer o conjunto da obra, mas também para enfrentar duas TPMs e as respectivas menstruações.

E aí, vai encarar? Eu não me atrevo, pois mal domino o português sertanejo e em inglês só consigo dizer “Whisky”. Além disso, nunca me saí bem nos quesitos de múltipla escolha, estou fraco que nem caldo de batata e minha mulher é valente igual a siri numa lata.



sábado, 14 de abril de 2012

Ave, Kydelmir!


Ave, Kydelmir Dantas, capitão-mor dos sertões nordestinos! Graças a esse cabra da peste, desbravador das caatingas paraibanas de Nova Floresta, mistura de Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro Romântico, e de Corisco, o vingador de Lampião, repousa diante do meu espanto uma belíssima edição dos “Sonetos” de Florbela Espanca.

Exemplar raro impresso em 1968, no Porto, Portugal, sob os auspícios da Livraria Tavares Martins, que veio apostar em Mossoró não se sabe como, especificamente no sebo do mestre Canindé. A última pista de sua trajetória é o Rio de Janeiro daquela mesma década, mencionado na dedicatória “ao amigo Paulino”, na primeira folha.

Seria repassado a alguém desconhecido, mas o destino conspirou a favor deste que vos escreve. Bastaram os olhos de meu amigo tropeçarem nas páginas daquela “que no mundo anda perdida”, por quem “Trago em meus lábios roxos, a saudade”, que ali estava eu trocando, de bom grado, a verba dos uísques pela “Flor do Sonho”.

Há fotografias da autora, seis ao todo, em diferentes fases de sua vida tão curta quanto “O pó, o nada, o sonho dum momento”, além do retrato pintado pelo aviador Apeles Espanca, irmão e, dizem as más línguas, grande amor da mulher que revolucionou a poesia lusitana com sua vontade nua de “Amar! Amar! E não amar ninguém!”.

A certidão de batismo, extraída dos alfarrábios do Santuário da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Matriz de Vila Viçosa, intercala as páginas 160 e 161. Antes, entre as 144 e 145, um documento interessante: a análise grafológica da poetisa, publicada na revista “Civilização”, de novembro de 1929, fazendo observações como estas:

“A graciosa harmonia deste grafismo denota... temperamento de artista... cujo idealismo, todavia, se não manifesta em tôda sua plenitude... Inteligência culta, imaginação e viva sensibilidade, aliadas a um apurado sentido estético, favorecendo, portanto, a expressão do pensamento pelas formas perfeitas e melodiosas da poesia”.

Reli os sonetos, um a um, verso a verso, e parecia a primeira vez. Sempre parece. As linhas de Florbela estimulam sensações novas a cada visita. São as curvas líricas de uma mulher ardente, desveladas em ondas inebriantes de sentidos. Depois, olhei-a até gastar os olhos da fotografia e fechei o livro dos “Versos só nossos, só de nós dois!”.









sexta-feira, 30 de março de 2012

ESTAÇÕES



Os olhos
já não tocam
a carne
que os procura
na penumbra
do quarto.

Nessa busca,
às vezes se despe
e espera.
Tanto espera
que se desengana.

Por que
rasgaram-lhe
a pele
de sombra?

Servir luz
e logo depois
arreganhar
dentes
amarelados
é covardia.

Qualquer dia,
varrido
pelas águas
o mau cheiro
de folhas mortas,
outra flor
há de nascer
entre as pedras.

E, se for tarde,
outro perfume
certamente
enfeitará
as vergonhas
da matéria humana.

sábado, 17 de março de 2012

Augusto Floriano


 
Havia poucas pessoas dispostas a colaborar quando, na década de 1990, O Mossoroense lançou o suplemento cultural denominado Caderno 2, hoje Universo, por sugestão do jornalista Emerson Linhares.

Para superar a deficiência de colaboradores, e na intenção de difundir e estimular as artes, os mais próximos dispunham-se a publicar crônicas, contos e poemas em nome próprio e se utilizando de pseudônimos, garantindo, assim, o mínimo necessário de trabalhos.

Não revelo os disfarces literários dos amigos que ajudaram a consolidar aquele que vem a ser o único espaço essencialmente cultural da imprensa norte-rio-grandense, mas não me incomodo de dizer o meu: Augusto Floriano.

Augusto não por meu segundo nome, e sim em homenagem ao meu bisavô materno, jornalista Augusto da Escóssia Nogueira. Floriano como remissão aos sobrenomes de meus "escanchavós" Floriano da Rocha Nogueira, poeta, e Ana Floriano, comandante do Motim das Mulheres.

Tentei criar uma personagem com identidade própria, que se qualificava "autodidata" e escrevia versos livres com roupagem contemporânea, mesclando tendências sem preocupações formalísticas.

Tipo como no dia em que me deparei com "Lance de Dardos", de Iracema Macedo, e, apaixonado pela obra, uma das mais importantes da poesia potiguar, incorporei Augusto Floriano para homenageá-la num passeio pelos versos da musa poeta.

CARTA A IRACEMA MACEDO

Augusto Floriano
Autodidata

Não tenho a graça escrita no livro das estrelas.
Na verdade, não sou anjo, talvez demônio ou nada.
Quem sabe, sou apenas este nome que me deram
no fim de outra era, quando a moça feiticeira
seqüestrou minha alma para o fundo do Poço Feio.

Desde aquele tempo devorado pelos anos,
vivi aqui dentro, na sombra do mundo,
sem as bênçãos do brilho de ninguém,
até que choveram tuas palavras em meu inferno
e, nos olhos dos teus versos,
sonhei contigo duzentas noites,
descobrindo novos caminhos
até te adivinhar inteira dentro do vestido.

Profanei os teus altares com os meus dedos insanos,
penetrei com minha língua pornográfica
o sagrado silêncio dos teus seios,
menti às tuas carnes somente para te fazer vadia.

Contudo, não eras minha, não eras para mim,
era a um anjo que escrevias.
Mesmo assim, perfumei-me com versos teus,
fui ao primeiro bar e bebi à tua inspiração.

Depois da terceira dose de luz,
a moça feiticeira arrastou-me novamente
para o fundo do fundo do Poço Feio,
onde espero ansioso a próxima tempestade.

Por que revelar isso agora? Ocorre que acabo de encontrar os textos de Augusto Floriano perdidos num recanto da memória do computador. Ocorre que deu vontade. E pronto!

sábado, 10 de março de 2012

Estado de coisa



Todos dormem. Na penumbra rajada pelo luar que atravessa as frestas da janela do quarto, ouvidos de ouvir canção de nada servem aos barulhos da madrugada e olhos vermelhos que arremedam vaga-lumes contemplam, em via reversa, a imensidão do nada. Por dentro, o ser humano em estado de coisa – coisificado – é a primitiva expressão do caos.

Abafado para chuva de verão. O suor na testa denuncia tanto a quentura quanto a precariedade do ventilador de teto cujas hélices gemem e gemem e gemem. Gole da água no copo de alumínio sobre o criado-mudo não basta, pois a garganta seca, inflamada, reclama dilúvio que a ajude a deglutir a insônia atravessada faz eras no desfiladeiro do pescoço.

A memória em condição vegetativa, mastiga, macrobioticamente, palavras que achou abandonadas no twitter: “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”... “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”.... “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”...

As muriçocas mais parecem urubus, essas sebosas, quase matam o sujeito de anemia. Elas e o calor, o calor e o suor, o suor e o ventilador, o ventilador e as hélices, as hélices e os gemidos, os gemidos e a insônia, o acocho no juízo. Podia estar agora em Lyon, entre os cinzeiros e as garrafas, com os cabelos grisalhos derretidos no colo de uma qualquer.

Quando descoisificar, voltar a ser gente nos próprios ossos e carnes, a janela estará escancarada, permitindo o vislumbre das aves noturnas em pleno exercício de voo. A cidade, enternecida, arreganhará gentilmente os seus bares, implorando para ser acariciada, lambida, penetrada até que o Sol abençoe a Terra com seu gozo de luz. Todos acordaram.

sábado, 3 de março de 2012

Fora do texto



Passaram-se mil anos até que eu entendesse a natureza etérea das palavras. Naquela sala quente e escura situada nos fundos do colégio, para onde me transporto acidentalmente, atraído por fantasmas renitentes, jamais as imaginaria por trás da máscara monstruosa com a qual se apresentavam aos meus olhos de criança. Revejo-me humilhado, perdido entre as letras do alfabeto. Não raro, estava ali, no “Cantinho do Feio”, de castigo por tropeçar nas letras do alfabeto que não conseguia aprender de cor.

Havia uma menina cuja companhia todos disputavam por sua beleza, simpatia e inteligência, um anjo de candura que abria mão do intervalo e descia ao mundo dos mortais, ao meu socorro. Ditava e ordenava os vocábulos, traduzindo-os, quando necessário, em sinais gráficos elementares, os quais imprimia segurando-me a mão que apertava o lápis enquanto este se derretia nas folhas do caderno. Nunca esquecerei o gesto de solidariedade e ternura que evitou maiores vexames na presença dos colegas.

A mocinha é a única lembrança agradável dessa história reencontrada, acidentalmente, sob entulhos de memória. As punições e seus efeitos psicológicos devastadores levaram-me a odiar substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, com todas as minhas forças e fraquezas - mais fraquezas do que forças. Durante uma eternidade, reneguei livros, jornais, revistas, estudos, qualquer espécie de leitura. Gramática tornou-se desaforo. Escola era sinônimo do enfado que se agigantava na tarde quente de Mossoró.

Séculos depois, movido por sentimentos tão repugnantes quanto aqueles, dissequei uma frase, espalhando as tripas da infeliz no chão da biblioteca, e descobri o mundo de sentidos em suas entranhas. Descobri, nesse exercício anatômico, que os signos da linguagem têm sangue e alma. Apaixonei-me por linhas, mesmo as vagabundas mal traçadas, e aprendi a me encontrar nas entrelinhas. Hoje, ajoelho-me diante das palavras e imploro que me seduzam e me libertem da solidão que escraviza fora do texto.

sábado, 7 de janeiro de 2012

The end


Você me diz que devo ir embora,
Pois desistiu de mim e coisa e tal.
Acusa-me de ser todo seu mal,
As feridas de ontem e d'agora.

Manda desenterrar os esqueletos
Esquecidos nos fundos das gavetas,
Botar osso por osso nas maletas,
Prender os versos livres em sonetos.

Apela para eu não perder o nível,
Não escrever bobagens, não chorar.
E desaparecer, se for possível.

Sugere que eu não deixe nem o pó
Dos livros espalhados pelo estar.
Saia de leve, bata a porta. E só!

sábado, 24 de dezembro de 2011

Palavras e amigos


Muito cuidado com as palavras na hora de lidar com os amigos. Pequenas frases, aparentemente inofensivas, podem ser mal-interpretadas e desgastar ou até mesmo destruir belas amizades. Digo isso porque na última segunda-feira descobri, sem querer, que uma amiga das mais queridas estava magoada comigo, por causa de um comentário bobo feito há semanas.

Talvez o momento impróprio. Talvez o tom de voz, o barulho do ambiente, o uísque, a música do Pink Floyd protestando contra o controle social. Talvez insensibilidade minha. Talvez o estado de espírito dela. Talvez semântica, semiótica, ruído de comunicação, comida macrobiótica, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, a cachorra da moléstia, o diabo a quatro. Talvez, talvez, talvez.

Pode ter acontecido qualquer coisa, e isso não importa. Importa o malfeito a ser reparado. Importa a lástima, a lâmina, a lágrima. Importa a tristeza, a vontade de não abrir os olhos, a vergonha, a consciência, a autopunição por haver usado falas equivocadas, a escolha da ironia abstrata, vaga, obscura, quando o instante clamava por solidariedade concreta, firme, cristalina.

Cuidado nas palavras e nas amizades. Tente uni-las na medida certa, no dizer e no ouvir. Tão importante quanto o texto é a compreensão que se tem dele para diferenciar brincadeira e insulto. Se houver problemas no arrazoado, não se constranja, pois as pessoas podem até não interpretar bem certos comentários, mas aceitam de bom grado o pedido de desculpa de um amigo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Conto de Natal


Inacreditável: acabo de disputar o banheiro com Papai Noel. Ele chegou transtornado, suando feito tampa de chaleira, e furou a fila sem a menor cerimônia. A vez era minha, juro por Deus, então protestei gritando um “Êpa!” logo ecoado nas bocas dos demais sofredores. Alguns, em situação visivelmente pior, acrescentaram desaforos ao enredo.


Depois de encastelado naquele templo de ágata, muito bem sentado no trono, o Bom Velhinho passou a nos desejar fortuna, amor, paz, e a clamar paciência, como um perfeito cristão. Em seguida, hô-hô-hô, começou a nos intimidar: se não o deixássemos esvaziar o saco e coisa e tal, usaria as missivas com nossos pedidos a fim de limpar o fiofó.


A galera apelou, pois chantagem dessa ordem é inadmissível. Queria arrancar o indivíduo pelas barbas brancas, enfiar-lhe goela abaixo a bolinha do gorro, chutar-lhe a enorme trouxa vermelha. Ninguém, no entanto, conseguiu aproximar-se. A inhaca de peru estragado na véspera – eca! – avançava pelas frestas da porta e rechaçava o inimigo.


Interferi, mas quase apanhava. Ofereci a vez, mas não colou. Propus enviar carta por debaixo da porta, mas o papel estava lá dentro. Chamar Rafinha Bastos para comê-lo com barriga e tudo, mas Ronaldinho reclamaria. Chael Sonnen para desafiá-lo estapeando o bumbum da Mamãe Noel, mas a Lei da Palmada complicaria a vida do lutador.


Santa Claus demorou além do necessário. “De pirraça”, diziam os sobreviventes da fileira já um tanto acrescida de desesperados. O sujeito ainda provocava cantarolando “Jingle bells, jingle bells, acabou papel”. Foi quando perdi as vontades e debandei, não sem bater à porta e mandar o tal Papai Noel... ter um feliz Natal e um profícuo “ânus-novo”.



sábado, 10 de dezembro de 2011

Não deu tempo reagir


Não deu tempo reagir. A bandida jogou-me na cama, invadiu-me as calças com a mão ligeira e botou para fora o que julgava seu de pleno direito. Lambeu, mordeu, esfregou entre os peitos, no rosto, engoliu, deixou no ponto. Aí, agarrou movimentando devagar, mas com força, enquanto passava a língua em meus lábios inundados de saliva.


Tomei as rédeas. Segurei-a pelos cabelos num movimento perpendicular que a deixou de lado, sobre o colchão. Entrei fundo, sem pedir licença, sem alterar a pintura, deslizando entre paredes de carne úmida. Ela reagiu com arrepios, gemeu e mais gemia, baixinho, com um ou outro sobressalto, na cadência dos nossos corpos quentes, suados.


O hálito de malbec, o cheiro dos fluidos, do amaciante dos lençóis, do perfume exalado dos pulsos, do pescoço, detrás dos joelhos, tudo misturado. Tudo alucinante, a confusão dos braços, dos membros, das babas, o ímpeto de dizer indecências, o dicionário de palavrões saindo da ponta da língua afiada para se perder nos labirintos do ouvido.


Seios latejavam no céu da boca liberando hormônios alucinógenos através dos bicos eriçados, uma espécie de fonte das fantasias, as de sempre e as da vez digladiando-se nas mentes desprovidas de pudor. Isso, enquanto a bunda abundava entre os dedos que a apertavam, testemunho do vigor dos tecidos, da veemência da matéria pulsante.


De repente estávamos de frente, revezando-nos na escala horizontal, em cima, embaixo, a cama preenchida, parecíamos tantos. De repente nos levantamos sem sair um do outro, portas, guarda-roupa, criados-mudos, armadores de rede, cada recanto. De repente por trás, de dois, de quatro, sem pé nem cabeça, sem chão. De repente no chão.


Havia sinais de explosão quando a doida vibrou no mesmo tom. Tremores, rigidez muscular, revirar de olhos, sensação de se entregar à morte sem deixar de viver, dentes trincados, até que, atingido por ela o máximo do máximo, arranquei-me de dentro para banhá-la por fora com jatos de âmbar. Aí, enroscados, nos apaziguamos. E dormimos.


sábado, 3 de dezembro de 2011

Entre pessoa e heterônimo


Descobri algo assustador: minhas dores não caberiam nesta página. Nem que me dessem um jornal inteiro, não se mostrariam por completo. Dadas as circunstâncias, melhor mantê-las onde estão, no fundo da alma, gritando inutilmente contra as paredes do buraco negro que habita em mim, à espera de cura ou de paliativo que as adormeçam.


Madrugadas, bares, mulheres em cetins, versos para envolver musas desinteressadas ou, quem sabe, apenas distraídas, soluços ébrios entrecortando orações. Foi-se o tempo das sutilezas, quando as paixões duravam a eternidade das horas de uma noite, as raparigas vestiam luzes vermelhas e gatos pardos se amavam feito loucos nos telhados.


A poesia caiu em alto-mar, sem que dessem por sua falta, nas rotas de “Oropa, França e Bahia”. Agora, por circunstâncias vis, não consigo tocar a lira, herança de Orfeu; não posso gritar “Evoé!” para começar a orgia; e só me vem à telha, repetindo-se sem parar, a canção de Caetano com a realidade nua e crua: “O grande escândalo sou eu aqui, só”.


Queria desabar no sono em vez de escrever: a insônia é quem escraviza o lápis entre meus dedos curtos, impróprios para os adeuses. Queria dormir e sonhar: a vigília é quem instiga o pesadelo, cão de três cabeças que espreita as portas do inferno para ninguém escapar. Queria ser menos triste: quem tanto se derrama um dia será seco feito pó.


Enquanto isso, palavras feridas curvam-se aos pés da vencedora e mostram o fundo das calças sem constrangimento. Elas, as palavras, até esboçam reação, mas os acentos circunflexos pesam sobre suas veias um tanto corrompidas por desilusões, levando-as a me dizer, como naquele velho Tango pra Teresa, “Que é hora de lembrar/ E de chorar”.


Por sorte, sou muitos. Divido-me na confusão entre pessoa e heterônimo e assim sobrevivo dos que me absorvem. A ideia do múltiplo pulveriza a angústia e evita que o indivíduo em estado de merda puxe em si a descarga. Estopar o vale de lágrimas, porque existe vida além das covas, será o próximo ato antes de reabrir o barraco à visita pública.




sábado, 26 de novembro de 2011

"Me lave"


Em San Marcos, no Texas, Scott Wade criou a “Dirty Car Art”, que ouso traduzir como “Arte de Carro Sujo”. Ele aproveita a atmosfera poeirosa semelhante à de Mossoró para criar obras de arte nos vidros de veículos estacionados em via pública. Do pó, nascem e renascem pessoas, animais, plantas, paisagens, monumentos, criaturas surreais, de tudo.


Meu automóvel, que é preto e só vê água quando chove, não por desleixo, mas pela demanda, daria um painel sertanejo, com vaqueiros trajados à rigor, cavalgando no chão rachado em busca das reses perdidas na caatinga. Muito melhor do que encontrá-lo servindo de quadro negro para piadinhas tão antigas quanto a sagrada posição dos monarcas.


Nada mais cafona do que escrever "Me lave" no vidro ou na lataria de um carro empoeirado. Pior se o carro for o meu, pois, além de tudo, o indigitado corre o sério risco de contrair tétano. Além disso, há de se duvidar dos hábitos de higiene física e mental de quem sente prazer em enfiar o dedo na sujeira para deixar mensagens cheias de “originalidade”.


E não se resume à cafonice. O ato, degrau anterior à coprofagia, reveste-se também da maior cara-de-pau - e o caso é mesmo esse - quando o paladino da limpeza automotiva é famoso pela aversão à água, escovas de dente, desodorantes. Revela a doença que os neofreudianos descrevem, em documentos secretíssimos, como filhadaputismo latente.


É, camarada, vi você ensebando o vidro traseiro do Cid Móvel com seu dedo sujo, no pingo do meio-dia, e tive uma vontade quase irresistível de enfiar-lhe o meu nas suas costas para escrever "Vá tomar banho", "compre pastilha", "passe limão" ou, ao menos, para lhe proporcionar um toque reto sobre colocação pronominal, básico da língua portuguesa.


sábado, 19 de novembro de 2011

Inveja de quem sabe cantar


O que dizer da mulher que traz a constelação de Cygnus inteirinha ajoelhada ao pé esquerdo? Estrelas imortalizadas entre o verde e o azul, destacadas nas incandescências da pele, se não me traíram os sentidos da aquarela naquele instante de alucinação coletiva.


Falar dos olhos que o sorriso aperta, dos lábios pintados em vermelho-coral para uma guerra de paz? Da cachoeira de cabelos negros pelas costas, das carnes fartas? Que tal as linhas sinuosas, o alumbramento, o pingo de ouro derretendo-se na fornalha do colo?


Os trajes sóbrios, impulso de embriagá-los em nudez! E ajoelhar-se ante a santa inspiração deste inocente pecador, clamar justiça às vistas famélicas capazes de cair em tentação num gracejo buarqueano, mesmo se fechados “os ouvidos e as janelas do vestido”.


Deu sede, mas água não passou. Qualquer poeta tem, nessas horas, necessidade de goles a mais de lirismo, do contrário perde as medidas do soneto e se lança à libertinagem surreal das metáforas. E o cronista, sendo também um qualquer, sufoca-se na prosa.


Ah, se eu fosse Manassés! Capaz de desvendar "A Lua, o amor e o mar", de traduzir em letra e acordes a paisagem inquietante que arrebatou linhas e entrelinhas da redação, de estender no "Varal do tempo" rosas em busca de Sol, de andar no rastro da musa.


Quem dera a sorte mineira de Renato Motha! Amanhar versos para Maria Rita colher: “Tens o teu escudo, teu tear/ Tens na mão, querida, a semente/ De uma flor que inspira um beijo ardente/ Um convite para amar". Dias assim, morro de inveja de quem sabe cantar.


sábado, 12 de novembro de 2011

Passaporte diplomático


Viajei bastante, conheço razoavelmente bem o Rio Grande do Norte, quase todos os Estados brasileiros, alguns países. Nas viagens ao exterior, há sempre a preocupação com a entrada. Sei de pessoas que, mesmo atendendo ao rol das chatices burocráticas, foram barradas, humilhadas e obrigadas a voltar, amargando prejuízo econômico e frustrações.


Da última vez que estive nos Estados Unidos, terra de muitos amigos queridos, o agente da imigração foi extremamente grosseiro. Fez comentários hostis, meneava a cabeça a cada pergunta que lhe respondia, avaliava a documentação com desconfiança. Escolheu-me para saco de pancadas ou para externar sua xenofobia idiota contra latino-americanos.


Entrei. Irritado, mas entrei, certo de que aquele é comportamento isolado. Os colegas do indivíduo, nos guichês de atendimento espalhados no imenso salão do Aeroporto Internacional de Miami, atendiam aos visitantes com cordialidade. O mesmo posso dizer dos servidores do Consulado Americano em Recife-PE, aos quais submeti duas solicitações de visto.


Quem já saiu por aí com passaporte pé-duro igual ao meu compreende. Edir Macedo, chefão da Universal e da Rede Record, cansou dos maus tratos, fincou pé e recebeu do Itamaraty, semana passada, um passaporte diplomático. O missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, inquilino da Bandeirantes, obteve o dele muito antes.


O jornalista Lauro Jardim esclarece na coluna Radar on-line, da Veja, que "Os portadores de passaporte diplomático têm tratamento diferenciado nos aeroportos e alfândegas. Além de não pagar pelo documento, a vantagem mais evidente é a dispensa da revista aqui e em vário países. Também não enfrentam filas". Quem me dera nunca entrar em filas!


A própria comunidade evangélica chiou. De outros segmentos, lógico. Houve quem dissesse que as Sagradas Escrituras são o passaporte necessário aos mensageiros da palavra. Nesse caso, acredite: a Bíblia não funciona. E ainda: o comportamento do governo representa um passo na concretização do Estado laico que a Constituição prevê desde 88.


Há muito tempo os cardeais católicos possuem o direito recém-conquistado pelos dois líderes do cristianismo luterano. Penso, e me perdoem a franqueza, que, em vez de ampliar, Brasília deveria cassar o privilégio dos religiosos. Todos. Do contrário, daqui a pouco, Fernandinho Beira-Mar funda a Igreja Internacional do Pó e ganha folga diplomática.


Pela caridade, pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas do Pedal Quebrado, não digam que estou comparando Beira-Mar aos cardeais católicos e ministros protestantes. A questão é outra: se o passaporte diplomático destina-se também a sacerdotes, qualquer deles pode requerê-lo, seja a entidade séria ou picareta, desde que legalmente constituída.


Da parte deste caboclo avesso a salamaleques, restam o estresse das entrevistas de admissão, o risco de voltar de um aeroporto se a mulher do entrevistador tiver dormido de calças jeans na véspera da sabatina. Mas, beleza! Se isso acontecer, viajo a Bilica ou ao La Boquita De La Noche, onde passaporte azul tem potencial superior ao vermelho.


sábado, 5 de novembro de 2011

“QUE SORTE – Escapou mais uma vez”


"Invejo as flores que murchando morrem,
E as aves que desmaiam-se cantando
E expiram sem sofrer..."
Álvares de Azevedo

O desmaio é uma experiência assustadora, espécie de ensaio para a morte. Desmaiei em pleno sábado enquanto escovava os dentes. Acordei minutos depois, nu, deitado no chão com metade do corpo no banheiro e outra no quarto. Tremenda dor na cabeça ferida em três lugares e na coluna cujos reflexos da queda ainda não foram avaliados.

Voltei aos poucos e também aos poucos, enquanto a mulher e os meninos se acalmavam, tomei ciência dos detalhes. A pressão arterial em 10/7, vista no tensiômetro caseiro, era dos pormenores estranhos para quem, desde moço, tenta domar a hipertensão. Recusei-me, logo de início, a preocupar meus pais, irmãos e minha avó. Todos viajando.

A ideia de poupar a família não perdurou. Recebi socorro, fiz exames para avaliar as causas e as consequências do “apagão” e passei a tomar “remédio controlado”. Feitos os testes necessários, incluindo a ressonância magnética, em qual estrutura o sujeito se sente enterrado vivo, confirmei as suspeitas de tantos anos: não tenho nada na cabeça.

O coração parecia inquieto no emaranhado de estalactites e estalagmites do eletrocardiógrafo. O diagnóstico, no entanto, diz estar bem o “Órgão muscular situado na cavidade torácica constituído de duas aurículas e dois ventrículos, e que recebe o sangue e o bombeia por meio dos movimentos ritmados de diástole e de sístole” (copiei do Aurélio).

Na quarta-feira, dirigi-me ao cemitério a fim de homenagear a memória de parentes e amigos mortos. A distância entre nós, ante os efeitos psicológicos do susto, pareceu-me menor do que noutros Dias de Finados, mas, logo na entrada do campo santo, recebi um panfleto evangélico com o seguinte título: “QUE SORTE – Escapou mais uma vez”.

A mensagem, se não exerceu o poder da conversão, abriu-me o sorriso há dias acorrentado pelo medo de perder de vez os sentidos sem dizer adeus, pedir perdão, perdoar. Coincidência? Sopro de Deus na vida de um agnóstico convicto? Por agora, contenta-me saber da palavra em sua essência, conquistando, devolvendo a luz da esperança.

sábado, 29 de outubro de 2011

A um soneto

Não sei por onde principio, só sei que preciso fazê-lo, desaguar a mágoa que vem se acumulando nestes anos de pouca convivência e muito desencontro. Talvez não valha a pena destrancar esqueletos do armário, contar-lhes as costelas, ouvir-lhes o estalo dos ossos, o arrastado das correntes, embora alguns saiam das gavetas por conta própria e deem o maior trabalho para retornar aos sepulcros da memória.

Melhor dizer na generalidade das metáforas, se alguma delas me acudir neste vale de lágrimas antes de os neurônios boiarem nos humores do uísque que desce rápido, goela abaixo, inunda veias, artérias, e se lança - ou me lança? - nos labirintos da loucura. Permita-me, deus dos ateus, penetrar de fala dura a santidade das palavras, pois a missão que se desvela roga, implora, frases virgens na foz da língua úmida.

Sem lhes roubar a pureza, ternura necessária a tirar dos ombros as ruínas do coração em frangalhos, depositando os entulhos em lugar digno. É a morte do verbo numa espécie de haraquiri, a caneta como espada. Ou, na boa, a eutanásia do suspiro, "a morte sem sofrimento". Creia, amiga, até o mau poeta escravizado nas entrelinhas da prosa sabe quando o soneto não o transportará à chave de ouro. E desiste.

Dedico-lhe, portanto, versos sem saída nascidos com alguma métrica, alguma rima, algum sentido, mas que se veem, depois de tantas reescritas, encurralados na pobreza da alma que se rende à sensatez da realidade implacavelmente... fria. E pergunta: por que a inspiração trai? Por que anjos mentem feito demônios sádicos? Por que musas aliam-se a inimigos da lira? Por que a poesia humilha o pobre criador?

Desarme-se e me responda à cor daquelas vistas que observavam a esquina do mundo antigo da infância: devo concluí-lo? Recomeçá-lo? Esquecê-lo? Rasgá-lo? Onde diabos, mulher, seus gemidos se perderam? Que nunca mais. Em tempo: please, don't let me down com ironias, o melhor e pior de você, afinal a eloquência dos perfumes se revela, muitas vezes, no silêncio das flores. Amo você, mas sinto medo.

Mais que isso: é pavor! De te conhecer por fora, além das letras pelas quais se reinventa em esfinge e me devora, e me chupa o juízo. É pavor! Dos olhos de fogo os quais só me falta plantar num rosto. Amar composições inacabadas, mantê-las ensimesmadas ou dar-lhe à luz e correr o risco de encontrá-las nas mãos de outras criaturas prenhes de fantasia? Eis a questão. Diga-me, insisto, já não sinto aonde vou.

sábado, 22 de outubro de 2011

“Mister Gaddafi”

Desde o início da crise na Líbia, que resultou na morte de Muammar Gaddafi, tenho me lembrado de dois colegas de intercâmbio. Muhammad e Ali, aquele médico e este engenheiro, estudaram comigo durante três meses na escola de idiomas Eurocentres, na cidade de Brighton, Inglaterra.

Certa feita, surgiu na sala de aula do professor Michael, especialista em pes-soas com muitíssima dificuldade em aprender Inglês, o debate sobre política. Cada um dos estudantes, e havia gente de várias partes do mundo, deveria tentar descrever o sistema governamental do seu país.

Os relatos dos alunos de origem islâmica chamavam atenção pelas diferenças em relação a nós, nossa visão cultural e sistemática de poder. Os relatos oci-dentais, digamos assim, igualmente causavam espécie aos amigos árabes. Tudo isso, no entanto, sem afastar o clima respeitoso.

Muhammad e Ali, cujos nomes pronunciados nessa sequência remetem ao pugilista americano Cassius Marcellus Clay Júnior, descreveram a Líbia de 2001, um período de otimismo, com o fim das sanções da Onu e a retomada das negociações com a Europa, no setor de petróleo e gás.

Confrontados com o conceito de ditadura, defenderam “Mister Gaddafi” – e te-nho a impressão que na época escrevíamos “Kadafi”. Demonstravam, em suas palavras, reverência por aquele que, em nossa maneira de enxergar as coisas, não passava de um déspota corrupto e sanguinário.

Nada estranho, pois, na década passada, os grandes líderes mundiais faziam questão de aparecer abraçados com o tirano. Tony Blair o visitou duas vezes, sem se lembrar dos atentados terroristas que Gaddafi patrocinou na Escócia, em 1988, que causaram a morte de 270 inocentes.

O tirano foi abraçado por Condoleezza Rice e Barack Obama. A União Africana o promoveu a seu líder. Até Nelson Mandela, meu ídolo, responsável pelo fim do Apartheid na África do Sul, exemplo de tolerância e espírito humanitário, deu-lhe apoio público em determinadas ocasiões.

Na madrugada de sexta, fechando o dia anterior de trabalho, liguei a TV para relaxar pouco antes de dormir e me deparei com a cena grotesca do lincha-mento de Gaddafi. Primeiro, o homem vivo, limpando sangue do rosto com uma das mãos. Depois, um cadáver como troféu.

O governo dos “rebeldes” divulgou comunicado mentiroso informando que a morte se dera após troca de tiros, já quando o ferido era levado ao hospital. As imagens mostram outra realidade, a da execução bárbara, sumária, incompatí-vel com os discursos libertários da “Nova Líbia”.

Chefes de nações “democráticas”, antes aliados do regime deposto, festejaram a chacina. O único de opinião sensata, dentre os que ouvi, foi Dilma Rousseff, que, embora falando em momento favorável à democracia líbia, repudiou os festejos pelo assassinato do caudilho africano.

E Muhammad e Ali nisso tudo? Sobreviveram à guerra civil? Rebelaram-se ou permaneceram fiéis ao líder? Pobre povo da Líbia. Pelas demonstrações de vi-olência e desonestidade de propósitos dos substitutos, terá, aquela brava gen-te, um governo novo, mas de velhos costumes.

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PS: mal deixei cair o ponto final, eis que o celular apita anunciando o recebi-mento da seguinte mensagem de meu amigo Rogério Dias: “A Comissão de Direitos Humanos-ONU está investigando e irá punir com rigor os que mataram torturando Muamar Khadafi que já assassinou nada menos que 1 milhão de inocentes líbios – RIDÍCULO!!!”.

Salamalecum!

sábado, 8 de outubro de 2011

Sertão e mar

Uns atravessam a vida e jamais sentem a força do Sol sertanejo abrindo a moleira para fortificar as ideias. Outros passam no mundo e se despedem sem purificar a alma na vazante da maré que, tanto sagrada, tanto profana, arrasta todos os pecados para as profundezas.

Quem nasce em Mossoró, onde o sertão vez em quando se arrepia com o cheiro atlântico que o vento tange das entranhas de Tibau, Grossos e Areia Branca, escolhe livremente, a qualquer instante, se mergulha no destino das ondas ou se embrenha nas veredas da caatinga.

As tradições do sertão e do litoral, opostas nos dicionários da língua portuguesa, avizinham-se nos ensinamentos do meu avô materno, homem da cidade com jeito de país cujo rio, no espaço de um aboio, rompe mangues, beira pirâmides de sal e penetra o mar da Barra.

Ora o patriarca estava na Fazenda Mororó, na lida com o gado quase sempre magro, no desafio quixotesco de extrair água razoável do subsolo salobro, à base de moinhos, e na ilusão de produzir frutos de sementes que a chuva, sem o menor tesão, recusava-se a fecundar.

Em janeiro, exilava-se entre o morro e o oceano, vizinho à Pedra da Sereia e ao Bar de Zé Chorão. A antiga casa de taipa com paredes caiadas, janelas e portas amarelas, ladeada por sulcos de vertentes, era, à noite, à luz de candeeiros, o melhor observatório de estrelas.

Na fazenda, os heróis do mato reuniam-se no alpendre do vaqueiro Cesário para reviver as pegas, as vaquejadas. Contavam de mal-assombros, o fogo do boitatá na mata escura, a vingança do caipora contra aquele que se atreveu na caçada sem lhe ofertar fumo e cachaça.

Em Tibau, a “Morros Vermelhos” do navegador holandês Gideon Morris de Jorge, que por lá esteve no século XVII, paraíso terapêutico do poeta Henrique Castriciano, pescadores recém-chegados da lida das marés paravam a fim de vender peixe e narrar suas aventuras.

Dos homens do campo, inesquecível a saga de Chico Mouco, sobrevivente de três raios, um deles responsável pelas mortes do pai, do jumento e do cachorro da família. Havia juazeiros habitados por fantasmas, as burrinhas de padre, as almas penadas que revelavam botijas.

Entre os lobos do mar, Ananias desvendou o segredo do batalhão de soldados que viajava no coração das ventanias da madrugada. Tidó encontrou-se com o tinhoso num heróico mergulho em alto-mar. Pirá, que era mecânico, garantia existirem elefantes na Praia do Ceará.

O leite morno amanhecia o curral ao bater o fundo das canecas, o café de Dona Terezinha, feito no forno a lenha e coado no pano. No almoço, paçoca de pilão, bode assado, maxixe, arroz de leite. A janta, no último claro da tarde, e a família em torno da tigela de coalhada.

“Olha o grude! Olha a tapioca!” Assim anunciava-se o dia no sopé do Morro das Sete Cores. Por volta das 13 horas, peixada de cioba e pirão ou cavala frita. Feijão e arroz branco no acompanhamento de ambos. Aqui e acolá, taioba, siri. Vencida a tarde, o leite, o pão, a sopa.

Nos dois casos, as mesas enormes de madeira, o avô na posição patriarcal, à cabeceira, de frente para a imagem de Santa Luzia. Morreu cego, mas nunca perdeu a fé. A avó, ao seu lado esquerdo da fazenda e direito na praia, sempre insistia para todo mundo comer mais.

Meninos virgens pastoravam o amor dos bichos com instinto animal. A pressa dos galináceos. O cio das vacas, o faro dos touros, mugidos, montas, orgasmos. As potrancas, como em versos de Olegário Mariano, sacudindo as crinas para o corcel que lhes erguia as patas.

Tais moços buscavam em vertentes afastadas, a nudez das praieiras, amores de Othoniel Menezes; e aguardavam, ansiosos, as tardes de domingo para testemunhar as evoluções de casais que se refugiavam nas alas secretas da formação erodida denominada Labirinto.

Montava-se em burro bravo, cavalgadas, fabricavam-se baladeiras com ganchos de pereiro e ligas de pneu, bois de osso, cabra-cega, bonecos de sabugo de milho... Empinava-se pipa, guerreava-se com torrões, pescaria, jacaré, enchiam-se garrafas de areias coloridas.

Há no espírito dessas memórias, a ampulheta com todas as areias da região, dando o norte de que, acertadas as profecias do beato Antônio Conselheiro, sertão e mar, virados um no outro, permanecerão no mesmíssimo território, na harmonia de séculos. Ao menos aqui.

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Crônica prublicada na revista Preá.

sábado, 1 de outubro de 2011

Arrumando o embornal

Estou arrumando o embornal para uns dias nos states. Cueca, meia, rapadura, garrafa com areias coloridas de Tibau, bomba de asma abastecida com oxigênio do Sítio Mororó, fotos das crianças e outros petrechos essenciais para quem deseja ganhar o mundo sem morrer de saudade.

Pretendo rever amigos em Wenatchee, cidade encravada no Estado de Washington, lamentando a ausência de um deles cujo coração, de muito ocupado em distribuir amor e generosidade, esqueceu-se das próprias funções orgânicas, parando de bater terça-feira, 10 de maio de 2011.

Mencionei-o em crônica que escrevi de lá, Karl Ohler, o “pai americano” de Samara e, por consequência, meu sogro postiço. A Expressão aspada carece de explicação: quando jovens participam de intercâmbios em países estrangeiros, eles se incorporam às famílias que os hospedam.

Minha companheira, que morou lá aos 17 anos, sempre o tratou com tal deferência. E eu também, desde a primeira vez que trocamos palavras por telefone, num drible ao inglês banguela que mastigo cabralinamente, como quem masca fonemas indo-europeus no idioma pedra de sertanejo.

Karen Ohler, a “mãe americana”, permanece entre nós. Quando a vi no inverno de 2006, ao descer do trem Amtrak que nos levou, a mim e a Samara, de Seatle até lá, lembrei-me de minha mãe. O porte físico, o olhar acolhedor, a assistência impecável para que nos sentíssemos em casa.

Curiosamente, Karl não era estadunidense por nascimento. Seu berço, aos 8 de fevereiro de 1952, foi Belícia, Croácia, de onde se mudou para Wenatchee com apenas sete anos. Brindamos com uma aguardente croata, de mais de 70 graus, com saudação apropriada. Algo como “Givili”!

O jornal da cidade de aproximadamente 40 mil habitantes, com tiragem de 40 mil exemplares, noticiou o falecimento: “Karl tinha aparência austera, mas todos que o conheciam podiam ver através dela. Ele era um homem honrado, excelente marido e pai, e uma pessoa maravilhosa”.

E prossegue informando sobre suas paixões, entre as quais as partidas de golfe e os pássaros. “Sua família incluía uma variedade de cinco papagaios”. No meio do texto, uma expressão que resume o caráter do ser humano: “Karl era amado por sua família e amigos”. Assino em baixo.

Bom, se um ônibus espacial de seis toneladas não atropelar o avião, voltarei logo para as bandas de cá, a rotina dos bares, dos pesares. Das alegrias, também, da família, do encontro com os leitores deste Canto de Página que às vezes fede, às vezes cheira, mas não ofende ninguém.

sábado, 24 de setembro de 2011

“Amar uma mulher sem orifício”


Sou fã de Chico Buarque, mas discordo dele nesta história de “Amar uma mulher sem orifício”. Na verdade, não é bem discordar, pois respeito as opções sexuais, as taras, as manias, de todo mundo. Se meu ídolo quer se dedicar ao onanismo icônico religioso, se é que entendi a relação entre o... o... e a cara dos versos, terá toda licença poética.

Nutro grande admiração por mulheres de carne e osso, com as aberturas que Deus lhes deu. São caminhos naturais para o nirvana, olhos nos olhos, boca na boca, aquilo naquilo, boca naquilo, aquilo na boca, indispensáveis à dieta de um homem que, embora jovem, contemporâneo, sente dificuldade na adaptação a certas, digamos, “modernices”.

Quem sou eu, criatura abandonada pelo simbolismo, boêmio da asa quebrada que, sem autonomia de voo, conforma-se em amanhecer sentado em monturos de lirismo que bêbados constroem nos corredores da Cobal... Quem sou eu, cronista de meia pataca, para discutir assim a obra de um dos gênios da MPB, pelo fato de sua elevação espiritual.

Ocorre-me, no entanto, a velha máxima popular – mentira, inventei-a agora – segundo a qual “o espírito se eleva quando a carne despenca”. Por assim dizer, vencidas as forças do homem, melhor adorar estátuas, protegido da sedução que dadas cavidades exercem, em vez de se empanturrar com remédios de olhos azuis – mentira, de novo!

Agora, falando sério, preferia não brincar com Seu Francisco, cujas canções alumbram meu amor. Vai que ele, o Velho Chico, agora com a mania de fuçar no Google, se enxerga por aqui e me expulsa do fã-clube, sem direito a ouvi-lo sequer em radiola de ficha. Vixe, Maria, já estou com o orifício na mão, melhor encerrar a ladainha. Desculpa aí.

sábado, 9 de julho de 2011

Without words



É como todo mundo fica, “sem palavras”, quando assiste ao vídeo-documentário cujo título ouso reaproveitar, no qual a produtora Almudena Tora revela o drama de Jack Agüeros para os webleitores do jornal The New York Times. O poeta nova-iorquino, autor de obras reverenciadas como Lord, Is This a Psalm? (Senhor, isso é um Salmo?), sofre do mal de Alzheimer faz sete anos, e chora ao relembrar vagamente de um dos tantos livros que escreveu.

“Meu pai não consegue mais escrever nem ler”, conta o filho Marcel. “Eu me recordo do tempo em que ele escrevia. Ficava acordado a noite toda, feito um maluco”, diz a filha Natalia. “Não ficou nada na minha cabeça”, responde Agüeros, de semblante sereno, voz mansa, corpo fragilizado. Ensaia um carinho na cadela Niki, a quem chama de “La Nicaña”, e, ao ser instigado acerca do quanto produzia, lamenta: “Devia voltar a escrever... É bom para o coração”.

O prato de comida, a colher, os remédios, as plantas no umbral da janela, o manuscrito, uma antiga canção em louvor à manhã, outra revelação: “Não me lembro dos meus poemas”. Recordou-se, por evocação de Natalia, do livro Correspondence Between the Stone Haulers (Correspondência entre Carregadores de Pedras). Foi aí que riu brevemente e pôs os dedos enrugados sobre a boca tentando disfarçar a emoção contagiante. Foi aí que me fez chorar.

O vídeo se encerra com mensagens humanitárias valorosas não somente para familiares de pessoas que vivem com Alzheimer, mas também para aqueles que nunca se imaginaram na situação nem de uns nem de outros. A experiência compartilhada pela família Agüeros ensina a amar acima das aparências, além de como desejamos que os indivíduos sejam, a valorizar o momento – o carpe diem, de Horácio –, pois “o que você tem hoje pode se perder amanhã”.





VEJA TAMBÉM O VÍDEO ORIGINAL DO THE NEW YORK TIMES.

sábado, 25 de junho de 2011

Voyeur



Linda! Muito mais que nos umbrais da puberdade. Sorridente também, talvez feliz. Está feliz. Vi-a por acaso, depois de séculos, mas ela sequer percebeu-me o espanto, os suores, os rubores, os passos distraídos do homem que, meio zonzo, deixou-se dominar por um surto de infância.

Passei despercebido tanto de propósito, tanto por fraqueza de espírito. Permaneci invisível, traduzido em megabytes, olhando... olhando... olhando a exemplo de um voyeur aprisionado a fantasias antiquíssimas, inalcançáveis a braços humanos reincidentes em afrouxar as próprias fantasias.

Não aprendi o segredo dos nós, embora tenha sido marinheiro noutra encarnação. Manias de vidas passadas trago nas veias, esse coração tatuado pelas ondas de todos os portos. E quando me considerava aposentado das marés, eis que me lançam à deriva, descrente até das certezas.

Lembrará de mim quando em vez, nem que seja com desdém? Saberá ainda os poemas que o vento arrebatava-lhe dos lábios? Guardará nalgum compartimento secreto o caderninho azul, seu confidente? Ou tudo aquilo, todo o passado, a distância e o tempo sepultaram a sete palmos?

Ocorreu-me a antologia de Vinícius. Que fim terá levado? De todo azar, já se fez “do amigo próximo o distante”, apesar das velhas promessas de ser atento ao meu amor, “com tal zelo, e sempre, e tanto”. Foram demais os perigos, as paixões, tantas criaturas lindas espalhando sofrimento.

E essa minha amiga distante e distraída, sem fugir da inspiração do poetinha, agora nas formas de “Uma mulher que é como a própria lua:/ Tão linda que só espalha sofrimento,/ Tão cheia de pudor que vive nua”; e eu, cansado, atraiçoando “o humano coração com mais verdade”. Mentira!

domingo, 19 de junho de 2011

DESINFORMAR O CIDADÃO É ARMAR O BANDIDO



O secretário da Segurança Pública e da Defesa Social do Rio Grande do Norte, senhor Aldair da Rocha, proibiu o Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep) e o Centro Integrado de Operações de Segurança Pública (Ciosp) de prestarem informações sobre homicídios cometidos em Mossoró.

A justificativa dada por ele na última sexta-feira, em audiência realizada na Câmara de Vereadores, a fim de debater os índices da violência na cidade, foi a de que a pasta sob seu comando pretende criar uma central de imprensa, ainda sem data marcada para entrar em funcionamento.

A tarefa estaria, por enquanto, sob monopólio do comandante da Polícia Militar, a quem os repórteres de quatro jornais diários, da TV aberta, da TV fechada, dos diversos sites noticiosos, das revistas e das nove emissoras de rádio existentes por aqui poderão se dirigir a qualquer hora.

Com essa desculpa esfarrapada, impõe-se a cesura aos cidadãos potiguares em pleno regime democrático de direito, pelas mãos daqueles que deveriam nos proteger não apenas da violência urbana, mas também no tocante a quem investe contra outros aspectos da dignidade humana.

Não creio em boas intenções, até porque “uniformização da verdade” rima perfeitamente com “manipulação da realidade”. A ideia, de certo, é esconder números cruéis, frutos da ausência de gestão estratégica da segurança que nos confere o triste epíteto de Rio Grande da Morte.

A decisão de Aldair da Rocha ofende dois princípios da administração, o da publicidade e o da legalidade. Tentar impedir acesso a dados de ordem pública, talvez no intuito de encobrir o desrespeito a outro preceito, o da eficiência, fere a nossa inteligência e a Constituição.

É ela, a Carta Magna, quem nos assegura o direito à informação, veda a censura, garante-nos a liberdade de expressão sem necessidade de “licença” e proíbe a edição de normas embaraçosas “à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação”.

A governadora Rosalba Ciarlini, que à frente da prefeitura de Mossoró deu exemplo de democracia ao não perseguir economicamente setores da mídia críticos a outros aspectos de sua gestão, como ocorre hoje no Palácio da Insolência, deve reverter esse completo absurdo.

Se não a Rosa, mostre o Ministério Público os espinhos, utilizando remédios legais capazes de cessar a arbitrariedade, provocado pela indignação dos que não aceitam ser resumidos à condição dos “Macacos Sábios” do folclore japonês, que não veem, não ouvem e não falam.

Embora a imposição de censura seja algo muito complicado na era das redes sociais, quando qualquer indivíduo pode ser repórter da própria realidade, algo precisa ser feito com urgência. Longe do que possa imaginar o secretário, agir para desinformar o cidadão é armar o bandido.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Tatuagem



O colibri que habita aquelas costas,
Sugando a carne fresca com o bico,
É a quem nestes versos eu suplico
O caminho secreto das respostas.

Serás por entre gritos, entre espasmos,
Passarinho liberto e prazenteiro
Ou apenas um reles prisioneiro
Do corpo, da fogueira, dos orgasmos?

Quais perfumes seduzem teus sentidos,
Os aromas sutis da castidade
Ou a força motriz dos corrompidos?

Por fim, que se declare e me revele,
Por quais razões trocaste a liberdade
Para amar tatuado à flor da pele.

sábado, 28 de maio de 2011

Era uma vez...



Pode dar cacete. Pode dar cadeia. Pode dar o inferno da pedra e a cachorra da moléstia. Direi mesmo assim que meu amigo, aquele sobre quem falei, sua paixão por uma musa sacana, deu-se finalmente bem. E muito bem. Conquistou a domadora de beija-flores e ameaça-me com detalhes, o sabor dos beijos, a temperatura dos abraços, para que eu os traduza em palavras.

Como se um pobre diabo metido a cronista, invejoso e doente dos cotovelos, fosse capaz de decifrar os caminhos da beleza em águas onde gregos e romanos naufragaram sob a égide dos vinhos de Massalia. Como se alguém, na condição de mero expectador, sentado na última linha de cadeiras do anfiteatro do mediterrâneo, pudesse descrever as formas da Cours Julien.

Cerro os olhos para não gritar, a boca para não ouvir, os ouvidos para não enxergar, as narinas para não perceber-lhe as formas, as mãos para não suspeitar do seu perfume, o sexto sentido para não morrer de tanta fome. Doutro modo, cairia da corda armada entre as paredes do buraco negro e escreveria alucinações, o calafrio de uma queda livre rumo ao desconhecido.

O tempo não está para crônica. Impossível quando o sujeito se encontra nada prosa. Outro soneto! Talvez me socorram aves noturnas, protetoras dos homens que se arremessam aos abismos, para que não quebre o pé ao tropeçar em sílabas poeticamente distraídas. Poema livre? Há séculos e séculos perdi a autonomia dos vendavais. Boêmio com asa quebrada não voa.

Mas prometi, depois de duvidar, e promessa de bêbado tem dono, a exemplo de outras coisas. O jeito então é expiar a pena através da pena, contando o que fiz questão de ignorar. Dizer algo, alimentar a imaginação dos leitores apreensivos. Uísque, pela caridade, e sem gelo, para brindarmos ao romance em construção e à história que passo a narrar. Era uma vez...

sábado, 21 de maio de 2011

O flautista de Bath



Logo que desci na Orange Grove e comecei a caminhar na lateral da Abadia de Bath, cidade encravada no Oeste da Inglaterra, ouvi o solo de flauta. Era um sábado, por volta das 13 horas, e fazia frio, algo em torno de zero grau, conforme atestava o termômetro do Ônibus.

Na Abbey Church Yard, onde se localizam as entradas da abadia e das termas romanas, estava ele, o flautista. Solitário, o velho alto, de cabeça e barbas brancas, tirava suaves canções da flauta de metal, fazendo gestos de reverência sempre que alguém depositava alguns centavos de libra no gorro de lã deixado ao chão. Na Inglaterra, isso é comum. Principalmente nas cidades turísticas, os artistas vão às ruas, sozinhos ou em grupos, batalhar a sobrevivência.

As pessoas param a fim de ver e ouvir. Se gostam, pagam. Outras seguem indiferentes ou apressadas. O malabarista que se apresentava a poucos metros, no mesmo pátio, atraiu bem mais atenção e dinheiro do que o flautista. O mímico vestido de manta azul, na Union Street, também. Mas nenhum deles demonstrava em seus respectivos ofícios a obstinação, o fôlego e a poesia do velho músico. Visitei as termas romanas, construídas no século I, que dão nome à cidade (Bath significa banho).

Na volta à praça, lá estava ele, firme e forte, transformando o frio em calor com a música, como se fosse o flautista de Hamelin, do conto de Joseph Jacobs, que conhecia melodias para todos os fins, talvez até para se defender das intempéries.
Caminhei nas ruas, observando monumentos e casas construídos no melhor estilo georgiano. Parei para fotografias. Para consultar mapas. Para olhar vitrinas. Para comer. Para alimentar pombos.

Ainda o inspirado flautista trabalhava. Adentrei a Bath Abbey, em cujo frontispício anjos pétreos escalam eternamente a escada de Jacó rumo ao céu. No interior, distrai-me apreciando vitrais que narram a vida de Cristo e tentando ler inscrições medievas.

Ao sair, às 4h30min, eis ali, impávido, o flautista. Coloquei, então, uma libra no gorro e parti levando a imagem do velho artista estampada nas retinas e o som da flauta gravado na memória.

sábado, 14 de maio de 2011

Que a morte seja o fim



Se eu morrer de morte morrida ou matada antes de concluir esta crônica, ninguém saberá o quanto desejei partir flutuando entre o real e a fantasia, pois o veneno dos desejos não deixa vestígio nas vísceras e o sorriso plantado nos cadáveres pelos necrotomistas mascara as tragédias dos indivíduos.

Apenas dois amigos íntimos, diante das circunstâncias banais de minha passagem, lembrarão da inveja que sinto de Ismália, que conquistou o privilégio de enlouquecer plenamente e, após tantos devaneios, pôde lançar-se de sua torre em busca da lua, afogando-se na imortalidade de um poema.

Só uma pessoa saberá do fascínio que me provoca Li Po, não pela grandeza do gênio, eleito entre 2.300 chineses o melhor poeta do seu tempo, mas pura e simplesmente pelo romantismo boêmio do ato final daquele homem que reclamava o direito de ver o luar refletido no fundo da taça em que ele bebia.

"Para lavar velhas mágoas,/ é preciso beber mil frascos", disse Li Po, antes de se afogar tentando, sob a inspiração do vinho, abraçar o reflexo da lua nas águas de um lago. Mergulhou imaginando encontrar na Via Láctea duas companheiras inseparáveis, sua sombra e a lua, imortalizando-se na própria lenda.

Não almejo a eternidade dos poemas ou das lendas, a exemplo de Ismália e de Li Po, este tão vivo 1.240 anos depois da morte. De preferência, que meu corpo seja cremado e as cinzas jogadas ao vento numa noite enluarada. Deus me livre da missa de corpo presente, de sétimo e trigésimo dias, deus me guarde daqueles epitáfios com letras de ouro.

A certeza da lembrança dos que me amam é o bastante para satisfazer minha vaidade, até porque, como bem lembra Tu Fu, outro brilhante poeta chinês, "Depois de dez mil, cem mil outonos,/ não terás outro prêmio que o prêmio inútil/ da imortalidade". Quero morrer na paz da loucura e que a morte seja o fim.

domingo, 8 de maio de 2011

Convertidos - uma crônica buarqueana



Se eu encontrar todo mundo de blusa amarela, poderei até imaginar que é você voltando pra mim, oito horas, na rua. Aí, quem sabe, vou beber e soluçar como se fosse náufrago, último, máquina, único. Juro, por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, que não amaldiçoarei o dia em que te conheci nem me trancarei no camarim.

Quando a banda passar, tocando coisas de amor, quando a marcha alegre se espalhar na avenida, mesmo que insista, não terei ilusões, acostumado com cada qual no seu canto, em cada canto uma dor. Vai a onda, vem a nuvem, cai a folha, passarão amigas secretas com perfumes baratos de Amsterdã. Quem dessas saberá meu nome?

Não, solidão, hoje não. Também não tenho planos de amanhã me retocar nesse salão de tristezas onde se penteiam mágoas, embora os olhos do meu bem olhem outro alguém quando me revelo e tento levar todos seus desejos. Ai, quanto descuido, o dessa moça, havendo tantos marmanjos querendo entrar nos reversos da cantiga.

Os sonhos que você contou pra mim, as fogueiras, os balões, os luares sertanejos, a jaqueira, a fruta no capim, a erva daninha no chão espezinhado. Eu era tão criança! E ainda sou. Ainda sou - oh, bela - um sonhador titã, tórax de superman, coração de poeta, quase cometendo um soneto para arrombar-lhe as janelas da alma.

Pode continuar fazendo papel de louca, arrasando meu projeto de vida, garantindo que é sempre minha. Saiba, contudo, que o mar perde o valor, o fim do mundo é opaco na cabeça de qualquer marujo, que tenho um jeito manso só meu. Acorda, amor, pode ter gente lá fora, batendo no portão. Tomara que seja só um pesadelo.

Além do mais, reparando bem, a bailarina tem pentelho, marca de vacina, pereba, irmão zarolho, calcinha velha. Imagino-me, desde logo, o artista no anfiteatro onde o tempo é a grande estrela, de quem arrebatam a garganta e que sorri porque lhe desenham contrapesos nos cantos da boca, triste para quem gozou de boa vida.

Agora falando sério, nada de esperar que a morte nos una. Melhor ser feliz. E passar bem. Nada de morrer de ciúme, de quase enlouquecer. Sei que a saudade é o maior tormento, é pior do que se entrevar, mas, apesar de você, de mim, amanhã será outro dia, porque, definitivamente, não somos mais aqueles dois pagãos.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Príncipe Plebeu



Recebi faz ano e pouco, sem precisar dia, pois a dedicatória registra apenas “março de 2010”. Foi ali, sob os auspícios de São Johnny Walker, na abadia do Bistrô Lyon, que Laélio Ferreira e Isaura Rosado me entregaram o Príncipe Plebeu – uma biografia do poeta Othoniel Menezes, da lavra do escritor Claudio Galvão.

Não o li de imediato, impedido pelas turbulências dos últimos meses, mas o fiz de uma só vez, e sem favores, por admiração tanto ao biografado, um dos maiores vates da história do Rio Grande do Norte, quanto ao seu filho, Laélio, poeta fescenino da melhor estirpe, polemista inflamado, inspirado, quase meu primo.

O estilo de Claudio Galvão dispensa comentários, bem como sua capacidade em garimpar a memória dos acontecimentos. Suas fontes principais, Francisco Menezes de Melo, irmão de Othoniel, e dona Maria do Carmo Bonfim de Melo, a primeira esposa, parecem conversar conosco nas linhas e entrelinhas do texto.

O nobre “Príncipe Plebeu” recita a “Serenata do Pescador” nos intervalos da prosa, nessa mesma atmosfera polifônica. Ode à “Praieira dos meus amores”, plebeia imaginária coroada em versos, Penélope do estuário do Potengi, muito mais tesuda que a deslumbrante Kate Middleton, duquesa de Cambridge. Evoé!

Quanto ao prefácio de Laélio, emocionante. Foi inevitável chorar, ainda por cima naquele alpendre de Melancias, no balanço da rede ao sabor do vento da “Canoa Veloz”, tendo por trás do livro aberto em minha mãos, o vulto da Serra do Mel estabelecendo no horizonte os limites entre o azul do céu e o verde do mar.

Senta o ripa nos “poetas medíocres”, “de pé-quebrado”, nos “mais emproados” que declamam “babaquices” numa “porra-louquice total”. Bate ainda no Poema Processo, nos “cordelistas de bancada” e nos “esfumaçados vates performáticos”. Sem esse breve parêntese no lirismo, convenhamos, não seria Laélio.

O trabalho de Claudio, publicado pela Fapern com o selo da Coleção Mossoroense, visita a árvore genealógica e a infância do menino que aprendera com a mãe “o pendor artístico, a capacidade de sentir, comungar a beleza”. Os recitais em casa, as primeiras letras, terra fértil para um Sertão de espinho e flor.

Há outras personagens importantes, a exemplo do aviador João Menezes, do modernista Jorge Fernandes e da poetisa mossoroense Helen Ingersoll, que em 1947 escreveu: “Amar.../ Mas não amar a um só homem./ Que o coração do homem é inflexível” e a quem Dorian Jorge Freire dedicou crônica memorável.

Vitórias, desgraças, pioneirismo, política, traições, academia de letras. O fescenino revelado por Celso da Silveira – que saudade de você, meu amigo. A alma do príncipe sem metais visto por Olegário Mariano como “o maior entre todos os do norte do Brasil” e a quem, no estilo de Laélio, saúdo com um Saravá!