sábado, 26 de maio de 2012
Língua morta
sábado, 19 de maio de 2012
LYON
sábado, 12 de maio de 2012
Doutor Saraiva
sábado, 21 de abril de 2012
As vaginas de Hazel Jones
sábado, 14 de abril de 2012
Ave, Kydelmir!
sexta-feira, 30 de março de 2012
ESTAÇÕES
sábado, 17 de março de 2012
Augusto Floriano
sábado, 10 de março de 2012
Estado de coisa
sábado, 3 de março de 2012
Fora do texto
sábado, 7 de janeiro de 2012
The end
sábado, 24 de dezembro de 2011
Palavras e amigos
sábado, 17 de dezembro de 2011
Conto de Natal
Inacreditável: acabo de disputar o banheiro com Papai Noel. Ele chegou transtornado, suando feito tampa de chaleira, e furou a fila sem a menor cerimônia. A vez era minha, juro por Deus, então protestei gritando um “Êpa!” logo ecoado nas bocas dos demais sofredores. Alguns, em situação visivelmente pior, acrescentaram desaforos ao enredo.
Depois de encastelado naquele templo de ágata, muito bem sentado no trono, o Bom Velhinho passou a nos desejar fortuna, amor, paz, e a clamar paciência, como um perfeito cristão. Em seguida, hô-hô-hô, começou a nos intimidar: se não o deixássemos esvaziar o saco e coisa e tal, usaria as missivas com nossos pedidos a fim de limpar o fiofó.
A galera apelou, pois chantagem dessa ordem é inadmissível. Queria arrancar o indivíduo pelas barbas brancas, enfiar-lhe goela abaixo a bolinha do gorro, chutar-lhe a enorme trouxa vermelha. Ninguém, no entanto, conseguiu aproximar-se. A inhaca de peru estragado na véspera – eca! – avançava pelas frestas da porta e rechaçava o inimigo.
Interferi, mas quase apanhava. Ofereci a vez, mas não colou. Propus enviar carta por debaixo da porta, mas o papel estava lá dentro. Chamar Rafinha Bastos para comê-lo com barriga e tudo, mas Ronaldinho reclamaria. Chael Sonnen para desafiá-lo estapeando o bumbum da Mamãe Noel, mas a Lei da Palmada complicaria a vida do lutador.
Santa Claus demorou além do necessário. “De pirraça”, diziam os sobreviventes da fileira já um tanto acrescida de desesperados. O sujeito ainda provocava cantarolando “Jingle bells, jingle bells, acabou papel”. Foi quando perdi as vontades e debandei, não sem bater à porta e mandar o tal Papai Noel... ter um feliz Natal e um profícuo “ânus-novo”.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Não deu tempo reagir
Não deu tempo reagir. A bandida jogou-me na cama, invadiu-me as calças com a mão ligeira e botou para fora o que julgava seu de pleno direito. Lambeu, mordeu, esfregou entre os peitos, no rosto, engoliu, deixou no ponto. Aí, agarrou movimentando devagar, mas com força, enquanto passava a língua em meus lábios inundados de saliva.
Tomei as rédeas. Segurei-a pelos cabelos num movimento perpendicular que a deixou de lado, sobre o colchão. Entrei fundo, sem pedir licença, sem alterar a pintura, deslizando entre paredes de carne úmida. Ela reagiu com arrepios, gemeu e mais gemia, baixinho, com um ou outro sobressalto, na cadência dos nossos corpos quentes, suados.
Seios latejavam no céu da boca liberando hormônios alucinógenos através dos bicos eriçados, uma espécie de fonte das fantasias, as de sempre e as da vez digladiando-se nas mentes desprovidas de pudor. Isso, enquanto a bunda abundava entre os dedos que a apertavam, testemunho do vigor dos tecidos, da veemência da matéria pulsante.
De repente estávamos de frente, revezando-nos na escala horizontal, em cima, embaixo, a cama preenchida, parecíamos tantos. De repente nos levantamos sem sair um do outro, portas, guarda-roupa, criados-mudos, armadores de rede, cada recanto. De repente por trás, de dois, de quatro, sem pé nem cabeça, sem chão. De repente no chão.
Havia sinais de explosão quando a doida vibrou no mesmo tom. Tremores, rigidez muscular, revirar de olhos, sensação de se entregar à morte sem deixar de viver, dentes trincados, até que, atingido por ela o máximo do máximo, arranquei-me de dentro para banhá-la por fora com jatos de âmbar. Aí, enroscados, nos apaziguamos. E dormimos.
sábado, 3 de dezembro de 2011
Entre pessoa e heterônimo
Descobri algo assustador: minhas dores não caberiam nesta página. Nem que me dessem um jornal inteiro, não se mostrariam por completo. Dadas as circunstâncias, melhor mantê-las onde estão, no fundo da alma, gritando inutilmente contra as paredes do buraco negro que habita em mim, à espera de cura ou de paliativo que as adormeçam.
Madrugadas, bares, mulheres em cetins, versos para envolver musas desinteressadas ou, quem sabe, apenas distraídas, soluços ébrios entrecortando orações. Foi-se o tempo das sutilezas, quando as paixões duravam a eternidade das horas de uma noite, as raparigas vestiam luzes vermelhas e gatos pardos se amavam feito loucos nos telhados.
A poesia caiu em alto-mar, sem que dessem por sua falta, nas rotas de “Oropa, França e Bahia”. Agora, por circunstâncias vis, não consigo tocar a lira, herança de Orfeu; não posso gritar “Evoé!” para começar a orgia; e só me vem à telha, repetindo-se sem parar, a canção de Caetano com a realidade nua e crua: “O grande escândalo sou eu aqui, só”.
Queria desabar no sono em vez de escrever: a insônia é quem escraviza o lápis entre meus dedos curtos, impróprios para os adeuses. Queria dormir e sonhar: a vigília é quem instiga o pesadelo, cão de três cabeças que espreita as portas do inferno para ninguém escapar. Queria ser menos triste: quem tanto se derrama um dia será seco feito pó.
Enquanto isso, palavras feridas curvam-se aos pés da vencedora e mostram o fundo das calças sem constrangimento. Elas, as palavras, até esboçam reação, mas os acentos circunflexos pesam sobre suas veias um tanto corrompidas por desilusões, levando-as a me dizer, como naquele velho Tango pra Teresa, “Que é hora de lembrar/ E de chorar”.
Por sorte, sou muitos. Divido-me na confusão entre pessoa e heterônimo e assim sobrevivo dos que me absorvem. A ideia do múltiplo pulveriza a angústia e evita que o indivíduo em estado de merda puxe em si a descarga. Estopar o vale de lágrimas, porque existe vida além das covas, será o próximo ato antes de reabrir o barraco à visita pública.
sábado, 26 de novembro de 2011
"Me lave"
Em San Marcos, no Texas, Scott Wade criou a “Dirty Car Art”, que ouso traduzir como “Arte de Carro Sujo”. Ele aproveita a atmosfera poeirosa semelhante à de Mossoró para criar obras de arte nos vidros de veículos estacionados em via pública. Do pó, nascem e renascem pessoas, animais, plantas, paisagens, monumentos, criaturas surreais, de tudo.
Meu automóvel, que é preto e só vê água quando chove, não por desleixo, mas pela demanda, daria um painel sertanejo, com vaqueiros trajados à rigor, cavalgando no chão rachado em busca das reses perdidas na caatinga. Muito melhor do que encontrá-lo servindo de quadro negro para piadinhas tão antigas quanto a sagrada posição dos monarcas.
Nada mais cafona do que escrever "Me lave" no vidro ou na lataria de um carro empoeirado. Pior se o carro for o meu, pois, além de tudo, o indigitado corre o sério risco de contrair tétano. Além disso, há de se duvidar dos hábitos de higiene física e mental de quem sente prazer em enfiar o dedo na sujeira para deixar mensagens cheias de “originalidade”.
E não se resume à cafonice. O ato, degrau anterior à coprofagia, reveste-se também da maior cara-de-pau - e o caso é mesmo esse - quando o paladino da limpeza automotiva é famoso pela aversão à água, escovas de dente, desodorantes. Revela a doença que os neofreudianos descrevem, em documentos secretíssimos, como filhadaputismo latente.
É, camarada, vi você ensebando o vidro traseiro do Cid Móvel com seu dedo sujo, no pingo do meio-dia, e tive uma vontade quase irresistível de enfiar-lhe o meu nas suas costas para escrever "Vá tomar banho", "compre pastilha", "passe limão" ou, ao menos, para lhe proporcionar um toque reto sobre colocação pronominal, básico da língua portuguesa.
sábado, 19 de novembro de 2011
Inveja de quem sabe cantar
O que dizer da mulher que traz a constelação de Cygnus inteirinha ajoelhada ao pé esquerdo? Estrelas imortalizadas entre o verde e o azul, destacadas nas incandescências da pele, se não me traíram os sentidos da aquarela naquele instante de alucinação coletiva.
Falar dos olhos que o sorriso aperta, dos lábios pintados em vermelho-coral para uma guerra de paz? Da cachoeira de cabelos negros pelas costas, das carnes fartas? Que tal as linhas sinuosas, o alumbramento, o pingo de ouro derretendo-se na fornalha do colo?
Os trajes sóbrios, impulso de embriagá-los em nudez! E ajoelhar-se ante a santa inspiração deste inocente pecador, clamar justiça às vistas famélicas capazes de cair em tentação num gracejo buarqueano, mesmo se fechados “os ouvidos e as janelas do vestido”.
Deu sede, mas água não passou. Qualquer poeta tem, nessas horas, necessidade de goles a mais de lirismo, do contrário perde as medidas do soneto e se lança à libertinagem surreal das metáforas. E o cronista, sendo também um qualquer, sufoca-se na prosa.
Ah, se eu fosse Manassés! Capaz de desvendar "A Lua, o amor e o mar", de traduzir em letra e acordes a paisagem inquietante que arrebatou linhas e entrelinhas da redação, de estender no "Varal do tempo" rosas em busca de Sol, de andar no rastro da musa.
Quem dera a sorte mineira de Renato Motha! Amanhar versos para Maria Rita colher: “Tens o teu escudo, teu tear/ Tens na mão, querida, a semente/ De uma flor que inspira um beijo ardente/ Um convite para amar". Dias assim, morro de inveja de quem sabe cantar.
sábado, 12 de novembro de 2011
Passaporte diplomático
Viajei bastante, conheço razoavelmente bem o Rio Grande do Norte, quase todos os Estados brasileiros, alguns países. Nas viagens ao exterior, há sempre a preocupação com a entrada. Sei de pessoas que, mesmo atendendo ao rol das chatices burocráticas, foram barradas, humilhadas e obrigadas a voltar, amargando prejuízo econômico e frustrações.
Da última vez que estive nos Estados Unidos, terra de muitos amigos queridos, o agente da imigração foi extremamente grosseiro. Fez comentários hostis, meneava a cabeça a cada pergunta que lhe respondia, avaliava a documentação com desconfiança. Escolheu-me para saco de pancadas ou para externar sua xenofobia idiota contra latino-americanos.
Entrei. Irritado, mas entrei, certo de que aquele é comportamento isolado. Os colegas do indivíduo, nos guichês de atendimento espalhados no imenso salão do Aeroporto Internacional de Miami, atendiam aos visitantes com cordialidade. O mesmo posso dizer dos servidores do Consulado Americano em Recife-PE, aos quais submeti duas solicitações de visto.
Quem já saiu por aí com passaporte pé-duro igual ao meu compreende. Edir Macedo, chefão da Universal e da Rede Record, cansou dos maus tratos, fincou pé e recebeu do Itamaraty, semana passada, um passaporte diplomático. O missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, inquilino da Bandeirantes, obteve o dele muito antes.
O jornalista Lauro Jardim esclarece na coluna Radar on-line, da Veja, que "Os portadores de passaporte diplomático têm tratamento diferenciado nos aeroportos e alfândegas. Além de não pagar pelo documento, a vantagem mais evidente é a dispensa da revista aqui e em vário países. Também não enfrentam filas". Quem me dera nunca entrar em filas!
A própria comunidade evangélica chiou. De outros segmentos, lógico. Houve quem dissesse que as Sagradas Escrituras são o passaporte necessário aos mensageiros da palavra. Nesse caso, acredite: a Bíblia não funciona. E ainda: o comportamento do governo representa um passo na concretização do Estado laico que a Constituição prevê desde 88.
Há muito tempo os cardeais católicos possuem o direito recém-conquistado pelos dois líderes do cristianismo luterano. Penso, e me perdoem a franqueza, que, em vez de ampliar, Brasília deveria cassar o privilégio dos religiosos. Todos. Do contrário, daqui a pouco, Fernandinho Beira-Mar funda a Igreja Internacional do Pó e ganha folga diplomática.
Pela caridade, pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas do Pedal Quebrado, não digam que estou comparando Beira-Mar aos cardeais católicos e ministros protestantes. A questão é outra: se o passaporte diplomático destina-se também a sacerdotes, qualquer deles pode requerê-lo, seja a entidade séria ou picareta, desde que legalmente constituída.
Da parte deste caboclo avesso a salamaleques, restam o estresse das entrevistas de admissão, o risco de voltar de um aeroporto se a mulher do entrevistador tiver dormido de calças jeans na véspera da sabatina. Mas, beleza! Se isso acontecer, viajo a Bilica ou ao La Boquita De La Noche, onde passaporte azul tem potencial superior ao vermelho.
sábado, 5 de novembro de 2011
“QUE SORTE – Escapou mais uma vez”
"Invejo as flores que murchando morrem,
E as aves que desmaiam-se cantando
E expiram sem sofrer..."
Álvares de Azevedo
O desmaio é uma experiência assustadora, espécie de ensaio para a morte. Desmaiei em pleno sábado enquanto escovava os dentes. Acordei minutos depois, nu, deitado no chão com metade do corpo no banheiro e outra no quarto. Tremenda dor na cabeça ferida em três lugares e na coluna cujos reflexos da queda ainda não foram avaliados.
Voltei aos poucos e também aos poucos, enquanto a mulher e os meninos se acalmavam, tomei ciência dos detalhes. A pressão arterial em 10/7, vista no tensiômetro caseiro, era dos pormenores estranhos para quem, desde moço, tenta domar a hipertensão. Recusei-me, logo de início, a preocupar meus pais, irmãos e minha avó. Todos viajando.
A ideia de poupar a família não perdurou. Recebi socorro, fiz exames para avaliar as causas e as consequências do “apagão” e passei a tomar “remédio controlado”. Feitos os testes necessários, incluindo a ressonância magnética, em qual estrutura o sujeito se sente enterrado vivo, confirmei as suspeitas de tantos anos: não tenho nada na cabeça.
O coração parecia inquieto no emaranhado de estalactites e estalagmites do eletrocardiógrafo. O diagnóstico, no entanto, diz estar bem o “Órgão muscular situado na cavidade torácica constituído de duas aurículas e dois ventrículos, e que recebe o sangue e o bombeia por meio dos movimentos ritmados de diástole e de sístole” (copiei do Aurélio).
Na quarta-feira, dirigi-me ao cemitério a fim de homenagear a memória de parentes e amigos mortos. A distância entre nós, ante os efeitos psicológicos do susto, pareceu-me menor do que noutros Dias de Finados, mas, logo na entrada do campo santo, recebi um panfleto evangélico com o seguinte título: “QUE SORTE – Escapou mais uma vez”.
A mensagem, se não exerceu o poder da conversão, abriu-me o sorriso há dias acorrentado pelo medo de perder de vez os sentidos sem dizer adeus, pedir perdão, perdoar. Coincidência? Sopro de Deus na vida de um agnóstico convicto? Por agora, contenta-me saber da palavra em sua essência, conquistando, devolvendo a luz da esperança.
sábado, 29 de outubro de 2011
A um soneto
Melhor dizer na generalidade das metáforas, se alguma delas me acudir neste vale de lágrimas antes de os neurônios boiarem nos humores do uísque que desce rápido, goela abaixo, inunda veias, artérias, e se lança - ou me lança? - nos labirintos da loucura. Permita-me, deus dos ateus, penetrar de fala dura a santidade das palavras, pois a missão que se desvela roga, implora, frases virgens na foz da língua úmida.
Sem lhes roubar a pureza, ternura necessária a tirar dos ombros as ruínas do coração em frangalhos, depositando os entulhos em lugar digno. É a morte do verbo numa espécie de haraquiri, a caneta como espada. Ou, na boa, a eutanásia do suspiro, "a morte sem sofrimento". Creia, amiga, até o mau poeta escravizado nas entrelinhas da prosa sabe quando o soneto não o transportará à chave de ouro. E desiste.
Dedico-lhe, portanto, versos sem saída nascidos com alguma métrica, alguma rima, algum sentido, mas que se veem, depois de tantas reescritas, encurralados na pobreza da alma que se rende à sensatez da realidade implacavelmente... fria. E pergunta: por que a inspiração trai? Por que anjos mentem feito demônios sádicos? Por que musas aliam-se a inimigos da lira? Por que a poesia humilha o pobre criador?
Desarme-se e me responda à cor daquelas vistas que observavam a esquina do mundo antigo da infância: devo concluí-lo? Recomeçá-lo? Esquecê-lo? Rasgá-lo? Onde diabos, mulher, seus gemidos se perderam? Que nunca mais. Em tempo: please, don't let me down com ironias, o melhor e pior de você, afinal a eloquência dos perfumes se revela, muitas vezes, no silêncio das flores. Amo você, mas sinto medo.
Mais que isso: é pavor! De te conhecer por fora, além das letras pelas quais se reinventa em esfinge e me devora, e me chupa o juízo. É pavor! Dos olhos de fogo os quais só me falta plantar num rosto. Amar composições inacabadas, mantê-las ensimesmadas ou dar-lhe à luz e correr o risco de encontrá-las nas mãos de outras criaturas prenhes de fantasia? Eis a questão. Diga-me, insisto, já não sinto aonde vou.
sábado, 22 de outubro de 2011
“Mister Gaddafi”
Certa feita, surgiu na sala de aula do professor Michael, especialista em pes-soas com muitíssima dificuldade em aprender Inglês, o debate sobre política. Cada um dos estudantes, e havia gente de várias partes do mundo, deveria tentar descrever o sistema governamental do seu país.
Os relatos dos alunos de origem islâmica chamavam atenção pelas diferenças em relação a nós, nossa visão cultural e sistemática de poder. Os relatos oci-dentais, digamos assim, igualmente causavam espécie aos amigos árabes. Tudo isso, no entanto, sem afastar o clima respeitoso.
Muhammad e Ali, cujos nomes pronunciados nessa sequência remetem ao pugilista americano Cassius Marcellus Clay Júnior, descreveram a Líbia de 2001, um período de otimismo, com o fim das sanções da Onu e a retomada das negociações com a Europa, no setor de petróleo e gás.
Confrontados com o conceito de ditadura, defenderam “Mister Gaddafi” – e te-nho a impressão que na época escrevíamos “Kadafi”. Demonstravam, em suas palavras, reverência por aquele que, em nossa maneira de enxergar as coisas, não passava de um déspota corrupto e sanguinário.
Nada estranho, pois, na década passada, os grandes líderes mundiais faziam questão de aparecer abraçados com o tirano. Tony Blair o visitou duas vezes, sem se lembrar dos atentados terroristas que Gaddafi patrocinou na Escócia, em 1988, que causaram a morte de 270 inocentes.
O tirano foi abraçado por Condoleezza Rice e Barack Obama. A União Africana o promoveu a seu líder. Até Nelson Mandela, meu ídolo, responsável pelo fim do Apartheid na África do Sul, exemplo de tolerância e espírito humanitário, deu-lhe apoio público em determinadas ocasiões.
Na madrugada de sexta, fechando o dia anterior de trabalho, liguei a TV para relaxar pouco antes de dormir e me deparei com a cena grotesca do lincha-mento de Gaddafi. Primeiro, o homem vivo, limpando sangue do rosto com uma das mãos. Depois, um cadáver como troféu.
O governo dos “rebeldes” divulgou comunicado mentiroso informando que a morte se dera após troca de tiros, já quando o ferido era levado ao hospital. As imagens mostram outra realidade, a da execução bárbara, sumária, incompatí-vel com os discursos libertários da “Nova Líbia”.
Chefes de nações “democráticas”, antes aliados do regime deposto, festejaram a chacina. O único de opinião sensata, dentre os que ouvi, foi Dilma Rousseff, que, embora falando em momento favorável à democracia líbia, repudiou os festejos pelo assassinato do caudilho africano.
E Muhammad e Ali nisso tudo? Sobreviveram à guerra civil? Rebelaram-se ou permaneceram fiéis ao líder? Pobre povo da Líbia. Pelas demonstrações de vi-olência e desonestidade de propósitos dos substitutos, terá, aquela brava gen-te, um governo novo, mas de velhos costumes.
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PS: mal deixei cair o ponto final, eis que o celular apita anunciando o recebi-mento da seguinte mensagem de meu amigo Rogério Dias: “A Comissão de Direitos Humanos-ONU está investigando e irá punir com rigor os que mataram torturando Muamar Khadafi que já assassinou nada menos que 1 milhão de inocentes líbios – RIDÍCULO!!!”.
Salamalecum!
sábado, 8 de outubro de 2011
Sertão e mar
Quem nasce em Mossoró, onde o sertão vez em quando se arrepia com o cheiro atlântico que o vento tange das entranhas de Tibau, Grossos e Areia Branca, escolhe livremente, a qualquer instante, se mergulha no destino das ondas ou se embrenha nas veredas da caatinga.
As tradições do sertão e do litoral, opostas nos dicionários da língua portuguesa, avizinham-se nos ensinamentos do meu avô materno, homem da cidade com jeito de país cujo rio, no espaço de um aboio, rompe mangues, beira pirâmides de sal e penetra o mar da Barra.
Ora o patriarca estava na Fazenda Mororó, na lida com o gado quase sempre magro, no desafio quixotesco de extrair água razoável do subsolo salobro, à base de moinhos, e na ilusão de produzir frutos de sementes que a chuva, sem o menor tesão, recusava-se a fecundar.
Em janeiro, exilava-se entre o morro e o oceano, vizinho à Pedra da Sereia e ao Bar de Zé Chorão. A antiga casa de taipa com paredes caiadas, janelas e portas amarelas, ladeada por sulcos de vertentes, era, à noite, à luz de candeeiros, o melhor observatório de estrelas.
Na fazenda, os heróis do mato reuniam-se no alpendre do vaqueiro Cesário para reviver as pegas, as vaquejadas. Contavam de mal-assombros, o fogo do boitatá na mata escura, a vingança do caipora contra aquele que se atreveu na caçada sem lhe ofertar fumo e cachaça.
Em Tibau, a “Morros Vermelhos” do navegador holandês Gideon Morris de Jorge, que por lá esteve no século XVII, paraíso terapêutico do poeta Henrique Castriciano, pescadores recém-chegados da lida das marés paravam a fim de vender peixe e narrar suas aventuras.
Dos homens do campo, inesquecível a saga de Chico Mouco, sobrevivente de três raios, um deles responsável pelas mortes do pai, do jumento e do cachorro da família. Havia juazeiros habitados por fantasmas, as burrinhas de padre, as almas penadas que revelavam botijas.
Entre os lobos do mar, Ananias desvendou o segredo do batalhão de soldados que viajava no coração das ventanias da madrugada. Tidó encontrou-se com o tinhoso num heróico mergulho em alto-mar. Pirá, que era mecânico, garantia existirem elefantes na Praia do Ceará.
O leite morno amanhecia o curral ao bater o fundo das canecas, o café de Dona Terezinha, feito no forno a lenha e coado no pano. No almoço, paçoca de pilão, bode assado, maxixe, arroz de leite. A janta, no último claro da tarde, e a família em torno da tigela de coalhada.
“Olha o grude! Olha a tapioca!” Assim anunciava-se o dia no sopé do Morro das Sete Cores. Por volta das 13 horas, peixada de cioba e pirão ou cavala frita. Feijão e arroz branco no acompanhamento de ambos. Aqui e acolá, taioba, siri. Vencida a tarde, o leite, o pão, a sopa.
Nos dois casos, as mesas enormes de madeira, o avô na posição patriarcal, à cabeceira, de frente para a imagem de Santa Luzia. Morreu cego, mas nunca perdeu a fé. A avó, ao seu lado esquerdo da fazenda e direito na praia, sempre insistia para todo mundo comer mais.
Meninos virgens pastoravam o amor dos bichos com instinto animal. A pressa dos galináceos. O cio das vacas, o faro dos touros, mugidos, montas, orgasmos. As potrancas, como em versos de Olegário Mariano, sacudindo as crinas para o corcel que lhes erguia as patas.
Tais moços buscavam em vertentes afastadas, a nudez das praieiras, amores de Othoniel Menezes; e aguardavam, ansiosos, as tardes de domingo para testemunhar as evoluções de casais que se refugiavam nas alas secretas da formação erodida denominada Labirinto.
Montava-se em burro bravo, cavalgadas, fabricavam-se baladeiras com ganchos de pereiro e ligas de pneu, bois de osso, cabra-cega, bonecos de sabugo de milho... Empinava-se pipa, guerreava-se com torrões, pescaria, jacaré, enchiam-se garrafas de areias coloridas.
Há no espírito dessas memórias, a ampulheta com todas as areias da região, dando o norte de que, acertadas as profecias do beato Antônio Conselheiro, sertão e mar, virados um no outro, permanecerão no mesmíssimo território, na harmonia de séculos. Ao menos aqui.
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Crônica prublicada na revista Preá.
sábado, 1 de outubro de 2011
Arrumando o embornal
Pretendo rever amigos em Wenatchee, cidade encravada no Estado de Washington, lamentando a ausência de um deles cujo coração, de muito ocupado em distribuir amor e generosidade, esqueceu-se das próprias funções orgânicas, parando de bater terça-feira, 10 de maio de 2011.
Mencionei-o em crônica que escrevi de lá, Karl Ohler, o “pai americano” de Samara e, por consequência, meu sogro postiço. A Expressão aspada carece de explicação: quando jovens participam de intercâmbios em países estrangeiros, eles se incorporam às famílias que os hospedam.
Minha companheira, que morou lá aos 17 anos, sempre o tratou com tal deferência. E eu também, desde a primeira vez que trocamos palavras por telefone, num drible ao inglês banguela que mastigo cabralinamente, como quem masca fonemas indo-europeus no idioma pedra de sertanejo.
Karen Ohler, a “mãe americana”, permanece entre nós. Quando a vi no inverno de 2006, ao descer do trem Amtrak que nos levou, a mim e a Samara, de Seatle até lá, lembrei-me de minha mãe. O porte físico, o olhar acolhedor, a assistência impecável para que nos sentíssemos em casa.
Curiosamente, Karl não era estadunidense por nascimento. Seu berço, aos 8 de fevereiro de 1952, foi Belícia, Croácia, de onde se mudou para Wenatchee com apenas sete anos. Brindamos com uma aguardente croata, de mais de 70 graus, com saudação apropriada. Algo como “Givili”!
O jornal da cidade de aproximadamente 40 mil habitantes, com tiragem de 40 mil exemplares, noticiou o falecimento: “Karl tinha aparência austera, mas todos que o conheciam podiam ver através dela. Ele era um homem honrado, excelente marido e pai, e uma pessoa maravilhosa”.
E prossegue informando sobre suas paixões, entre as quais as partidas de golfe e os pássaros. “Sua família incluía uma variedade de cinco papagaios”. No meio do texto, uma expressão que resume o caráter do ser humano: “Karl era amado por sua família e amigos”. Assino em baixo.
Bom, se um ônibus espacial de seis toneladas não atropelar o avião, voltarei logo para as bandas de cá, a rotina dos bares, dos pesares. Das alegrias, também, da família, do encontro com os leitores deste Canto de Página que às vezes fede, às vezes cheira, mas não ofende ninguém.
sábado, 24 de setembro de 2011
“Amar uma mulher sem orifício”
Sou fã de Chico Buarque, mas discordo dele nesta história de “Amar uma mulher sem orifício”. Na verdade, não é bem discordar, pois respeito as opções sexuais, as taras, as manias, de todo mundo. Se meu ídolo quer se dedicar ao onanismo icônico religioso, se é que entendi a relação entre o... o... e a cara dos versos, terá toda licença poética.
Nutro grande admiração por mulheres de carne e osso, com as aberturas que Deus lhes deu. São caminhos naturais para o nirvana, olhos nos olhos, boca na boca, aquilo naquilo, boca naquilo, aquilo na boca, indispensáveis à dieta de um homem que, embora jovem, contemporâneo, sente dificuldade na adaptação a certas, digamos, “modernices”.
Quem sou eu, criatura abandonada pelo simbolismo, boêmio da asa quebrada que, sem autonomia de voo, conforma-se em amanhecer sentado em monturos de lirismo que bêbados constroem nos corredores da Cobal... Quem sou eu, cronista de meia pataca, para discutir assim a obra de um dos gênios da MPB, pelo fato de sua elevação espiritual.
Ocorre-me, no entanto, a velha máxima popular – mentira, inventei-a agora – segundo a qual “o espírito se eleva quando a carne despenca”. Por assim dizer, vencidas as forças do homem, melhor adorar estátuas, protegido da sedução que dadas cavidades exercem, em vez de se empanturrar com remédios de olhos azuis – mentira, de novo!
Agora, falando sério, preferia não brincar com Seu Francisco, cujas canções alumbram meu amor. Vai que ele, o Velho Chico, agora com a mania de fuçar no Google, se enxerga por aqui e me expulsa do fã-clube, sem direito a ouvi-lo sequer em radiola de ficha. Vixe, Maria, já estou com o orifício na mão, melhor encerrar a ladainha. Desculpa aí.
sábado, 9 de julho de 2011
Without words
É como todo mundo fica, “sem palavras”, quando assiste ao vídeo-documentário cujo título ouso reaproveitar, no qual a produtora Almudena Tora revela o drama de Jack Agüeros para os webleitores do jornal The New York Times. O poeta nova-iorquino, autor de obras reverenciadas como Lord, Is This a Psalm? (Senhor, isso é um Salmo?), sofre do mal de Alzheimer faz sete anos, e chora ao relembrar vagamente de um dos tantos livros que escreveu.
“Meu pai não consegue mais escrever nem ler”, conta o filho Marcel. “Eu me recordo do tempo em que ele escrevia. Ficava acordado a noite toda, feito um maluco”, diz a filha Natalia. “Não ficou nada na minha cabeça”, responde Agüeros, de semblante sereno, voz mansa, corpo fragilizado. Ensaia um carinho na cadela Niki, a quem chama de “La Nicaña”, e, ao ser instigado acerca do quanto produzia, lamenta: “Devia voltar a escrever... É bom para o coração”.
O prato de comida, a colher, os remédios, as plantas no umbral da janela, o manuscrito, uma antiga canção em louvor à manhã, outra revelação: “Não me lembro dos meus poemas”. Recordou-se, por evocação de Natalia, do livro Correspondence Between the Stone Haulers (Correspondência entre Carregadores de Pedras). Foi aí que riu brevemente e pôs os dedos enrugados sobre a boca tentando disfarçar a emoção contagiante. Foi aí que me fez chorar.
O vídeo se encerra com mensagens humanitárias valorosas não somente para familiares de pessoas que vivem com Alzheimer, mas também para aqueles que nunca se imaginaram na situação nem de uns nem de outros. A experiência compartilhada pela família Agüeros ensina a amar acima das aparências, além de como desejamos que os indivíduos sejam, a valorizar o momento – o carpe diem, de Horácio –, pois “o que você tem hoje pode se perder amanhã”.
VEJA TAMBÉM O VÍDEO ORIGINAL DO THE NEW YORK TIMES.
sábado, 25 de junho de 2011
Voyeur
Linda! Muito mais que nos umbrais da puberdade. Sorridente também, talvez feliz. Está feliz. Vi-a por acaso, depois de séculos, mas ela sequer percebeu-me o espanto, os suores, os rubores, os passos distraídos do homem que, meio zonzo, deixou-se dominar por um surto de infância.
Passei despercebido tanto de propósito, tanto por fraqueza de espírito. Permaneci invisível, traduzido em megabytes, olhando... olhando... olhando a exemplo de um voyeur aprisionado a fantasias antiquíssimas, inalcançáveis a braços humanos reincidentes em afrouxar as próprias fantasias.
Não aprendi o segredo dos nós, embora tenha sido marinheiro noutra encarnação. Manias de vidas passadas trago nas veias, esse coração tatuado pelas ondas de todos os portos. E quando me considerava aposentado das marés, eis que me lançam à deriva, descrente até das certezas.
Lembrará de mim quando em vez, nem que seja com desdém? Saberá ainda os poemas que o vento arrebatava-lhe dos lábios? Guardará nalgum compartimento secreto o caderninho azul, seu confidente? Ou tudo aquilo, todo o passado, a distância e o tempo sepultaram a sete palmos?
Ocorreu-me a antologia de Vinícius. Que fim terá levado? De todo azar, já se fez “do amigo próximo o distante”, apesar das velhas promessas de ser atento ao meu amor, “com tal zelo, e sempre, e tanto”. Foram demais os perigos, as paixões, tantas criaturas lindas espalhando sofrimento.
E essa minha amiga distante e distraída, sem fugir da inspiração do poetinha, agora nas formas de “Uma mulher que é como a própria lua:/ Tão linda que só espalha sofrimento,/ Tão cheia de pudor que vive nua”; e eu, cansado, atraiçoando “o humano coração com mais verdade”. Mentira!
domingo, 19 de junho de 2011
DESINFORMAR O CIDADÃO É ARMAR O BANDIDO
O secretário da Segurança Pública e da Defesa Social do Rio Grande do Norte, senhor Aldair da Rocha, proibiu o Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep) e o Centro Integrado de Operações de Segurança Pública (Ciosp) de prestarem informações sobre homicídios cometidos em Mossoró.
A justificativa dada por ele na última sexta-feira, em audiência realizada na Câmara de Vereadores, a fim de debater os índices da violência na cidade, foi a de que a pasta sob seu comando pretende criar uma central de imprensa, ainda sem data marcada para entrar em funcionamento.
A tarefa estaria, por enquanto, sob monopólio do comandante da Polícia Militar, a quem os repórteres de quatro jornais diários, da TV aberta, da TV fechada, dos diversos sites noticiosos, das revistas e das nove emissoras de rádio existentes por aqui poderão se dirigir a qualquer hora.
Com essa desculpa esfarrapada, impõe-se a cesura aos cidadãos potiguares em pleno regime democrático de direito, pelas mãos daqueles que deveriam nos proteger não apenas da violência urbana, mas também no tocante a quem investe contra outros aspectos da dignidade humana.
Não creio em boas intenções, até porque “uniformização da verdade” rima perfeitamente com “manipulação da realidade”. A ideia, de certo, é esconder números cruéis, frutos da ausência de gestão estratégica da segurança que nos confere o triste epíteto de Rio Grande da Morte.
A decisão de Aldair da Rocha ofende dois princípios da administração, o da publicidade e o da legalidade. Tentar impedir acesso a dados de ordem pública, talvez no intuito de encobrir o desrespeito a outro preceito, o da eficiência, fere a nossa inteligência e a Constituição.
É ela, a Carta Magna, quem nos assegura o direito à informação, veda a censura, garante-nos a liberdade de expressão sem necessidade de “licença” e proíbe a edição de normas embaraçosas “à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação”.
A governadora Rosalba Ciarlini, que à frente da prefeitura de Mossoró deu exemplo de democracia ao não perseguir economicamente setores da mídia críticos a outros aspectos de sua gestão, como ocorre hoje no Palácio da Insolência, deve reverter esse completo absurdo.
Se não a Rosa, mostre o Ministério Público os espinhos, utilizando remédios legais capazes de cessar a arbitrariedade, provocado pela indignação dos que não aceitam ser resumidos à condição dos “Macacos Sábios” do folclore japonês, que não veem, não ouvem e não falam.
Embora a imposição de censura seja algo muito complicado na era das redes sociais, quando qualquer indivíduo pode ser repórter da própria realidade, algo precisa ser feito com urgência. Longe do que possa imaginar o secretário, agir para desinformar o cidadão é armar o bandido.
terça-feira, 14 de junho de 2011
Tatuagem
O colibri que habita aquelas costas,
Sugando a carne fresca com o bico,
É a quem nestes versos eu suplico
O caminho secreto das respostas.
Serás por entre gritos, entre espasmos,
Passarinho liberto e prazenteiro
Ou apenas um reles prisioneiro
Do corpo, da fogueira, dos orgasmos?
Quais perfumes seduzem teus sentidos,
Os aromas sutis da castidade
Ou a força motriz dos corrompidos?
Por fim, que se declare e me revele,
Por quais razões trocaste a liberdade
Para amar tatuado à flor da pele.
sábado, 28 de maio de 2011
Era uma vez...
Pode dar cacete. Pode dar cadeia. Pode dar o inferno da pedra e a cachorra da moléstia. Direi mesmo assim que meu amigo, aquele sobre quem falei, sua paixão por uma musa sacana, deu-se finalmente bem. E muito bem. Conquistou a domadora de beija-flores e ameaça-me com detalhes, o sabor dos beijos, a temperatura dos abraços, para que eu os traduza em palavras.
Como se um pobre diabo metido a cronista, invejoso e doente dos cotovelos, fosse capaz de decifrar os caminhos da beleza em águas onde gregos e romanos naufragaram sob a égide dos vinhos de Massalia. Como se alguém, na condição de mero expectador, sentado na última linha de cadeiras do anfiteatro do mediterrâneo, pudesse descrever as formas da Cours Julien.
Cerro os olhos para não gritar, a boca para não ouvir, os ouvidos para não enxergar, as narinas para não perceber-lhe as formas, as mãos para não suspeitar do seu perfume, o sexto sentido para não morrer de tanta fome. Doutro modo, cairia da corda armada entre as paredes do buraco negro e escreveria alucinações, o calafrio de uma queda livre rumo ao desconhecido.
O tempo não está para crônica. Impossível quando o sujeito se encontra nada prosa. Outro soneto! Talvez me socorram aves noturnas, protetoras dos homens que se arremessam aos abismos, para que não quebre o pé ao tropeçar em sílabas poeticamente distraídas. Poema livre? Há séculos e séculos perdi a autonomia dos vendavais. Boêmio com asa quebrada não voa.
Mas prometi, depois de duvidar, e promessa de bêbado tem dono, a exemplo de outras coisas. O jeito então é expiar a pena através da pena, contando o que fiz questão de ignorar. Dizer algo, alimentar a imaginação dos leitores apreensivos. Uísque, pela caridade, e sem gelo, para brindarmos ao romance em construção e à história que passo a narrar. Era uma vez...
sábado, 21 de maio de 2011
O flautista de Bath
Logo que desci na Orange Grove e comecei a caminhar na lateral da Abadia de Bath, cidade encravada no Oeste da Inglaterra, ouvi o solo de flauta. Era um sábado, por volta das 13 horas, e fazia frio, algo em torno de zero grau, conforme atestava o termômetro do Ônibus.
Na Abbey Church Yard, onde se localizam as entradas da abadia e das termas romanas, estava ele, o flautista. Solitário, o velho alto, de cabeça e barbas brancas, tirava suaves canções da flauta de metal, fazendo gestos de reverência sempre que alguém depositava alguns centavos de libra no gorro de lã deixado ao chão. Na Inglaterra, isso é comum. Principalmente nas cidades turísticas, os artistas vão às ruas, sozinhos ou em grupos, batalhar a sobrevivência.
As pessoas param a fim de ver e ouvir. Se gostam, pagam. Outras seguem indiferentes ou apressadas. O malabarista que se apresentava a poucos metros, no mesmo pátio, atraiu bem mais atenção e dinheiro do que o flautista. O mímico vestido de manta azul, na Union Street, também. Mas nenhum deles demonstrava em seus respectivos ofícios a obstinação, o fôlego e a poesia do velho músico. Visitei as termas romanas, construídas no século I, que dão nome à cidade (Bath significa banho).
Na volta à praça, lá estava ele, firme e forte, transformando o frio em calor com a música, como se fosse o flautista de Hamelin, do conto de Joseph Jacobs, que conhecia melodias para todos os fins, talvez até para se defender das intempéries.
Caminhei nas ruas, observando monumentos e casas construídos no melhor estilo georgiano. Parei para fotografias. Para consultar mapas. Para olhar vitrinas. Para comer. Para alimentar pombos.
Ainda o inspirado flautista trabalhava. Adentrei a Bath Abbey, em cujo frontispício anjos pétreos escalam eternamente a escada de Jacó rumo ao céu. No interior, distrai-me apreciando vitrais que narram a vida de Cristo e tentando ler inscrições medievas.
Ao sair, às 4h30min, eis ali, impávido, o flautista. Coloquei, então, uma libra no gorro e parti levando a imagem do velho artista estampada nas retinas e o som da flauta gravado na memória.
sábado, 14 de maio de 2011
Que a morte seja o fim
Se eu morrer de morte morrida ou matada antes de concluir esta crônica, ninguém saberá o quanto desejei partir flutuando entre o real e a fantasia, pois o veneno dos desejos não deixa vestígio nas vísceras e o sorriso plantado nos cadáveres pelos necrotomistas mascara as tragédias dos indivíduos.
Apenas dois amigos íntimos, diante das circunstâncias banais de minha passagem, lembrarão da inveja que sinto de Ismália, que conquistou o privilégio de enlouquecer plenamente e, após tantos devaneios, pôde lançar-se de sua torre em busca da lua, afogando-se na imortalidade de um poema.
Só uma pessoa saberá do fascínio que me provoca Li Po, não pela grandeza do gênio, eleito entre 2.300 chineses o melhor poeta do seu tempo, mas pura e simplesmente pelo romantismo boêmio do ato final daquele homem que reclamava o direito de ver o luar refletido no fundo da taça em que ele bebia.
"Para lavar velhas mágoas,/ é preciso beber mil frascos", disse Li Po, antes de se afogar tentando, sob a inspiração do vinho, abraçar o reflexo da lua nas águas de um lago. Mergulhou imaginando encontrar na Via Láctea duas companheiras inseparáveis, sua sombra e a lua, imortalizando-se na própria lenda.
Não almejo a eternidade dos poemas ou das lendas, a exemplo de Ismália e de Li Po, este tão vivo 1.240 anos depois da morte. De preferência, que meu corpo seja cremado e as cinzas jogadas ao vento numa noite enluarada. Deus me livre da missa de corpo presente, de sétimo e trigésimo dias, deus me guarde daqueles epitáfios com letras de ouro.
A certeza da lembrança dos que me amam é o bastante para satisfazer minha vaidade, até porque, como bem lembra Tu Fu, outro brilhante poeta chinês, "Depois de dez mil, cem mil outonos,/ não terás outro prêmio que o prêmio inútil/ da imortalidade". Quero morrer na paz da loucura e que a morte seja o fim.
domingo, 8 de maio de 2011
Convertidos - uma crônica buarqueana
Se eu encontrar todo mundo de blusa amarela, poderei até imaginar que é você voltando pra mim, oito horas, na rua. Aí, quem sabe, vou beber e soluçar como se fosse náufrago, último, máquina, único. Juro, por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, que não amaldiçoarei o dia em que te conheci nem me trancarei no camarim.
Quando a banda passar, tocando coisas de amor, quando a marcha alegre se espalhar na avenida, mesmo que insista, não terei ilusões, acostumado com cada qual no seu canto, em cada canto uma dor. Vai a onda, vem a nuvem, cai a folha, passarão amigas secretas com perfumes baratos de Amsterdã. Quem dessas saberá meu nome?
Não, solidão, hoje não. Também não tenho planos de amanhã me retocar nesse salão de tristezas onde se penteiam mágoas, embora os olhos do meu bem olhem outro alguém quando me revelo e tento levar todos seus desejos. Ai, quanto descuido, o dessa moça, havendo tantos marmanjos querendo entrar nos reversos da cantiga.
Os sonhos que você contou pra mim, as fogueiras, os balões, os luares sertanejos, a jaqueira, a fruta no capim, a erva daninha no chão espezinhado. Eu era tão criança! E ainda sou. Ainda sou - oh, bela - um sonhador titã, tórax de superman, coração de poeta, quase cometendo um soneto para arrombar-lhe as janelas da alma.
Pode continuar fazendo papel de louca, arrasando meu projeto de vida, garantindo que é sempre minha. Saiba, contudo, que o mar perde o valor, o fim do mundo é opaco na cabeça de qualquer marujo, que tenho um jeito manso só meu. Acorda, amor, pode ter gente lá fora, batendo no portão. Tomara que seja só um pesadelo.
Além do mais, reparando bem, a bailarina tem pentelho, marca de vacina, pereba, irmão zarolho, calcinha velha. Imagino-me, desde logo, o artista no anfiteatro onde o tempo é a grande estrela, de quem arrebatam a garganta e que sorri porque lhe desenham contrapesos nos cantos da boca, triste para quem gozou de boa vida.
Agora falando sério, nada de esperar que a morte nos una. Melhor ser feliz. E passar bem. Nada de morrer de ciúme, de quase enlouquecer. Sei que a saudade é o maior tormento, é pior do que se entrevar, mas, apesar de você, de mim, amanhã será outro dia, porque, definitivamente, não somos mais aqueles dois pagãos.
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Príncipe Plebeu
Recebi faz ano e pouco, sem precisar dia, pois a dedicatória registra apenas “março de 2010”. Foi ali, sob os auspícios de São Johnny Walker, na abadia do Bistrô Lyon, que Laélio Ferreira e Isaura Rosado me entregaram o Príncipe Plebeu – uma biografia do poeta Othoniel Menezes, da lavra do escritor Claudio Galvão.
Não o li de imediato, impedido pelas turbulências dos últimos meses, mas o fiz de uma só vez, e sem favores, por admiração tanto ao biografado, um dos maiores vates da história do Rio Grande do Norte, quanto ao seu filho, Laélio, poeta fescenino da melhor estirpe, polemista inflamado, inspirado, quase meu primo.
O estilo de Claudio Galvão dispensa comentários, bem como sua capacidade em garimpar a memória dos acontecimentos. Suas fontes principais, Francisco Menezes de Melo, irmão de Othoniel, e dona Maria do Carmo Bonfim de Melo, a primeira esposa, parecem conversar conosco nas linhas e entrelinhas do texto.
O nobre “Príncipe Plebeu” recita a “Serenata do Pescador” nos intervalos da prosa, nessa mesma atmosfera polifônica. Ode à “Praieira dos meus amores”, plebeia imaginária coroada em versos, Penélope do estuário do Potengi, muito mais tesuda que a deslumbrante Kate Middleton, duquesa de Cambridge. Evoé!
Quanto ao prefácio de Laélio, emocionante. Foi inevitável chorar, ainda por cima naquele alpendre de Melancias, no balanço da rede ao sabor do vento da “Canoa Veloz”, tendo por trás do livro aberto em minha mãos, o vulto da Serra do Mel estabelecendo no horizonte os limites entre o azul do céu e o verde do mar.
Senta o ripa nos “poetas medíocres”, “de pé-quebrado”, nos “mais emproados” que declamam “babaquices” numa “porra-louquice total”. Bate ainda no Poema Processo, nos “cordelistas de bancada” e nos “esfumaçados vates performáticos”. Sem esse breve parêntese no lirismo, convenhamos, não seria Laélio.
O trabalho de Claudio, publicado pela Fapern com o selo da Coleção Mossoroense, visita a árvore genealógica e a infância do menino que aprendera com a mãe “o pendor artístico, a capacidade de sentir, comungar a beleza”. Os recitais em casa, as primeiras letras, terra fértil para um Sertão de espinho e flor.
Há outras personagens importantes, a exemplo do aviador João Menezes, do modernista Jorge Fernandes e da poetisa mossoroense Helen Ingersoll, que em 1947 escreveu: “Amar.../ Mas não amar a um só homem./ Que o coração do homem é inflexível” e a quem Dorian Jorge Freire dedicou crônica memorável.
Vitórias, desgraças, pioneirismo, política, traições, academia de letras. O fescenino revelado por Celso da Silveira – que saudade de você, meu amigo. A alma do príncipe sem metais visto por Olegário Mariano como “o maior entre todos os do norte do Brasil” e a quem, no estilo de Laélio, saúdo com um Saravá!