sábado, 3 de dezembro de 2011

Entre pessoa e heterônimo


Descobri algo assustador: minhas dores não caberiam nesta página. Nem que me dessem um jornal inteiro, não se mostrariam por completo. Dadas as circunstâncias, melhor mantê-las onde estão, no fundo da alma, gritando inutilmente contra as paredes do buraco negro que habita em mim, à espera de cura ou de paliativo que as adormeçam.


Madrugadas, bares, mulheres em cetins, versos para envolver musas desinteressadas ou, quem sabe, apenas distraídas, soluços ébrios entrecortando orações. Foi-se o tempo das sutilezas, quando as paixões duravam a eternidade das horas de uma noite, as raparigas vestiam luzes vermelhas e gatos pardos se amavam feito loucos nos telhados.


A poesia caiu em alto-mar, sem que dessem por sua falta, nas rotas de “Oropa, França e Bahia”. Agora, por circunstâncias vis, não consigo tocar a lira, herança de Orfeu; não posso gritar “Evoé!” para começar a orgia; e só me vem à telha, repetindo-se sem parar, a canção de Caetano com a realidade nua e crua: “O grande escândalo sou eu aqui, só”.


Queria desabar no sono em vez de escrever: a insônia é quem escraviza o lápis entre meus dedos curtos, impróprios para os adeuses. Queria dormir e sonhar: a vigília é quem instiga o pesadelo, cão de três cabeças que espreita as portas do inferno para ninguém escapar. Queria ser menos triste: quem tanto se derrama um dia será seco feito pó.


Enquanto isso, palavras feridas curvam-se aos pés da vencedora e mostram o fundo das calças sem constrangimento. Elas, as palavras, até esboçam reação, mas os acentos circunflexos pesam sobre suas veias um tanto corrompidas por desilusões, levando-as a me dizer, como naquele velho Tango pra Teresa, “Que é hora de lembrar/ E de chorar”.


Por sorte, sou muitos. Divido-me na confusão entre pessoa e heterônimo e assim sobrevivo dos que me absorvem. A ideia do múltiplo pulveriza a angústia e evita que o indivíduo em estado de merda puxe em si a descarga. Estopar o vale de lágrimas, porque existe vida além das covas, será o próximo ato antes de reabrir o barraco à visita pública.




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