sábado, 5 de outubro de 2013

Feofó iluminado


Mulher odeia cantada, 83% delas, pelo menos. É o que afirma pesquisa do OLGA, grupo que se define como "um think tank dedicado a elevar o nível da discussão sobre feminilidade nos dias de hoje". Think tanks, para constar, são entidades destinadas a difundir conhecimento e estimular o debate sobre áreas que elegem como estratégicas, a fim de promover-lhes transformações ideológicas.

As cantadas mais ouvidas, de acordo com participantes da sondagem, são "Linda" - 84%, "Gostosa" - 83%, "Delícia" - 78%, "Fiu fiu" - 73%, "Princesa" -  71% e "Nossa senhora" -  64%. A maioria se dá na rua, embora muita gente relate assédios inconvenientes por parte dos colegas de trabalho. Quem reage é chamada de "Metida" - 45%, "Baranga" - 16%, "Gorda" - 13%, "Feia" - 23% e "Mal-comida" - 25%.

A timidez me deixa praticamente fora das estatísticas. Pelo que lembro, cometi duas imposturas, a primeira por questões de ordem linguística e a segunda depois de beber apaixonado, e com celular na mão, por uma mulher linda e inalcançável. Quanto a esta, sem delongas e sem abrir parágrafo, pedi mil desculpas e aprendi a lição: se se apaixonar, não beba! Se beber, esbagace o celular no chão.

No tocante àquela, estava eu em Brighton, interior da Inglaterra, quando, dentro de um ônibus à caminho do Eurocentres, escola onde estudei por três meses, deparei-me com uma jovem suíça de seus 25 anos, com o par de olhos mais azuis da face da Terra. Azuis, redondos, enormes, hipnotizantes, arrasadores... que nada prometiam - parodiando aqui Drummond -, embora tudo permitissem imaginar.

De repente, o ônibus parou na North Street, a moça desceu, caminhou alguns metros e entrou no edifício número 20, justo o meu destino. Naquele dia, perdi a aula divagando em pensamentos românticos e tentando decorar a cantada que, na condição de analfabeto universal, havia rascunhado para a figura, com auxílio do dicionário: "Your eyes are like the sky light" ou "seus olhos são como a luz do céu".

"Your eyes are like the sky light"... "Your eyes are like the sky light"... "Your eyes are like the sky light"... Repeti a frase mentalmente dezenas de vezes, durante horas. Reescrevi-a à exaustão no caderno... "Your eyes are like the sky light"... "Your eyes are like the sky light"... "Your eyes are like the sky light"... Apesar de piegas, lugar-comum, cafona, imaginei que o galanteio renderia um beijo, um sorriso.

No final do primeiro turno, texto decorado, avistei olhos azuis sentadinha num canto do refeitório, com irresistível jeitinho de maior abandonada, lendo "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway. Areia demais para o meu fusquinha 1971. De toda forma, como já estava ali mesmo, enchi os pulmões, trinquei os dentes e me aproximei todo prosa. Desejei bom-dia, pedi para sentar. Ela sorriu, autorizou. Sentei-me.

Ainda nervoso, mas resoluto, aqueci o juízo fazendo aquele exercício respiratório de mulher grávida na hora do parto - uf! uf! uf! - e soltei o verbo em alto e bom som. Todo mundo ouviu. Penso que hoje eu teria até visto permanente na Suíça se, em vez de "Your eyes are like the sky light", eu não tivesse trocado os olhos ao declarar "Your ass is like the sky light", algo como "seu feofó é como a luz do céu".