domingo, 30 de julho de 2023

MORRO DAS SETE CORES


Não lembro se era tarde ou se era dia,

Mas recordo, a maré estava cheia,

O vento chafurdava pela areia

E as dunas transbordavam de euforia.


Das brenhas do alto-mar, uma jangada

Que parecia azul do continente

Se esfregava de um jeito impertinente

Na água-flor que gemia alucinada.


Vi pássaros na pedra onde a sereia

Devora homens sem alma e sem socorro, 

Toda vez que por lá faz lua-cheia.


O Sol gritava – Luz! – já sem pudores,

E se espalhava nu por sobre o morro

Que suspirava em tons de sete cores.


sábado, 22 de julho de 2023

Resenhando Drummond



Foto: Clarisse Tavares


Escrevi uma resenha para a disciplina Produção Textual II, ministrada pelo grande professor José Carlos Redson. Para quem não sabe, sou aluno de Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Fiz Enem e tudo, já na casa dos 50, a fim de galgar à vaga que ocupo no campus de Assú/RN.

Estudar já velho, com um monte de obrigações e compromissos, é talvez mais complicado do que na média etária dos meus colegas de turma, na faixa dos 20, mas deixo o comentário no campo das probabilidades porque não sei da vida alheia. “Cada um”, como diz Caetano, “sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Para qualquer um, exige tempo que espremo entre o trabalho na advocacia e os instantes dedicados à docência em Direito, na Faculdade Católica do RN, às vezes em detrimento do espaço da família, às vezes sacrificando a porção destinada à boemia que ainda me conduz madrugada a dentro, bar em bar.

Vale a pena, entretanto. Paga qualquer esforço, reler autores frequentados na juventude, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade, com quem acabo de tomar três xícaras de café 100% arábica, colhido na Serra da Canastra/MG, enquanto recordávamos, eu e o poeta, o enredo de “O Jardim em Frente”.

Li esse conto pela primeira vez faz um trem de anos – para lá de 30, sô! –, em edição da antologia 70 Historinhas que ainda compõe o acervo da Rua dos Bobos, nº 0, na Curva do Vento, à beira do Rio dos Monxorós. A que utilizei há pouco veio por WhatsApp, reduzida a bits nas tripas dum arquivo PDF.

O texto de Carlos Drummond de Andrade, de certo modo, tem a ver com essas revoluções promovidas pelo capital, que nos trouxeram coisas impressionantes nas últimas décadas, a exemplo dos smartphones, do WhatsApp, do PDF, para otimizar o trabalho, domesticar as horas, maquinizar o que se diz humano.

Nele, o vate itabirano, imerso em prosaica narrativa, descreve a reunião dos figurões de uma empresa – os “big-shots” –, antecedida pela advertência do presidente para que ninguém, em hipótese alguma, atrapalhasse os debates. Telefonemas também não deveriam ser repassados, nem que fosse ligação do “papa” 

O chefe, na sequência, esquadrinha o tema do debate, minuciosa e cartesianamente, “como quem divide um leitão”, mas é interrompido pelo porteiro que, descumprindo a ordem, bate à porta insistentemente, até ela ser aberta, sob protestos dos executivos, e apresenta uma mulher aflita, que mora ali, na redondeza.

O gesto só não provocou a demissão do serviçal pelo receio dos maiorais de a dispensa infringir a lei trabalhista, sem dizer da surpresa diante da senhora transtornada, que pedia algo inusitado: autorização para sepultar o cadáver do canário da família no jardim da firma, por lhe parecer um “lugar bom para ele descansar”. 

A casa onde gorjeava o bichinho é grande, com árvores no quintal, mas não oferece intimidade para o descanso eterno. O enterro é autorizado e os “big-shots” suspendem os afazeres para render homenagens à memória da ave cujo corpo é depositado no solo em “uma caixinha forrada de veludo azul-claro”, solenemente.

Drummond, como se sabe, era modernista, daí características do movimento brotarem no conto, a começar pelo uso do inglês para designar os chefões corporativos, rompendo a pureza do português parnasiano. A linguagem, em verdade, é coloquial e beira a oralidade, com frases curtas que nos inundam de imagens.

O cotidiano, aspecto também inerente aos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922, ganha vulto no choque entre o capitalismo frio e cartesiano, encarnado no comportamento dos dirigentes empresariais; e a vida de pessoas comuns – as telefonistas, o porteiro, a dona do canário – prenhes de subjetividades. 

São os dois últimos, a propósito, o porteiro que desobedece à ordem do chefe, mesmo correndo risco de demissão; e a dona do passarinho morto, com tocante sensibilidade, que desafiam a frieza do universo corporativo com gestos de elevada empatia cada vez mais raros no dia a dia, no corre-corre das cidades grandes. 

E o ritmo da escrita? Quanto engenho! Os detalhes, as intercalações, os períodos curtos, a pontuação, paralisam, dão nos nervos, como o “bater com esse lápis” e o “toc, toc, toc, na mesa”, a ponto de o leitor, do lado de cá dos acontecimentos, perceber e sentir a chatice, a demora, o marasmo daquele evento.

A narrativa se expande, contudo, para descrever a dimensão humana da pausa nos afazeres empresariais em homenagem à dor da mulher anônima, que sobrepõe o luto prosaico pela morte de um pássaro aos elevados e urgentes interesses do capitalismo. É, na prática, a poesia que sempre se faz prosa em Drummond.

Penso que não havia canário na “caixinha forrada de veludo azul-claro”. Havia a sensibilidade assassinada por você e por mim, que ressuscita de vez em quando nos terceiros dias, voltando a morrer diante de nós neste ciclo sem fim, da agonia, tentando nos seduzir para a beleza das coisas breves e dos pequenos gestos.

sábado, 8 de julho de 2023

O piano

Não toco nem tambor. Quando jogava capoeira pelas praças de Mossoró, final dos anos 1980, início dos 90, sequer batia palmas para não tirar berimbaus e atabaques do ritmo. Fase boa, apesar do perigo de ser preso, visto que algumas autoridades, infectadas pelo racismo estrutural, confundiam o esporte com a vadiagem.

Por contradição, ironia ou castigo cósmico, sempre fui apaixonado por música. Um ouvinte chatíssimo, igual a torcedor que só conhece, no futebol, as faces quadradas da bola, mas que esculhamba técnico, jogadores, árbitro, bandeirinhas e até gandula, no auge da disputa. Menos, menos. Exagero! Eu não sou tanto.

Exatamente agora, rascunhando no bloco de notas do celular este texto que se pretende crônica, assisto a apresentações de pianistas de várias partes do mundo, graças ao YouTube e ao bom gosto de papai. Polônia, Japão, Brasil, EUA, a linguagem da harmonia é universal e não conhece a barreira semântica da palavra.

No ramo, contudo, não passo de apologista. Apologista razoável, dado ao privilégio de ouvir, ao longo de quase 52 anos, Laíre Rosado ao piano Schumann em que também praticaram o pai e os irmãos dele. Foi adquirido no Rio de Janeiro, transportado em barco até Areia Branca, onde se contratou um caminhão de frete.

Até tentei ser pianista recebendo aulas do magistral Ari Duarte, na casa que dava de ombros com o prédio da Gazeta do Oeste, depois incorporada pelo jornal de Canindé Queiroz e Maria Emília. A mente inquieta, todavia, não me permitiu o domínio da arte. Nem piano, nem violão, nem flauta, nem gaita. Nem nada.

Por isso, fico aqui esfolando verbos, adjetivos, substantivos, arrancando-lhes tripas e tendões, na ilusão de construir uma lira milagrosa para cantar, na disritmia da prosa, a alegria de ouvir música com papai, que só não está tocando porque se recupera de uma cirurgia. “Esforço zero!”, ordenaram os médicos do médico.

Em complemento, amplio o registro de memórias e o repertório de histórias. Perguntei-lhe, por exemplo, sobre os pianos da Mossoró nos idos de 1960, lembrando-me de Brasília Carlos Ferreira, do Sindicato do Garrancho. Diz ela, havia uns 100 na cidade, no início do século XX, em demonstração de “cosmopolitismo”.

Doutor Laíre respondeu contando que Delfino Freire, comerciante rico, primeiro a viajar em carro motorizado de Mossoró a Tibau, levava o piano para a casa de veraneio todo ano, de carroça. No rastro, alguém contratado a peso de ouro para ajustar o bichinho, que, pelo transporte, chegava desafinado à esquina do mar.



A narrativa me faz lembrar Dulce Escóssia, filha de João da Escóssia, que, à época de Delfino, dividia-se entre os ofícios de costureira e de pianista. Dulce executava a trilha sonora dos filmes exibidos no Glória, no glorioso tempo do cinema mudo, segundo me contaram as suas três meninas, Lucinha, Corália e Honorina.

Trocadilho mais idiota, minha Nossa Senhora das Bicicletas: “Glória, glorioso”! Sinal de que desafino até no texto e de que o ponto final se aproxima cobrando-me respeito e silêncio. Peço desculpas. O único ritmo que me restava, o das teclas da máquina de escrever, foi-se na transição da Olivetti ao microcomputador.

A exemplo desses engenhos datilográficos, aquele piano de madeira, cordas metálicas e martelinhos percutores, com pedais para alongar as notas, parece restrito a escolas, museus, profissionais e saudosistas, sem mencionar o caso dos snobes que mantêm o móvel na sala para impressionar visitas e ilustrar fotografias.

Aqui resiste o Schumann vertical de meu avô, graças à paixão de meu pai pela música; e resiste meu pai, com sua musicalidade discreta, graças ao anel viário que lhe construíram no peito, com quatro pontes mágicas – duas mamárias, duas coronarianas. Que privilégio, esse meu, mesmo sem tocar um instrumento.