quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Borboletas negras
Janeiro era o mês das borboletas. Vinham aos montes. Negras, enormes, e tomavam conta das paredes e do teto da casa. Ninguém as espantava, talvez por saberem-nas passageiras, talvez porque a residência era pouco freqüentada no período. Todos em Tibau, os meninos pelo menos. Em fevereiro, quando se voltava à rotina escolar, ainda havia muitas delas enfeitando o terraço e a sala, uma ou outra, aqui e acolá, aventurando-se em vôos rasantes.
O que se encontrava no retorno ao lar era, na verdade, a terceira geração desses seres alados, quem sabe a quarta. Sim, pois a borboleta vive em média duas semanas após a metamorfose, na fase denominada "imago", palavra adotada na psicologia para definir aquelas imagens que a pessoa idealiza na infância acerca de alguém querido e que se conservam, intactas, pelo resto da vida, como que congeladas e imunes ao sopro corrosivo do tempo.
Reza a tradição, e mestre Mário Souto Maior não me deixa mentir, que as borboletas negras, tão pretas quanto as da casa da infância ou quanto a que pousou na testa de Brás Cubas, são mensageiras de maus presságios e da morte. Algumas culturas consideram-na espíritos de bruxas ou de anjos pagãos. Para nós, moleques do Rabo da Gata, nada disso batia na cachola; eram somente borboletas que entravam pela passagem de ano e depois sumiam.
Sonhar com borboleta de qualquer cor, na sentença de vários intérpretes, significa "sorte no jogo". Para outros, representa "metamorfose". Zhuang Zi, filósofo chinês nascido no ano 370 a.C, narrou a seu povo, com a perspectiva de figurar "o resultado da transformação das coisas", a fábula na qual ele próprio sonhara ser borboleta e, ao despertar, já não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se uma borboleta que imaginara ser homem.
Sei lá se feiticeiras reencarnadas, se almas de crianças pagãs. Sei lá se mensageiras da má sorte, da sorte, da morte, da vida. Sei lá. Só sei que por estes dias de agosto, uma enorme borboleta negra, "escanchaneta" das borboletas de antigos janeiros, entrou pela janela, fez o reconhecimento do ambiente, pousando, enfim, como se fosse o primeiro quadro fixado na palidez vertical do recinto, como se fosse a infância estampada na parede.
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