sábado, 25 de setembro de 2010

O cronista



Quem carrega nos ombros a obrigação de escrever uma crônica diária precisa estar atento às ocorrências cotidianas para não perder, no detalhe que passa despercebido aos olhos dos outros, a essência daquele texto capaz de arrebatar a atenção do leitor.

Um homem dormindo no canteiro entre flores bêbedas, a cachaça das segundas-feiras derramada sobre a mesa, os nomes das garçonetes de olhos castanhos, o isqueiro de fogo-morto, o brilho da plateia de vaga-lumes diante das estripulias do vento.

O caos no interior das bolsas femininas daria uma ótima história, mas não tão boa quanto o que poderia ser escrito a respeito da agendinha da mulher de 30, onde o poema de Ferreira Gullar rasga a garganta do tempo e mata, na arte, a rigidez dos compromissos.

Há pouco, tropecei em três causos: o grupo de meninos jogando bola de meia no Centro, num desafio ao império dos automóveis, a velha em lúcido bate-papo com a solidão e o sanfoneiro do quadro de Assis Marinho dando ritmo ao silêncio da galeria.

Nada, nada pode escapar e tudo precisa ser analisado com muita pressa, pressa de formiga à beira do inverno, pressa de quem corre para encontrar a pessoa amada, pois a crônica da edição seguinte pede urgência e o jornal é uma pilha de nervos na hora do fechamento.

sábado, 18 de setembro de 2010

Meio século



O vate Genildo Costa festejou 50 anos na última sexta-feira, com rega-bofe para os camaradas. Aquela cachacinha paraibana, o camarão pescado em Grossos especialmente para o evento, o violão afinado em ré. Cantou, chorou, recitou versos, distribuiu numa das paredes do terraço fotografias arrancadas do fe-o-fó do baú, imagens do tempo em que nasceu o grupo Poema, movimento responsável por fase deveras interessante da cultura mossoroense.

Naquela época, cometíamos sonetos de pé-quebrado, brincando de ser poeta. Saíamos de bar em bar fazendo a Arte Intrusa, ideia de Rogério Dias, desafinando o coro dos contentes (“lat’s play that”), roubando aqui as palavras de Torquato Neto. Parávamos o trânsito no “Sinal de Poesia”, interferência amarelinha de Laércio Eugênio. Batíamos as feiras livres do Estado na Camelagem Cultural, liderados pelo nosso eterno presidente Caio César Muniz.

Costinha possuía sete fios de cabelo a mais encurtando alguns micrômetros a careca reluzente e dava trabalho a dona Irene, a primeira dama, com nossas farras literárias. Levou-nos certa feita, a mim e a outro companheiro, ao único prostíbulo do mundo onde não há mulheres, ali para as bandas do conjunto Abolição IV. Questionado sobre essa curiosa circunstância, respondeu sem pestanejar: “Claro que não tem, porque não traio minha esposa”.

Desenterrou além das lembranças, a coleção de vinis: Chico, Tom, Rita, Gil, Caetano, Belchior, Zé Geraldo, Zé Ramalho. Bolachões “cheirando a guardado de tanto esperar”, mas em perfeita harmonia com o ambiente saudosista. Ouviram-se várias faixas de vários LPs. A hiperatividade do proprietário nunca o deixou, e não o deixaria agora, ouvir o disco inteiro. O chiadinho nas caixas de som, os saltos da agulha. Qual, entre os novos, terá esse privilégio?

Noite de parceiros, apesar das faltas sem abono. Noite boa. Noite Curta. Poucos dentre nós, tomados de calvície ou de cabelos brancos, quando não atingidos pelas duas coisas, preserva os hábitos noturnos. Noite do vaqueiro dos bois-bumbás que avistou Virgílio escrevendo a saga de um amor profano. Noite do meio século de Genildo, poeta em letra e música, coração de gigante, ótimo caráter, sonhador dos sonhadores, a quem desejo vida longa.

sábado, 11 de setembro de 2010

Os vinte e um de Seu Rosado



A matéria remunerada com nosso pobre dinheirinho na qual a Veja inclui Mossoró entre as “metrópoles do futuro” atiçou a curiosidade sobre a descendência de Jerônimo Rosado. Entre os erros verificados no texto, que estragaram a propaganda, está a invenção de dois meninos que as mulheres do patriarca nunca tiveram: Jerônimo Premier e Jerônimo Second.

Seu Rosado nasceu em Pombal-PB, aos 8 de dezembro de 1861, filho de Jerônimo Ribeiro Rosado e Vicência Maria da Conceição Rosado. Formou-se em Farmácia no Rio de Janeiro, onde atuava como fiscal da iluminação pública. Voltou ao seu Estado em 1889, quando abriu a primeira botica em Catolé do Rocha e desposou Maria Rosado Maia, a Sinhazinha.

O casal teve três filhos: Jerônimo Rosado Filho, médico, farmacêutico e poeta, morto aos 30 anos; Laurentino Rosado Maia, falecido criança; e Tércio Rosado Maia, farmacêutico, odontólogo, advogado, poeta, pioneiro do cooperativismo brasileiro, comerciante de livros usados, professor universitário. Sobre “Premier” e “Second”, só a fonte maluca de Veja ouviu falar.

Sinhazinha partiu em 1892, pouco depois do último parto, vítima de tuberculose. No leito de morte, conforme relata mestre Luís da Câmara Cascudo, pediu “que o marido a fizesse sepultar no Catolé do Rocha, na terra onde nascera. E casasse com sua irmã Isaura, para que não tivessem madrasta, mas outra mamãe os dois pequenos órfãos, Rosadinho e Tércio”.

Reivindicações atendidas: o corpo de Maria Amélia foi sepultado naquele recanto sertanejo e o viúvo, de 32, casou-se com a cunhada, de 17 anos, em 1893. A noiva se mudou para Mossoró, onde o marido residia e para onde transferiu os negócios em 1890, a convite do médico e líder político Francisco Pinheiro de Almeida Castro, patrocinador da drogaria.

Do segundo enlace advieram 18 rebentos, nem todos chamados “Jerônimo” e nem todos numerados, contrariando a lenda contada à revista para desgraça do repórter desavisado. A lista é grande, mas o interesse, creio, é ainda maior. Por isso, transcrevo-a com base nas certidões de nascimento e casamento colecionadas por Cascudo, na biografia de Seu Rosado.

Izaura Rosado (com z)

Laurentino Rosado Maia (homônimo do segundo)

Isaura Sexta Rosado de Sá

Jerônima Rosado, que tem como apelido o nome de “Sétima”

Maria Rosado Maia, que tem como apelido “Oitava”

Isauro Rosado Maia, que tem por apelido “Nono”

Vicência Rosado Maia, que como apelido o nome de “Décima”

Laurentina Rosado, que tem como apelido o nome de “Onzième”

Laurentino Rosado Maia, que tem como apelido “Duodécimo”

Isaura Rosado, que tem como apelido o nome de “Trezième”

Isaura Rosado, que tem como apelido o nome de “Quatorzième”

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido o nome de “Quinzième”

Isaura Rosado Maia, que tem como apelido o nome de “Seize”

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido “Dix-sept”

Jerônimo Dix-huit Rosado Maia

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido o nome “Dix-neuf”

Jerônimo Vingt Rosado Maia

Jerônimo Vingt-un Rosado Maia.

Exatamente dessa forma estão os documentos reproduzidos na obra cascudiana “Jerônimo Rosado – uma ação brasileira na província – 1861-1930”, inclusive com a curiosa expressão “que tem como apelido”. Quem quiser, consulte o livro na biblioteca pública ou no acervo da Coleção Mossoroense, porque o meu não empresto nem por cem e uma cocada preta.

sábado, 4 de setembro de 2010

A metrópole de Premier e Second



Passei dias de ansiedade, senti até embrulhos no estômago, até receber a Veja com a badalada presença do País de Mossoró. Domingo cedinho, dei plantão na portaria do prédio onde moro e, enquanto esperava o distribuidor, não conseguia tirar da cabeça a frase de marqueteiros europeus criada para a prefeita repetir ao final de seus discursos: “Mooossoróó, boom de trabalhaaar, melhor de vivê”.

Recebi a revista, sapequei os olhos na página indicada, murchei. O textículo posterior aos investimentos feitos na Editora Abril com nosso rico dinheirinho, sem mencionar a aquisição dos exemplares para o programa “Bolsa-Veja”, traz indicadores falsos, omissões convenientes ao oba-oba e erros históricos ridículos. Balde de água gelada no juízo do cidadão apaixonado pela Terra da Liberdade.

Se a ideia era atenuar a atmosfera desfavorável aos ocupantes do Palácio da Resistência, que amargam desaprovação recorde, a estratégia falhou e dificilmente redundará em dividendos eleitorais para os aliados. Isso porque pessoa alguma dará crença a tais presságios, nem aquelas que receberam a Veja com a página 110 destacada por uma fitinha azul-bebê e o cartão subscrito pela burgomestra.

Quem passa por aqui com relativa frequência sabe que a rede de saneamento básico atende menos de metade da “metrópole do futuro” também conhecida como “Cidade sem Presente”, na genial denominação da jornalista Ana Paula Cadengue. Tascaram 85% na matéria. Engraçado que, no dia seguinte, um gerente municipal desavisado falou em cerca de 50%. A Caern bate o martelo em 40%.

A “programação intensa” do Teatro Dix-huit Rosado é outro ponto controvertido, mas o pior é o que não se diz sobre o “Leão do Nordeste” e sua “população ávida por cultura”, em especial o enfraquecimento dos outrora grandes espetáculos. Auto da Liberdade, Chuva de Bala, Oratório de Santa Luzia amofinam pela redução de investimentos públicos. Sim, o museu! Fechado há quanto tempo?

“Há dez anos”, diz a peça jornalístico-ficcional, “lá não havia edifícios com mais de três andares”. A sede do Banco Mossoró, construída há décadas no Centro, tem cinco fora o térreo. Igual dimensão, pertinho dali, existe o Hotel Imperial, construção de 1990. No Alto de São Manoel, também dos anos 1990, localiza-se o Sabino Palace, de quatro andares. Prédios residenciais, desses nem se fala.

Problemas não há na região do “pós-sal”: favelização, pior sistema de transporte coletivo do Brasil, desemprego, comunidades rurais sem água, áreas urbanas intrafegáveis e às escuras, lixo e esgotos a céu aberto são tudo invenção da imprensa marronzística caluienta. Só na mente dos inimigos do “pogresio”, a candidata ao posto de “cidadona” já é a megalópole dos desacertos “estruturantes”.

Nem tudo é decepção. As referências à prole do avô da prefeita são hilárias. “Jerônimo Rosado batizou todos os filhos homens com seu próprio nome e com o número, em francês da ordem em que nasceram”. E segue: “Seu primogênito se chamou Jerônimo Premier, o segundo Jerônimo Second e por aí foi, até Vingt-un Rosado Maia”. Como diria o vate Laélio Ferreira, “Ai, minha canela!”.

O primogênito dos 21, apenas para constar, chamava-se Jerônimo Rosado Filho. O segundo, morto poucos dias após o nascimento, recebeu a graça de Laurentino Rosado Maia. “Premier” e “Second” – figa, diabo! – não passam de personagens de uma dentre as tantas brincadeiras de mau gosto que a fonte alvejante, talvez membro da gloriosa nação smurf, fez com a ótima equipe da Veja.