sábado, 27 de março de 2010

A mulher do próximo



Perdoai-me, Senhor, pois eu pequei. Mas também, não cobiçar a mulher do próximo, mesmo correndo riscos, já que o próximo estava realmente próximo, seria impossível a qualquer homem que se deparasse com a dama a quem meus sentidos despiram.

Além da penumbra do ambiente sob a lua-nova, a taça de vinho tinto seco e a brisa marinha, vieram aquela boca devassa e aqueles olhos malditos desafiar a insônia dos seiscentos diabos que me devora a cada domingo. Se foi uma provação, convenhamos, exagerastes na dose.

Felizes os homens que conseguem dormir aos domingos, sem precisar sair por aí, tomando uns goles para entorpecer o juízo, atrapalhando a sinfonia das corujas, ouvindo o lamento dos desgraçados, desfiando sozinho o seu próprio rosário de desejos.

Desejos que nem sempre são puros, desejos de trair o paladar misturando cachaça com coca-cola e de se apaixonar louca e alucinadamente por mulheres sem nome, cujos rostos serão esquecidos ao cair do primeiro raio de Sol, na hora de voltar para casa.

Bem-aventurados os que não se esquecem da noite passada nem perdem beijos na neblina. Malditos os que desprezam as conquistas, desgraçada aquela noite, desgraçada aquela mulher que se foi sem legitimar o meu pecado para morrer no esquecimento.

sábado, 20 de março de 2010

Dia de São José



O coração do homem do campo inunda-se de esperança porque choveu no Dia de São José, indício de fartura à mesa nordestina. Para os técnicos, coincidência que não garante regularidade pluviométrica. O inverno será marcado por precipitações esparsas, dizem a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e outras instituições, entre as quais, a Ufersa.

A editora-chefe Ana Paula Cadengue Ratto prefere o romantismo das profecias populares. Chegou feliz à redação depois de ver um relâmpago cortar a tarde nublada. O repórter fotográfico Luciano Lellys, capataz de fazenda nas horas vagas, fez a festa dos nossos olhos com imagens captadas durante a chuva, quase aquele céu com nuvens de mil megatons descrito por Raul Seixas.

A propósito, Karl Mesquita Leite, embaixador do Beco da Lama e do Bar do Ku, esteve na cidade e me trouxe o Guia do Observador de Nuvens, livro de Gavin Pretor-Pinney, fundador da The Cloud Appreciation Society.O trabalho enfatiza as nuvens como "rosto da atmosfera", às vezes no patamar das "obras de arte", que, adequadamente analisadas,antecipam os humores climáticos.

Aquelas das fotos de Luciano, prenhes de água, dão notícia de feijão e milho verde, de pamonha e canjica, de coalhada, de jetirana florando a caatinga, de riacho correndo lembram-me a euforia de meu avô, que, apesar dos avançados problemas na visão, traduzia a nuvem, o raio, o trovão, a saúva a partir dos relatos dos amigos e graças ao conhecimento dos segredos do sertão.

Terra seca é bonita na literatura, nos versos de Patativa, nos cordéis de Antônio Francisco, na poesia enxuta de João Cabral de Melo Neto. Melhor quando chove sobre a dura realidade das famílias rurais. Tomara, então, que prevaleçam os sinais consagrados pelo senso comum, com todo respeito aos prognósticos científicos, e se derramem sobre nós as graças do inverno de São José.

sábado, 13 de março de 2010

O túmulo d'O Ébrio



Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
(O Ébrio – Vicente Celestino)


Influência de minha avó materna, das músicas que ela cantava para os netos dormirem? Talvez. O certo é que, aos 11, 12 anos, eu já era fã de canções antigas, incluindo algumas descobertas por conta própria. O Ébrio e Coração Materno, de Vicente Celestino, entre as tantas. Assisti até ao filme inspirado na primeira dessas, e de mesmo nome, na tela no Cine-Teatro Pax. Década de 1980.

De certo, reapresentação, pois o “Balaio Porreta”, do poeta porreta Moacy Cirne (http://balaiovermelho.blogspot.com), informa-nos de sua exibição no Pax de Caicó, por volta de 1950. “No final, todos, absolutamente todos, inclusive os homens, choravam copiosamente diante do dramalhão”, comenta o vate seridoense, lembrando-me de que despejei lágrimas com metro e meio cada.

Não por acaso escrevo sobre “A Voz Orgulho do Brasil”. Acabo de ler no site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a notícia de que o viúvo da viúva de Vicente Celestino moveu ação contra a Santa Casa de Misericórdia, pleiteando titularidade do direito de “uso” do túmulo do cantor, no Cemitério São João Batista, no Botafogo. A Santa Casa, agora sei, administra os fossários cariocas.

Que nome feio da moléstia! Fossário? Figa! Deixa para lá, como diz minha amiga Melissa Hoffmann, o fato é que o cidadão José Alves Pinto, segundo marido da cantora, atriz, cineasta e escritora Gilda de Abreu Celestino, pretende, segundo parentes dela, despejar os restos mortais do tenor. Justificativa: ser legatário dos bens deixados pela esposa, que o nomeou herdeiro universal.

O juiz Rafael Estrela Nóbrega, da 30ª Vara Cível, a quem coube o julgamento do caso em primeira instância, frustrou a pretensão com argumentos simples: Alves Pinto não é da família Celestino, jazigo é bem afetado, de uso especial, e aquele em litígio, para piorar, ficou de fora do testamento da falecida. O dito-cujo – eu mencionei “dito-cujo” e não de cujus – pode recorrer da sentença.

A assessoria de imprensa da corte fluminense destaca depoimentos de parentes de Gilda, conforme os quais o viúvo pretende transferir a sepultura para terceiros, livrando-se dos restos mortais ali em repouso, algo que haveria tentado de outras maneiras. E olha que a campa onde os ébrios loucos depositam “segredos” e “lágrimas de dor” é das mais visitadas no Cemitério São João Batista.

O assunto me lembra uma tia, de saudosa memória, da qual peço licença para manter o nome em segredo. Precavida e querendo poupar os filhos desta dolorosa tarefa, ela adquiriu lote para si e para o marido no São Sebastião, nosso Cemitério Velho, muito antes de morrer. Escolheu lugar estratégico, de fácil acesso e à sombra de árvore frondosa, por ser menos abafado e claustrofóbico.

Certa feita, por erro do serviço funerário, enterraram o corpo de um estranho justo naquele canto. Confusão braba. A tia exigiu a transferência do cadáver. O município intentou demovê-la, oferecendo área diversa, maior até, se lhe aprouvesse. O contra-argumento, contudo, encerrou a briga: “Meu filho, sou uma mulher asmática e vou morrer sem fôlego se for enterrada no sol”.

P.S.: caía o ponto final ao pôr-do-sol quando o advogado José Wellington Diógenes chegou à redação. “Escrevendo? Sobre o quê?”, perguntou-me, aboletando-se incontinente diante do computador, sem esperar resposta. Leu, mostrou os cabelos do braço arrepiados e fez a observação que faltava: “E pensar que Vicente Celestino compôs o Ébrio, mas não bebia nem levou chifre”.

sábado, 6 de março de 2010

Leitura Dinâmica



“Todo o homem que lê de mais
e usa o cérebro de menos
adquire a preguiça de pensar”.
Albert Einstein


O cara é o cara, tem até nome de espião britânico. Lê página de livro em segundos, franzindo queixo e testa, balançando a cabeça em sinal afirmativo, como fazem intelectuais frente ao mistério da palavra. Em seguida, explana item por item, aparenta profundidade sem sair da superfície do texto. A plateia, antes ateia, rende-se aos milagres provenientes do troço chamado leitura dinâmica. E aplaude.

As palmas, os “Oh!”, os “Ixe!”, os olhos arregalados, a curiosidade ampla, geral irrestrita, nada o comove. Ele prossegue sem perder o ar solene dos homens de negócio, oferecendo-se para ensinar sua técnica. Em apenas três horas e a módicos tostões, promete, qualquer pessoa aprende a ler naquela velocidade, com aquela capacidade de memorização, sem cansaço, sem dor nos olhos, sem... sem... sem!

Sem prazer. A leitura dinâmica é inimiga da perfeição, assassina dos detalhes, irmã gêmea da ejaculação precoce. Visualize o sujeito percorrendo num estalar de dedos as catorze linhas de “Amar!” ou de “A minha tragédia”, sonetos de Florbela Espanca. Imagine o indivíduo, o mesmo talvez, saindo com a rainha da bateria da Grande Rio e gozando no aperto de mão. O apressado às vezes nem come.

Isso lembra o filme “Click”, do diretor Frank Coraci, no qual o arquiteto Michael Newman, interpretado por Adam Sandler, recebe um controle remoto universal munido de possibilidades fantásticas. O acessório, além das funções convencionais relacionadas aos aparelhos de TV e DVD, controla o fluxo temporal no presente e no futuro, só não remete ao passado, sempre inatingível e irremediável.

A personagem se deixa levar por aparentes facilidades da engenhoca, especialmente as do botão fast-forward, o qual aciona a cada discussão doméstica, a cada chateação no trabalho, a cada problema de saúde. De tanto avançar, Michael deixa de viver também momentos agradáveis e, digamos, necessários. Quando se dá por isso, os instantes desperdiçados, Inês é morte e ele está com o pé na cova.

Boa metáfora. Quem atravessa o texto na carreira deixa as entrelinhas em branca nuvem, abre mão da boa companhia, do privilégio de sentir a alma do verbo, de viajar nos sentidos. Não sente cansaço, dor de cabeça, coceira nas vistas, não tem olheiras. Quem aciona o fast-forward chega primeiro, mas abre mão da experiência, adquirindo conhecimentos tão profundos quanto um pires emborcado.

Ledores dinâmicos que tropeçaram na epígrafe e caíram aqui, perdidos, desnorteados, sei lá, devem estar resmungando: “Vote, cruz credo, vade retro, queima!”. Relevem aí, por favor, a deselegância do velho cronista, saudoso de quando as horas engatinhavam no ritmo das teclas da Olivetti, viciado em hábitos antiquados, como o de perder eras preciosas, chafurdando nas entranhas de bons livros.