sábado, 27 de outubro de 2012

LUZ



Noites perdidas
escondem dias infinitos.
Daí, as olheiras.

Tanta luz, meu Deus,
nos miolos de quem faz escuro
para não encarar
a superfície reversa
do espelho de metal.

De nada adiantam
palavras claras
à sombra
de lençóis frios.

Dos castelos de marfim,
corredores iluminados,
as ideais, ultimamente,
só frequentam masmorras.

A vontade que se tem
é enfiar os dedos na tomada
e apagar o Sol
num curto-circuito.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

SEM SENTIDO


 Cid Augusto

Vê-se a rua vazia
por retângulos verticais,
deserta e oprimida
entre ombros de calçadas.

Surda, não quer saber
destas palavras
que rompem o silêncio
e o abismo
da mão à caneta.

Muda, de pirraça,
não fala o que já se sabe
e se insiste dessaber.
Medo da eloquência
da língua adormecida
em outros berços.

Ah, o cheiro
que entrelinha os devaneios
faz lembrar a liberdade
que fugiu janela fora.
Era como?
Perfume de madrugada
amanhecida!

Toca com a ponta dos dedos
hesitantes
o aço da solidão
em volta do pescoço,
dos punhos e tornozelos.
No outro lado,
elo após elo,
a alma,
poema concreto,
arrasta o corpo
às profundezas.

E, como se não bastasse,
este gosto de anteontem
que só foi percebido
agora.

sábado, 20 de outubro de 2012

A ILHA




Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
(Drummond)


Quando resolvi morar na ilha, larguei tudo, inclusive os livros, e me lancei ao infinito com o coração apertado e o peito aberto. Não quis ouvir ninguém, não pensei nada, não refleti sobre as consequências do gesto tanto heroico quanto idiota, para evitar o assédio de pensamentos negativos, embora largar o continente seja em si uma derrota, na linguagem dos marujos.

Tive medo, muito medo, especialmente ao encarar ondas gigantes que me consumiam o ânimo e a resistência física. Em determinado instante, sentia-me tão cansado que o oceano pacífico das noites índicas apresentava-se com a fúria atlântica das feras glaciais. Olhei para trás e quis voltar ao continente. Era tarde, muito tarde, e todas as luzes se apagavam desbotadas.

O caminho da ilha, tomado por qualquer origem, é percurso de águas gélidas, profundas e sem dono, reservado a criaturas despidas da condição humana. Somente alguém em inequívoco e irreversível estado de coisa sobrevive aos humilhantes sopapos das vagas, às cusparadas de espuma salobra na cara, aos caldos, ao destino que tange o indivíduo ao olho do caos.

Mesmo os velhos lobos do mar, colecionadores de aventuras náuticas, conhecedores das rotas desenhadas nas estrelas, perdem-se no recôncavo, sendo o lugar mais perigoso justamente o de atracamento. A ilha se avizinha de maremotos, buracos negros, monstros e navios fantasmas capazes de proceder ao golpe de misericórdia nas almas dos desiludidos.

Uma vez na ilha, é preciso cuidado para não se perder em si, não se ensimesmar agarrado a lembranças estragadas, cutucando feridas graves com a ponta enferrujada do punhal das decepções. “Ilhas perdem o homem”, alertou-me o anjo torto a quem Deus confiou guardar os descrentes, e aquilo no momento em que descobriu os preparativos do novo salto.

Voltar ao continente é possível, mas, por enquanto, não está nos planos. Talvez depois de longas e confortáveis eras, quando exorcizados os seiscentos mil diabos, quando as unhas das feras multiplicadas nas entranhas do lugar já não arranharem o juízo. Dia desses, quem sabe do nada, a ilha deixa de se habitar e volta a ser aquele homem de carne, osso e sentidos.