O poeta e jornalista Émerson Linhares, boêmio da asa quebrada que nem eu, trafegava pela Estrada do Contorno, ladeado por Ana Ximenes, musa única e derradeira dos seus versos, quando uma placa de trânsito lhe chamou a atenção. Nela estava escrito “Av. João da Escócia”, e o “Escócia” assim, com “c” na terceira sílaba.
O velho amigo, colega dos bons tempos da redação do O Mossoroense, de quando o jornal ainda era impresso, fotografou e me enviou a imagem da placa, por WhatsApp. Logo em seguida, escreveu perguntando se aquilo estava certo e, antes mesmo de que eu lesse, acrescentou a sugestão de uma crônica sobre o assunto.
Émerson Linhares sabe a resposta. Afirmo convicto porque, como disse, militamos juntos no O Mossoroense, antecedidos por João da Escóssia, Augusto da Escóssia, Lauro da Escóssia, Lauro da Escóssia Filho, João da Escóssia Neto, João Newton da Escóssia, Maria Lúcia Escóssia e tantos outros. Eu mesmo sou Cid Escóssia.
Falou mais alto nele o instinto de editor, aguçado nas melhores práticas do jornalismo e que as atuais tarefas burocráticas no Detran não abateram. A foto e a mensagem não eram pergunta, eram pauta que recebo e realizo nestes últimos instantes de 2023. Afinal, muita gente desconhece a curiosa história do tal sobrenome.
O primeiro de nós foi João da Escóssia Nogueira, o da avenida cuja denominação alguém resolveu “corrigir” 150 anos depois, trocando por “Escócia”. Em circunstâncias normais, talvez tivesse recebido sobrenomes do pai ou da mãe, Jeremias da Rocha Nogueira e Izabel Benigna da Cunha Viana. Os tempos, contudo, eram de lutas.
O Escóssia com dois “esses” é fácil explicar. Quando João nasceu, aos 27 de maio de 1873, vivia-se o período pseudoetimológico da língua portuguesa, que foi do século XVI ao início do XX, antes do acordo ortográfico de 1931, no qual se estabeleceram padrões para a escrita de algumas palavras com “ss” ou “c” no idioma pátrio.
As mesmas regras que transformaram Escóssia em Escócia – como o nome do país – atingem Mossoró e Assú, que, a rigor, deveriam ser Moçoró e Açu. O citado acordo de 1931, todavia, consentiu a preservação de topônimos e sobrenomes, mantendo-se, conforme registrados em leis ou cartórios, Assú, Mossoró, Escóssia.
E por que João da Escóssia? Vamos lá! Jeremias, o pai, era jornalista, rábula – advogado sem diploma – e membro do Partido Liberal. Meses antes do nascimento do filho, fundou o jornal O Mossoroense, aos 17 de outubro de 1872, para fazer oposição ao Partido Conservador, sigla liderada pelo jesuíta Antônio Joaquim Rodrigues.
O vigário deitava falação no púlpito contra os liberais, enquanto estes, especialmente Jeremias, Ricardo Vieira do Couto e José Damião de Souza Mello, colegas de redação, retribuíam no periódico, que chegou a usar, no seu cabeçalho, uma inscrição em que se declarava “Semanário, político, comercial, noticioso e antijesuítico”.
Para piorar, o jornalista incendiário que anunciava o fim do poder dos papas era da Loja Maçônica 24 de Junho, inaugurada em 1873, na data que nomeia a instituição. Assim, alegando que Igreja e Maçonaria não combinavam, o vigário se recusou a batizar o rebento, a não ser que pai e também padrinho deixassem a Ordem.
Jeremias promoveu então um batismo simbólico na 24 de Junho, acrescendo o Escóssia ao nome do filho, em homenagem a São João da Escóssia, considerado patrono do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria. Tal santo, reverenciado pelos maçons brasileiros durante longo tempo, não existe, mas esse tema fica para depois.
Existem outros “Escóssias” por aí, sem ligação com os de Mossoró, além de “Escócias” e “Escócios”. O João da avenida, jornalista, artista plástico, cenarista de teatro, publicitário, xilógrafo, desenhista e caricaturista falecido aos 14 de dezembro de 1919, é Escóssia, de modo que a placa está mesmo errada. Podem mandar ajeitar.