domingo, 11 de outubro de 2009

PALAVRAS NOS BEIJOS DA FADA VERDE



Os beijos da fada verde trouxeram velhas palavras, montes delas, meio confusas e com os olhos no limiar do abismo, e que profundo, mas em razoáveis condições de uso. Acordar um Neruda, caminho para ordenação de significâncias, mesmo quando se raciocina em estado de êxtase. "Ai daqueles que não compre-enderam senão o silêncio, quando a poesia é palavra, e daqueles que só compreenderam a sombra, quando a poesia é luz de cada dia e cada noite dos homens!", adverte o poeta, encorajando quem pretende transgredir a ditadura do senso comum, protestar contra a escuridão e construir enunciados além da meia-noite, sob o signo do desejo e a ascendência da loucura.

Absintar-se às vias do alucinamento, no estilo Belle Époque, e ser independência, convencido de que palavra nasce para ser usada e abusada. Não deve ser emudecida, mesmo maldita, mesmo canalha, mesmo dolorosamente verdadeira, com ares insanos, amargosa feito estrato de artemísia, quando se reveste de propósitos, quando quem a empunha é viciado em liberdade. Caçador de bruxa queima gente, queima livro, sem saber que o pensamento sobrevive ao fogo e viaja nas cinzas com o vento. O pensamento é a alma das palavras, embora umas pobres coitadas sejam ocas de espírito. Só o verbo espontâneo e sem limites pode se contrapor ao verbo espontâneo e sem limites.

E o que fazer agora, se a sorte foi lançada? Há rios de matéria, há prumo e um certo rumo, há também cometimento, certeza de que o verbo é começo, meio e fim, de que o homem é linguagem, território da ideologia, ponto sempre conflituoso, espaço em que o silenciamento representa dominação, ainda mais quando sujeitos não resistem e se deixam arrastar pela espiral afinada dos contentes. Quem vence a constante luta das trevas contra a luz? As trevas? A luz? Não importa, palavra consegue ser palavra, faça chuva ou faça Sol, gaiolas não bastam para detê-la. Veja o caso dos pássaros, que cantando rompem as grades da clausura, transportando-se para onde desejam os seus sonhos.

Verlaine-nos, maldito entre os malditos, pelos lábios líquidos da fada verde, para que os pregadores do medo associados aos escravos da ignorância não reacendam a escuridão das fogueiras do ódio, do terror, e não realizem o enterro da embriaguez da arte. E se isso ocorrer, se refizerem o escuro, não percamos a fé, cantemos como insistiu em cantar Thiago de Mello, porque palavra, inclusive em estado de sombra, ilumina estradas e todo caminho leva a esta vontade de gritar. Nerude-nos, Senhor, para que a poesia "preserve em sua taça a velha primavera assassinada" e que assassinos e comparsas tenham vida longa a fim de que testemunhem a permanente ressurreição da liberdade.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Alucinação



Sonhei com a cachorra da moléstia e arranquei lágrimas do tempo entre sorrisos revirados nas entranhas e palavras fragmentadas nos cacos da felicidade partida a golpes de distância. Segui aperreado nos corredores do labirinto do tal sonho com ares de pesadelo. Meus gritos de pavor morriam em preto-e-branco no eco de paredes mudas enquanto o hálito da besta disforme arrepiava-me os instintos.

Corria, corria, mas nada avançava. Quanto mais corria mais cansava, menos fugia. Busquei no horizonte o coração do dia e encontrei no fundo do olho esquerdo a bicicleta azul acorrentada ao tronco da acácia morta. Não dava fuga. Tentei o olho direito onde estava a taça de fogo. Bebi três lapadas de claridade por engano. Quis novamente correr, desconcentrei-me, caí enjoado sobre o colo da terra.

Caído sobre a terra, ofegante, gritei o versículo xis do capítulo ipsilon do evangelho apócrifo dos boêmios: "A noite é minha pastora e nada me faltará!". Ah, se fosse noite! A noite me conduziria invisível na melodia de seus versos rimados de estrelas, protegido da fera dos seiscentos diabos ressurgida dos confins do subconsciente, lá onde as coisas maléficas devem permanecer todo o sempre.

Infelizmente alguma coisa toca em clave de sol fora de mim. Daí, a luz externa, o corpo visível, vulnerável e impelido à lembrança, mesmo diante da resistência do espírito que se recusa a visitar novamente aquele corpo. Resistir a tudo, menos às tentações, conforme ensina o velho Oscar Wilde, é o que pode ocorrer àqueles que se sentem dominados além dos sentidos, sem controle sequer das pernas.

Quem fez dormir o pobre menino em pleno reino da manhã, quando almas sebosas e libertinas fogem do limbo para se aproveitar dos inocentes herdeiros da madrugada? Quem evocou o súcubo, a besta de olhos castanhos conduzida ao mesmo cruzamento de caminhos imaginários da criança? Maldito seja! Maldito seja! Maldito seja o inventor dessa agonia, desse suor, desse medo, dessa queda.

Ainda bem que meu amor, percebendo os espasmos, o risco, perfumou-se de absurdo, fechou as vistas e apareceu na mesma alucinação a tempo de evitar o ataque da quimera à carne enfraquecida pela incandescência dos flashs. Sem dizer palavra, adiantou-se flutuando nos corredores do inferno, arrebatou-me nos braços, alisou-me os cabelos, beijou-me a boca e, graças a ela, acordei em segurança.