sábado, 6 de dezembro de 2014

Entre “Sim!” e “hoje, sim”


“Você é feliz?”, perguntou-me um anjo virtual, como se os anjos não fossem todos assim, etéreos, nos descaminhos dos sonhos que se nos apresentam reais. Respondi-lhe “Sim!”, enfático, quando deveria ter dito “hoje, sim”, sem letra de caixa-alta, sem exclamação, mas venho economizando na escrita, pesando a prosa e medindo o verso.

Entre “Sim!” e “hoje, sim” economiza-se um substantivo, além da porrada de sentidos ocultos na minusculização da letra esse, na pausa da vírgula e na ênfase retirada do advérbio. Necessário acautelar-se, afinal tudo o quanto se diz é suspeito aos olhos rasos dos amantes do preto no branco, como se o real habitasse a literalidade do vocábulo.

Há somente letras na superfície do texto para quem prefere o óbvio à miragem. O óbvio que se lê, mas não se sente, pois o sentido se agita nas águas turvas e sussurra maravilhas e revela segredos e se despe para quem sabe que toda palavra tem no mínimo outra face, a da miragem que multiplica as possibilidades do verbo em carne viva.

Entre “Não!” e “hoje, não”, noites de lua despencam feito chicote nas costelas do poeta e desfiguram o soneto de amor. Além do menos, o som estridente que anuncia o reencontro inventado entre consoante burra e vogal ordinária pesa no ouvido a ponto de envergar a espinha dorsal da rima, enfiando a metáfora do nada na goela do lirismo.

“Enquanto Freud explica”, fala Raul, “o diabo fica dando toque”. Vade retro, Freud, deixa o toque, sangue nas veias da crônica. Por isso, Senhora Dona Sancha, coberta de ouro e prata, todo rosto se desvela no cair da cortina do teatro mágico. Aí, esteja alegre, seja triste, a razão se faz valer a quem não quis lê-la, como um soco no estômago.



Contudo, embora, não obstante, porém, entretanto, todavia, botei Cartola no juízo. “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar”, na tentativa de reunir uns cacos espalhados na última madrugada. Entre “Sim!” e “Não”, hoje falta tanto de mim que o pouco que encontrar, mesmo sujo, espezinhado, fedendo a cachaça barata, será motivo de festa.