“Você é feliz?”, perguntou-me um
anjo virtual, como se os anjos não fossem todos assim, etéreos, nos descaminhos
dos sonhos que se nos apresentam reais. Respondi-lhe “Sim!”, enfático, quando
deveria ter dito “hoje, sim”, sem letra de caixa-alta, sem exclamação, mas
venho economizando na escrita, pesando a prosa e medindo o verso.
Entre “Sim!” e “hoje, sim”
economiza-se um substantivo, além da porrada de sentidos ocultos na
minusculização da letra esse, na pausa da vírgula e na ênfase retirada do advérbio.
Necessário acautelar-se, afinal tudo o quanto se diz é suspeito aos olhos rasos
dos amantes do preto no branco, como se o real habitasse a literalidade do vocábulo.
Há somente letras na superfície do
texto para quem prefere o óbvio à miragem. O óbvio que se lê, mas não se sente,
pois o sentido se agita nas águas turvas e sussurra maravilhas e revela
segredos e se despe para quem sabe que toda palavra tem no mínimo outra face, a
da miragem que multiplica as possibilidades do verbo em carne viva.
Entre “Não!” e “hoje, não”, noites
de lua despencam feito chicote nas costelas do poeta e desfiguram o soneto de
amor. Além do menos, o som estridente que anuncia o reencontro inventado entre consoante
burra e vogal ordinária pesa no ouvido a ponto de envergar a espinha dorsal da
rima, enfiando a metáfora do nada na goela do lirismo.
“Enquanto Freud explica”, fala Raul,
“o diabo fica dando toque”. Vade retro,
Freud, deixa o toque, sangue nas veias da crônica. Por isso, Senhora Dona Sancha,
coberta de ouro e prata, todo rosto se desvela no cair da cortina do teatro mágico.
Aí, esteja alegre, seja triste, a razão se faz valer a quem não quis lê-la,
como um soco no estômago.
Contudo, embora, não obstante,
porém, entretanto, todavia, botei Cartola no juízo. “Deixe-me ir, preciso andar,
vou por aí a procurar”, na tentativa de reunir uns cacos espalhados na última
madrugada. Entre “Sim!” e “Não”, hoje falta tanto de mim que o pouco que
encontrar, mesmo sujo, espezinhado, fedendo a cachaça barata, será motivo de
festa.
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