Escrevi uma resenha para a disciplina Produção Textual II, ministrada pelo grande professor José Carlos Redson. Para quem não sabe, sou aluno de Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Fiz Enem e tudo, já na casa dos 50, a fim de galgar à vaga que ocupo no campus de Assú/RN.
Estudar já velho, com um monte de obrigações e compromissos, é talvez mais complicado do que na média etária dos meus colegas de turma, na faixa dos 20, mas deixo o comentário no campo das probabilidades porque não sei da vida alheia. “Cada um”, como diz Caetano, “sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Para qualquer um, exige tempo que espremo entre o trabalho na advocacia e os instantes dedicados à docência em Direito, na Faculdade Católica do RN, às vezes em detrimento do espaço da família, às vezes sacrificando a porção destinada à boemia que ainda me conduz madrugada a dentro, bar em bar.
Vale a pena, entretanto. Paga qualquer esforço, reler autores frequentados na juventude, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade, com quem acabo de tomar três xícaras de café 100% arábica, colhido na Serra da Canastra/MG, enquanto recordávamos, eu e o poeta, o enredo de “O Jardim em Frente”.
Li esse conto pela primeira vez faz um trem de anos – para lá de 30, sô! –, em edição da antologia 70 Historinhas que ainda compõe o acervo da Rua dos Bobos, nº 0, na Curva do Vento, à beira do Rio dos Monxorós. A que utilizei há pouco veio por WhatsApp, reduzida a bits nas tripas dum arquivo PDF.
O texto de Carlos Drummond de Andrade, de certo modo, tem a ver com essas revoluções promovidas pelo capital, que nos trouxeram coisas impressionantes nas últimas décadas, a exemplo dos smartphones, do WhatsApp, do PDF, para otimizar o trabalho, domesticar as horas, maquinizar o que se diz humano.
Nele, o vate itabirano, imerso em prosaica narrativa, descreve a reunião dos figurões de uma empresa – os “big-shots” –, antecedida pela advertência do presidente para que ninguém, em hipótese alguma, atrapalhasse os debates. Telefonemas também não deveriam ser repassados, nem que fosse ligação do “papa”
O chefe, na sequência, esquadrinha o tema do debate, minuciosa e cartesianamente, “como quem divide um leitão”, mas é interrompido pelo porteiro que, descumprindo a ordem, bate à porta insistentemente, até ela ser aberta, sob protestos dos executivos, e apresenta uma mulher aflita, que mora ali, na redondeza.
O gesto só não provocou a demissão do serviçal pelo receio dos maiorais de a dispensa infringir a lei trabalhista, sem dizer da surpresa diante da senhora transtornada, que pedia algo inusitado: autorização para sepultar o cadáver do canário da família no jardim da firma, por lhe parecer um “lugar bom para ele descansar”.
A casa onde gorjeava o bichinho é grande, com árvores no quintal, mas não oferece intimidade para o descanso eterno. O enterro é autorizado e os “big-shots” suspendem os afazeres para render homenagens à memória da ave cujo corpo é depositado no solo em “uma caixinha forrada de veludo azul-claro”, solenemente.
Drummond, como se sabe, era modernista, daí características do movimento brotarem no conto, a começar pelo uso do inglês para designar os chefões corporativos, rompendo a pureza do português parnasiano. A linguagem, em verdade, é coloquial e beira a oralidade, com frases curtas que nos inundam de imagens.
O cotidiano, aspecto também inerente aos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922, ganha vulto no choque entre o capitalismo frio e cartesiano, encarnado no comportamento dos dirigentes empresariais; e a vida de pessoas comuns – as telefonistas, o porteiro, a dona do canário – prenhes de subjetividades.
São os dois últimos, a propósito, o porteiro que desobedece à ordem do chefe, mesmo correndo risco de demissão; e a dona do passarinho morto, com tocante sensibilidade, que desafiam a frieza do universo corporativo com gestos de elevada empatia cada vez mais raros no dia a dia, no corre-corre das cidades grandes.
E o ritmo da escrita? Quanto engenho! Os detalhes, as intercalações, os períodos curtos, a pontuação, paralisam, dão nos nervos, como o “bater com esse lápis” e o “toc, toc, toc, na mesa”, a ponto de o leitor, do lado de cá dos acontecimentos, perceber e sentir a chatice, a demora, o marasmo daquele evento.
A narrativa se expande, contudo, para descrever a dimensão humana da pausa nos afazeres empresariais em homenagem à dor da mulher anônima, que sobrepõe o luto prosaico pela morte de um pássaro aos elevados e urgentes interesses do capitalismo. É, na prática, a poesia que sempre se faz prosa em Drummond.
Penso que não havia canário na “caixinha forrada de veludo azul-claro”. Havia a sensibilidade assassinada por você e por mim, que ressuscita de vez em quando nos terceiros dias, voltando a morrer diante de nós neste ciclo sem fim, da agonia, tentando nos seduzir para a beleza das coisas breves e dos pequenos gestos.
Não toco nem tambor. Quando jogava capoeira pelas praças de Mossoró, final dos anos 1980, início dos 90, sequer batia palmas para não tirar berimbaus e atabaques do ritmo. Fase boa, apesar do perigo de ser preso, visto que algumas autoridades, infectadas pelo racismo estrutural, confundiam o esporte com a vadiagem.
Por contradição, ironia ou castigo cósmico, sempre fui apaixonado por música. Um ouvinte chatíssimo, igual a torcedor que só conhece, no futebol, as faces quadradas da bola, mas que esculhamba técnico, jogadores, árbitro, bandeirinhas e até gandula, no auge da disputa. Menos, menos. Exagero! Eu não sou tanto.
Exatamente agora, rascunhando no bloco de notas do celular este texto que se pretende crônica, assisto a apresentações de pianistas de várias partes do mundo, graças ao YouTube e ao bom gosto de papai. Polônia, Japão, Brasil, EUA, a linguagem da harmonia é universal e não conhece a barreira semântica da palavra.
No ramo, contudo, não passo de apologista. Apologista razoável, dado ao privilégio de ouvir, ao longo de quase 52 anos, Laíre Rosado ao piano Schumann em que também praticaram o pai e os irmãos dele. Foi adquirido no Rio de Janeiro, transportado em barco até Areia Branca, onde se contratou um caminhão de frete.
Até tentei ser pianista recebendo aulas do magistral Ari Duarte, na casa que dava de ombros com o prédio da Gazeta do Oeste, depois incorporada pelo jornal de Canindé Queiroz e Maria Emília. A mente inquieta, todavia, não me permitiu o domínio da arte. Nem piano, nem violão, nem flauta, nem gaita. Nem nada.
Por isso, fico aqui esfolando verbos, adjetivos, substantivos, arrancando-lhes tripas e tendões, na ilusão de construir uma lira milagrosa para cantar, na disritmia da prosa, a alegria de ouvir música com papai, que só não está tocando porque se recupera de uma cirurgia. “Esforço zero!”, ordenaram os médicos do médico.
Em complemento, amplio o registro de memórias e o repertório de histórias. Perguntei-lhe, por exemplo, sobre os pianos da Mossoró nos idos de 1960, lembrando-me de Brasília Carlos Ferreira, do Sindicato do Garrancho. Diz ela, havia uns 100 na cidade, no início do século XX, em demonstração de “cosmopolitismo”.
Doutor Laíre respondeu contando que Delfino Freire, comerciante rico, primeiro a viajar em carro motorizado de Mossoró a Tibau, levava o piano para a casa de veraneio todo ano, de carroça. No rastro, alguém contratado a peso de ouro para ajustar o bichinho, que, pelo transporte, chegava desafinado à esquina do mar.
A narrativa me faz lembrar Dulce Escóssia, filha de João da Escóssia, que, à época de Delfino, dividia-se entre os ofícios de costureira e de pianista. Dulce executava a trilha sonora dos filmes exibidos no Glória, no glorioso tempo do cinema mudo, segundo me contaram as suas três meninas, Lucinha, Corália e Honorina.
Trocadilho mais idiota, minha Nossa Senhora das Bicicletas: “Glória, glorioso”! Sinal de que desafino até no texto e de que o ponto final se aproxima cobrando-me respeito e silêncio. Peço desculpas. O único ritmo que me restava, o das teclas da máquina de escrever, foi-se na transição da Olivetti ao microcomputador.
A exemplo desses engenhos datilográficos, aquele piano de madeira, cordas metálicas e martelinhos percutores, com pedais para alongar as notas, parece restrito a escolas, museus, profissionais e saudosistas, sem mencionar o caso dos snobes que mantêm o móvel na sala para impressionar visitas e ilustrar fotografias.
Aqui resiste o Schumann vertical de meu avô, graças à paixão de meu pai pela música; e resiste meu pai, com sua musicalidade discreta, graças ao anel viário que lhe construíram no peito, com quatro pontes mágicas – duas mamárias, duas coronarianas. Que privilégio, esse meu, mesmo sem tocar um instrumento.
As cores sempre tiveram simbologia especial em Mossoró, notadamente nas disputas político-partidárias. Durante anos, o verde do MDB e o encarnado da Arena dividiram a cidade nos períodos eleitorais. Pelo tom da roupa, deduzia-se em quem votava o sujeito ou a sujeita, a exemplo do que aconteceu em pleitos recentes, com o vermelho petista de um lado e o verde-amarelo bolsonarista de outro.
A coisa, aliás, ia além das vestes. Seu Pedro, conhecido como Homem do Carneiro Verde, segundo narra o cronista Odemirton Filho, no blog do jornalista Carlos Santos, usava tinta xadrez para enverdecer a lã do inocente ovino que arrastava às famosas vigílias do ex-governador Aluízio Alves, o Cigano Feiticeiro. Era a maneira de Seu Pedro não deixar o menor sinal de dúvida sobre sua condição aluizista.
Contam também que, nos anos 1960, o tribunal designou um juiz forasteiro para a comarca. O magistrado era discreto e não dava pistas ideológicas, até que, um dia, alguém o viu sair da farmácia e resolveu buscar indícios no estabelecimento: “O que ele comprou?”, quis saber o curioso. “Escova de dentes”, respondeu o boticário. Aí veio a grande jogada, o xeque-mate: “Verde ou vermelha?”.
Quem se cria no País de Mossoró cresce impregnado por essas simbologias. Quem chega depois, logo se contamina pela semiótica local. Se bem que não é só aqui. Conforme escrevi logo no primeiro parágrafo desta crônica, a nação inteira caiu na gandaia, alguns em delírio coletivo. Até eu, sempre distante das polêmicas do gênero, passei, inopinadamente, a evitar determinadas combinações.
Talvez por ser mossoroense, infectado de nascença pela cisma das cores, eu tenha visto algo estranho na edição 2023 do Chuva de Bala: o prefeito Rodolfo Fernandes, herói e salvador, veste um Azul forte que se destaca no espectro anil proporcionado pelo choque entres luzes e cenário; e Lampião, o facínora, veste Rosa. Coincidência! Ninguém, a não ser um bruxo, criaria fantasia subliminar tão graciosa.
Imagem oficial do evento transmitida pela TCM
Imagem oficial do evento transmitida pela TCM
Psicoses à parte, registro aqui meu reconhecimento aos trabalhadores da cultura responsáveis pela construção desse espetáculo que projeta Mossoró no Brasil e no mundo. Não vou citar nomes, por serem muitos os amigos e amigas a brilhar no adro da capela de São Vicente, tantos, ao longo de tantos anos, que a lista sequer caberia neste Canto de Página. A vocês, os parabéns! Evoé! Merda!
Não foi Isaura quem tomou posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Foi a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras quem tomou posse em Isaura. Longe de mim cutucar a imortalidade com lápis curto, até porque muitas pessoas queridas estiveram naquela instituição e outras tantas permanecem nos seus quadros. Desejo apenas enaltecer a grandeza da figura humana que acaba de chegar por lá.
Conheço Isaura Amélia desde sempre, afinal somos primos. Apesar do destroço que a política causou na família, dividindo-nos em três ou quatro bandas, permanecemos – ela, Vingt-un Rosado e eu – unidos pelos laços fraternais da literatura. Aliás, Vingt-un me disse certa vez, com o testemunho dos milhares de autores habitantes da biblioteca dele, uma frase que ficou gravada na memória: “Isaura é gênio da raça”.
De fato, a prima já era imortal muito antes de qualquer láurea, tanto pela produção acadêmica quanto pelo trabalho realizado nas entidades que coordenou. Há marcas indeléveis de sua passagem na Secretária de Cultura de Mossoró, Fundação José Augusto, Fundação de Apoio à Pesquisa e Secretária de Cultura do RN, no incentivo à produção bibliográfica, à música, ao teatro, à história, às artes plásticas, à pesquisa.
Do que me toca especialmente, registro três atos: o convênio com a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para microfilmar o acervo do jornal O Mossoroense, de 1872 a 1950; a ideia, em um desses 14 de março, de pintar versos de poetas locais no asfalto, em diversos cruzamentos do centro de Mossoró; e o esforço que fez da cidade uma das primeiras do País a liberar recursos da Aldir Branc, na pandemia.
Foto sem identificação de autor copiada do portal da Ufersa
Ela é por demais generosa. Dá um cabimento danado a mim, que nem valho a palavra que leio, e até pareço ingrato por não participar das coisas para as quais me convida. De uns tempos para cá, as torres de cristal têm me causado impaciência e vertigem. Esse, contudo, não foi o motivo de eu não ter ido à academia saudá-la com pompa e circunstância. Foi a sala de aula, que limita a vida social do professor.
A ausência não significa que não fiquei feliz, que não vibrei com o reconhecimento a Isaura, sucessora de dois tios na arcádia potiguar: Tércio e Vingt-un, terceiro e vigésimo primeiro dos numerados do velho Jerônimo Rosado; sem dizer do primo Carlos Ernani Rosado Soares. Tércio, conheci em livros e por meio de relatos dos mais velhos. Vingt-un e Ernani, carrego a imensa alegria de haver convivido com ambos.
Ainda sobre minhas faltas, devo, desde 2022, um texto sobre o livro Isaura Amélia: coleção de arte. A obra, harmonia perfeita entre verbo e imagem, talvez seja o registro mais amplo das artes plásticas do Estado. São maravilhas reunidas pela autora ao longo de décadas, de gente famosa e de talentos desconhecidos, que, segundo Iaperi Araújo, no prefácio, foram generosamente dadas à Pinacoteca de Mossoró.
O livro merece crônica à parte, exclusiva. Por enquanto, fica aqui às vistas, sobre a mesa de trabalho, como inspiração para outras expressões. Hoje é dia de parabenizar à Academia de Letras por haver tomado posse em Isaura. Se deixarem, essa mulher vai sacudir a poeira dos fardões e revolucionar o casarão da rua Mipibu, aproximando-o dos interiores, das ruas e dos becos onde nasce, vive e pulsa a arte dos mortais.
Tipos populares frequentam livros, crônicas e artigos de diversos
memorialistas e historiadores do Rio Grande do Norte há muitos anos. Em Mossoró
existem páginas célebres de escritores de nomeada sobre figuras curiosas que
ilustravam, com suas particularidades, a geografia humana local.
Nem sei se tais registros seriam “politicamente corretos” hoje,
em tempos de revisionismo literário. Tais personagens, afinal, destacavam-se
por reagirem a apelidos jocosos, por distinções físicas, por manias diversas e até
por problemas mentais, a exemplo do rapaz que transava com fuscas.
Quando passei a frequentar Assú com regularidade, descobri
que, por aqui, também há narrativas envolvendo personagens curiosas. Roque,
imortalizado em mural de Gilvan Lopes, no Centro, é uma delas. Apesar de cego, dizem,
informava as horas corretas, sem relógio; e percorria a cidade toda sem ajuda.
Roque, o “Cego da Hora”, morreu bem-antes de eu passar a
morar na Terra dos Poetas. Gostaria de tê-lo conhecido e, quem sabe,
entrevistado. Aliás, por que não pensamos nisso, meu amigo Lúcio Flávio? De meu
tempo, entretanto, tomo a liberdade de fazer dois registros: Cachorra Lascada e
Cleonice.
Roque, o Cego da Hora
Roque por Gilvan Lopes
Cachorra Lascada é magro, de estatura mediana. Às vezes
parece ninja, às vezes encarna Rambo, a depender de como enrola a camisa na
cabeça. Diariamente luta artes marciais com inimigos imaginários em via pública.
Sempre torço por ele, que, até onde sei, não ofende ninguém de “mermo-mermo”.
Cleonice é uma mulher baixinha, gordinha, que anda do raiar
do Sol à alta madrugada catando recicláveis e pedindo dinheiro. Há dias em que nos
encontramos em diversos lugares, nos horários mais variados. A cada novo
esbarrão, dirige-se a mim como se fosse a primeira vez: “R$ 2,00, moço bunito”.
Se estou acompanhado de Clarisse, minha proprietária, Cleonice
vai se chegando com jeito e simpatia: “R$ 2,00, muié bunita e homi bunito”. Se
tenho e dou, o elogio é reforçado com algum gracejo, mas, se não compareço, ela
olha para Clarisse e dispara: “Tão novinha! Tão linda! Esse aí é seu pai?”.
Antes de começar a história, sinto que devo situar o leitor sobre as personagens envolvidas. A primeira sou eu, Cid Augusto, poeta sem talento, cronista de meia pataca, sedentário convicto e militante. Depois vem Clarisse Tavares, minha proprietária e cuidadora, fina e delicada que nem lixa 60, segundo o pai dela.
Tem ainda Elen Nailla, personal trainer contratada por Clarisse para nos assistir na academia e, por fim, apresento Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira, Luiz da Funerária, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Econômico de Assú, ex-candidato a prefeito e CEO de um dos mais promissores complexos funerários do RN.
Luiz é simpaticíssimo, tão cativante que até pensei em transferir meu plano funeral para a empresa dele. Só não o fiz para não contrariar a promessa feita a Jacson Damasceno, ainda nos tempos da faculdade de jornalismo na UFRN, de ser enterrado em um caixão importado da Funerária Damasceno, da cidade de Catu, Bahia.
Nailla, a personal, é excelente no ofício. Pontual, cuidadosa e carrasca com delicadeza. Ruim de matemática, porém. Quando a gente conta 12 repetições numa máquina assassina, ela insiste que foram apenas oito. Quinta-feira última, quase me mata diante dos olhos de Clarisse, que não esboçou qualquer solidariedade.
É que a moça às vezes carrega nos pesos sem dar crédito às minhas anunciadas fraquezas. Ela superestima o aluno, imaginando que ele pode mais do que afirma. Em verdade, posso muito menos do que alego e não me importo de ser o fracote da academia, “puxando ferro” a menor que os demais frequentadores do local.
Sei que nessa brincadeira de erro de matemática por parte da professora e de excesso de confiança depositada no atleta, saí do treino abraçado a Clarisse para esconder a tremedeira nas pernas. Ainda na portaria, sentindo a alma ateia sair pela boca, comecei a cantar o hino: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar...”.
Quando ergui o braço direito – o outro amparava minhas carnes trêmulas no corpo firme da mulher amada – e gritei a todo pulmão, 1/8 acima, com pausa dramática, “Segura na mão de Deus... E vai!”, surgiu diante de mim, como do nada, de sorriso espaçoso e braços arreganhados, o dono da funerária. Ele mesmo, meu amigo Luiz.
Ter com Luiz da Funerária é sempre motivo de alegria, prenúncio de bom papo, de boas risadas, mas a coincidência intriga – um corpo em petição de miséria, a música lutuosa, aquele encontro. Seria aviso de que a hora chegou? De que exercício mata, como sempre suspeitei? Ou de que devo fazer portabilidade do plano funeral?
Daqui a pouco chegam os eventos juninos, com Santo Antônio, São João e São Pedro. Quando criança, ficava deveras ansioso pelo período. Pela farra, pela comida, pela fazenda de meu avô, situada entre Mossoró e Felipe Guerra, margeando dos dois lados a BR-405. Na verdade, ele tratava como duas propriedades: a Mororó, do lado direito de quem segue rumo a Apodi; e a Tapuio, na banda esquerda da rodovia.
A ansiedade dizia menos com junho e mais com o gosto pelas coisas do sertão onde nasci e ainda vivo, até porque, ali na Mororó e na Tapuio, sem luz elétrica, as fogueiras eram acontecimentos corriqueiros, de relevante valor social. Ao seu redor, confraternizavam-se familiares, amigos, vaqueiros, caçadores. O seu calor, além de nos aquecer os corpos, servia de combustível para o café, o milho. Para as ideais.
Trago daquele tempo o gosto da culinária sertaneja. Assim, do mesmo modo, pratos como canjica, mucunzá, pamonha, cuscuz, picado, buchada, panelada, coalhada, não eram coisas apenas do meio do ano. Ainda hoje, aliás, quando pretende me encurralar, sem possibilidade de rejeição a convite, minha mãe usa o conhecimento privilegiado a meu respeito e anuncia, sem dó nem piedade: “Tem maxixe!”.
Não desejava falar sobre isso. Digo “falar” – embora escreva –, tentando fazer da escrita uma extensão da fala, para conversar com você. Porque o imagino aqui, diante dos olhos, enquanto as palavras se derramam na tela do computador. Peço desculpas. Minha mente é uma colcha de retalhos multicolores cosidos uns aos outros com a agulha do tempo e qualquer linhazinha vagabunda que a memória empresta.
A intenção era aproveitar o comecinho do sábado, antes das atividades pendentes na advocacia e na docência, para me entregar à crônica, porção que me resta do jornalismo, paixão da vida toda. E na crônica, artesanato da palavra que não se fez notícia, desejava escrever sobre o evento que a prefeitura de Assú realizou ontem – hoje são 29 de abril de 2023 – para receber alunos do colégio Marista, de Natal.
O Marista natalense, cujo padroeiro é Santo Antônio, homenageia uma cidade a cada ano. Assú é o lugar da vez, eleita em votação realizada na Internet, com mais de 20 mil votos. Eis o motivo da visita e da recepção que se fez em prosa e verso, com direito a apreciar painéis do compadre Gilvan Lopes e a arquitetura secular da Igreja Matriz, sem dizer da inenarrável sensação de chafurdar no Buraco do Prefeito.
Pelo que as vistas alcançaram, apesar das lentes arranhadas dos óculos, eram centenas de meninos e meninas, além de professores e professoras, lotando de azul e branco o Cine Teatro Pedro Amorim para ver tradições juninas do jeito que só o interior preserva. A plateia ficou extasiada diante da riqueza imaterial das atrações levadas ao palco, da prosa e do verso, da luz cheia de poesia que salta do olho do artista.
Impossível não recordar meu avô, a fazenda, o povo, os costumes. Não tem metrópole que afaste o sertanejo de mim. Igualmente inevitável lembrar do Santo Antônio Marista, onde estudamos meu pai, eu e um dos meus filhos. Quer dizer, eles estudaram: meu pai e meu filho. Eu apenas frequentei aulas na década de 1980 até ser convidado a me retirar. Fase ruim! Rebeldia sem causa que, aos 51, ainda custa caro.
E já que esta história virou memória, a música tema do São João de Assú, composta por minha amiga highlander Fernanda de Sá Leitão, interpretada por Dayane Martinelli e Priscyla Arrazo, arrancou-me outra reminiscência lá das brenhas cerebrais. Quando ouvi Dayane e Priscyla cantarem “Venha pra cá/ Venha curtir o São João/ É o mais antigo do mundo/ festa de fé e tradição”, variei de novo nas ideias.
Decerto, Assú não realiza o São João mais antigo do mundo. A expressão é, antes de tudo, um ótimo lance de marketing, afinal a tradição tem origem na Europa da Idade Média, na transmudação do louvor aos deuses pagãos da natureza e da fertilidade para o culto a santos católicos. Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra mantêm vivo o legado, inclusive com fogueira, balão, bandeirinha, culinária e tudo o mais.
Contudo, entretanto, todavia, com redundâncias, hipérboles e pleonasmos à parte, o lance de “mais antigo do mundo” fez a mente viajar ao jornal O Mossoroense da década de 1950, até uma crítica ao Mossoró Cidade Junina da época. Para o autor do comentário feito há cerca de 73 anos, o único São João de “mermo-mermo” das bandas do RN, o maior, melhor, mais tradicional, seria o da Atenas Potiguar.
Não entro na peleja nem por cem e uma cocada. Mossoró é minha terra, Assú a de minha proprietária. Ela não perde noite de junho nem que o Buraco do Prefeito esteja acochado igual fiofó de jia. Para mais, sou não de barulho. Sou de balcão. Aprecio beber enquanto converso miolo de pote e escrevo besteira em guardanapos, embora confidencie – não diga a ninguém! – que sufraguei Assú no pleito do Marista.
***
Postscriptum ou P.S., para os íntimos. Minha doce proprietária, Clarisse Tavares, acaba de ler a crônica encerrada linhas atrás. Por determinação dela, contra a qual não cabe nem recurso, nem choro e nem vela, devo pedir desculpas e me retratar publicamente. Então, leitor amado, que se danem Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra e o resto do planeta. Assú tem o São João mais antigo do mundo. E ponto final!
No mercado, às 5h00, cada bêbado ostenta sobre a própria mesa, a própria latinha de cachaça, a própria laranja, a própria solidão. Como fossem ilhas em homens, conversam com amigos tão íntimos que somente eles enxergam e ouvem. Quanta inveja, a minha! Queria um tantinho desse lirismo que faz a ponte entre o ébrio e o louco. Chega o poeta concreto, pede a cerveja que anuncia ser a última de um périplo iniciado ontem. O bardo ainda ameaça cometer uns versos de improviso, mas é dissuadido pela senhora de crucifixo de prata, que bebe algo em uma xícara de asa quebrada. O que será? O velho do cão maltês também comparece. “Vai pedir café”, imagino. Pede conhaque. Duplo, ainda por cima. Deu a hora de chegar.
Ao contrário do que narram os irmãos Grimm naquele famoso conto de fada, Lobo Mau sobreviveu ao caçador. Hoje, velho e barrigudo, anda por aí, de bar em bar, disfarçado em pele de cordeiro. Chapeuzinho, por sua vez, melhorou com a idade. Noite dessas, reencontraram-se no Chico e Teta. Ela, exibindo o corpinho trabalhado no crossfit, ironizou a forma arredondada do antagonista a quem reconheceu na hora: “Seu Lobo, para que essa barriguinha tão grande?”. E o Lobo, cheio de uísque, respondeu: “Para ficar mais confortável para você”. Não se sabe como a história termina. Nem se termina.
Necrológio de Augusto Floriano, poeta autodidata: “Teve um coração revolucionário sempre em pé de guerra com as próprias fraquezas armadas. Submeteu-se a quatro governos democraticamente eleitos pontuados por seguidas tentativas de golpe de estado. Morreu como nasceu, sem conhecer a paz. Feliz, entretanto, por haver usufruído o que há de humano na encarnação da poesia”.
Noite ardente, comentada em toda a vizinhança. Horas – tantas horas, mais horas, aquelas horas – de sussurros entrecortados por gemidos fundos e gritos involuntários. De repente, à luz do derradeiro suspiro, o sêmen vermelho da esferográfica sangra na superfície branca, fecundando a folha com o poema inesperado, agora em gestação. Aguardemos.
Acabo de encontrar O Pálido Olho Azul, na Netflix, estimulado pela informação de que uma das personagens é inspirada no poeta americano Edgar Allan Poe. A trama, “suspense gótico de Scott Cooper, baseado no best-seller de Louis Bayard”, diz a sinopse, envolve assassinatos misteriosos e vingança.
Edgar Allan Poe
Mas a crônica não é sobre isso, é sobre um momento, e é sobre “Nunca mais”.
Menino – menino mesmo, em idade da qual meus três filhos já passaram de sobra –, adorava as histórias de terror contadas em um livro de capa preta, que eu não sabia ler. Nem ele nem outro. Meu pai lia para mim.
Tempos analógicos, distantes da geração dos computadores, da Internet, dos celulares e das redes sociais, quando o entretenimento virtualizado ficava por conta da TV Verdes Mares, de Fortaleza. O sinal da emissora cearense era retransmitido – não até muito tarde – sob os auspícios da prefeitura de Mossoró.
A primeira vez que assisti à televisão de madrugada, permita-me o registro, foi em Rui Barbosa, Bahia, na casa de um tio, lembrança cujos detalhes reservo para depois. Adianto apenas que, logo na estreia, deitado no chão da sala, com almofadas de apoio, tive o privilégio de ver o épico Gengis Khan.
Na “rádio cabeça”, só para não dizer que não falei de Chico Buarque, você mais velho talvez esteja ouvindo The Fevers cantar que o sanguinário guerreiro mongol “conquistou a China, o Afeganistão e o Irã”, além de derrotar a tropa russa e se apossar do Império Turco.
Tá escutando aí, não tá?...
“Gengis, Gengis, Gengis Khan
Deixa na História uma página de dor
Era o Gengis, Gengis, Gengis Khan
Foi ditador, foi herói, foi bandido
E a todos que encontrava (oh ho ho ho)
Matava e queimava (ah, ha, ha, ha)
Era o mais temido dos mortais”.
Surpreendente. Em Mossoró, acesso a filmes de maior relevância, só no Pax, no Cid e no Caiçara, se a classificação permitisse, porque os comissários de menores marcavam cerrado nas portarias dos cinemas. Lá dentro, a galera aplaudia freneticamente e festejava – Êêêêêêêêêê! – na hora da reação do mocinho contra o bandido. Se a fita do projetor se partisse, o coro troava: “É roubo! É roubo! É roubo!”.
Enfim, com o seu perdão por haver enfiado tantas narrativas no meio do caminho, a quase me perder, verdadeira encheção de linguiça, as tramas de terror que tanto adorava eram lidas em voz alta por papai. Cada dia, um capítulo de Edgar Allan Poe. Eu ficava vidrado em Histórias Extraordinárias, edição que passou a integrar o meu acervo bibliográfico. Herança de gente viva, felizmente.
Talvez o garoto nem compreendesse a complexidade dos contos. Talvez o pai nem falasse exatamente o que estava escrito ali. Imagino que retraduzia e suavizava palavras, frases, orações, transformando o português adulto em português infantil.
É, não sei ao certo, e isso não me aflige. A exatidão é o de menos. Depois dos 50, o importante é a cena imperfeita reconstruída a partir de lampejos que, embora aos trapos, preservam a essência da casa, do quarto, do menino, do homem, da voz grave, calma, pausada, terna.
São alumbramentos que passeiam entre o que havia de fato e o que se projetou por capricho das convulsões cerebrais, um tanto diferentes da percepção de Manuel Bandeira, na Última Canção do Beco. Idêntico, contudo, no critério eternidade.
“Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar.
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Muitos anos depois das Histórias Extraordinárias, adulto, morando em Natal, contratei Charles Phellan para me dar aulas de inglês. No segundo ou terceiro encontro, o professor, imediatamente convertido em amigo, presenteou-me com uma cópia xerográfica de The Raven – O Corvo – e uma fita K-7 com alguém recitando o dito poema de Edgar Allan Poe, publicado na American Review, de Nova Iorque, em 1845, antes de ganhar fama mundial.
Os primeiros tradutores de The Raven para a língua portuguesa foram ninguém mais ninguém menos que Machado de Assis, em 1883, e Fernando Pessoa, em 1929. Preciso falar mais alguma coisa? Não, mas falo de enxerido: O Corvo é referenciado em músicas, quadrinhos, séries, e conta com várias adaptações cinematográficas. Lembra do nome da escola de Wandinha Addams? Vem dele. Os Simpsons, por sinal, têm sua própria versão, com Homer entoando o eu lírico.
Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico é a voz que sai das entranhas do poema para enunciar sentimentos, sensações. É quem fala no verso, correspondendo ao narrador no território da prosa. É como se o Grilo Falante largasse Pinóquio e se infiltrasse em Cecília Meireles para declamar O Menino Azul aos sentidos do leitor.
O eu lírico de The Raven é o viúvo pesaroso, desesperado “P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais”. O homem alucinado a conversar com um “velho corvo emigrado lá das trevas infernais”, que pousa no busto de Atena, posto nos umbrais da loucura, e se apresenta com o nome de “Nevermore”.
O texto não é leve, não é fácil. Parece ser, de qualquer maneira, uma boa porta de entrada para a obra de Edgar Allan Poe, a mim preciosa, sem demérito à genialidade do autor, pelo exato instante da infância que evoca. Espero aproveitá-lo enquanto fragmento de memória até que a ave “agoureira dos maus tempos ancestrais” se achegue aos meus ouvidos “Com aquele ‘Nunca mais’”.
Razão e Paixão digladiavam-se nas redes antissociais. Razão não empolgava a torcida, enquanto Paixão parecia jogar em casa, em final de campeonato. Hora e meia depois do início do embate, surrada e humilhada, Razão entregou os pontos. Paixão, eufórica, correu pra galera. Razão, senhora de seus limites, sabe que jamais derrotará Paixão, por mais que vença.
A porta da redação do O Mossoroense se abre e meu amigo Luciano Lelis da Silva, maior repórter fotográfico do Rio Grande do Norte de todos os tempos, anuncia por debaixo dos vastos bigodes: “Visita para você. Doutor Lou, de Assú”. Como eu ainda apurava, redigia e editava notícias policiais, suponho que estávamos no final da década de 1980.
Foi o primeiro de três ou quatro brevíssimos encontros que tive com o lendário João Marcolino de Vasconcelos, o Lou, advogado, poeta, boêmio, escritor, jornalista, político e um dos grandes oradores a que assisti no Tribunal do Júri Popular de Mossoró, embora os processos específicos não me venham à superfície da lembrança.
Como diria Emery Costa, meu mestre e amigo, com quem tanto aprendi, “lá se vão” trinta e tantos anos, de modo que nem me sinto na obrigação de pedir desculpas por não conseguir me debruçar sobre detalhes. O importante, aqui, são os fragmentos preservados do momento, do aperto de mão, das conversas sobre jornalismo e direito penal.
Não precisa ninguém me dizer de sua generosidade intelectual. Eu a conheci. Revirando estas memórias um tanto quanto vagas, revejo aquele homem com seus 60 anos, de cultura vastíssima, conversando com um adolescente burro, rebelde sem causa e com fama de doido, posto a trabalhar no jornal da família por ser um caso perdido.
Talvez a loucura nos aproximasse. A loucura e a sensação de que a sobriedade é um porre, como me leva a crer o ex-prefeito e ex-deputado estadual Ronaldo Soares, ao afirmar que nosso amigo “não pertencia a um mundo chamado normal”, era um “Dom Quixote” a enfrentar moinhos de vento com as armas da prosa e o escudo da poesia.
Jeová Liberado Júnior, proprietário do LaLua, bar mais astral da cidade, jornalista filho de outro jornalista, Jeová Liberato, que manteve a Tribuna do Vale em circulação por mais de 20 anos, o descreve como “figura simpática, amiga e simples” que “não escondia o inventor, poeta, escritor, radialista, advogado, escoteiro e mais uma centena de coisas”.
O artista plástico Gilvan Lopes, por sua vez, revela que Lou compôs os hinos das cidades de Areia Branca, Carnaubais e Alto do Rodrigues, além de haver atuado no teatro e publicado o livro Pé de Escada, em coautoria com Renato Caldas. Aproveitando a deixa, queria ser dono de um muro no meio do mundo para Gilvan Lopes pintar.
Juntando tudo isso, e depois de ler Crônica que Escrevi para Você, obra póstuma de João Marcolino de Vasconcelos, em exemplar raro pertencente a José Tarcísio de Sá Leitão Soares, só tenho a lamentar a insensibilidade que me impediu de conviver com ele para lá dos esbarrões no O Mossoroense e no Fórum Silveira Martins.
De consolo, réstias de recordações, a convivência com a obra e, pelo que leio, a sensação de que poderíamos ter sido bons amigos, bebido juntos e varado noites no Assú, como, aliás, tenho feito de vez em quando, nas oportunidades em que o bolso permite ou Germário abre o coração e me oferece um vale no botequim.
Não costumo retrucar comentários feitos em meus perfis de redes sociais. Em regra, apenas curto o que me escrevem, seja elogio ou crítica, concorde ou não concorde com o que está posto. Esse é o meu modo de agradecer pelas participações e de deixar todo mundo bastante à vontade.
Hoje, entretanto, sinto-me na obrigação de fazer alguns esclarecimentos, e começo afirmando que a postagem objeto deste texto não tem, nem de longe, o desejo de minimizar a gravidade dos atos criminosos praticados contra a democracia brasileira nesse domingo.
Postagem que deu origem a este texto.
Os golpistas responsáveis pela depredação dos prédios dos Três Poderes devem ser investigados pela polícia, denunciados após análise do Ministério Público e, se a Justiça assim o entender, condenados. Mas dentro do devido processo legal, com direito a contraditório e ampla defesa, mesmo que esses sejam mecanismos da democracia, regime que os ditos vândalos abominam.
Os rigores da lei devem ser impostos a todo aquele que, de qualquer modo, concorreu para as transgressões apuradas, na medida de sua culpabilidade, como determina o art. 29 do Código Penal (CP). Isso, logicamente, inclui coautores (executores diretos) e partícipes (sujeitos que ajudaram sem aparecer).
Em publicação anterior, enumerei uma série de delitos que podem estar configurados: dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso I e III, do CP), incitação ao crime (art. 286, caput e § 1º, do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).
Se o noticiário estiver correto, alguns baderneiros podem ser responsabilizados, ainda, por porte ilegal de arma de fogo (arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento), furto qualificado (art. 155, parágrafo 4º, inciso I e IV, do CP), lesão corporal (art. 129 do CP), associação criminosa (art. 288) e maus tratos a animais (art. 32 da Lei nº 9.605/1998).
Com o aprofundamento das investigações, quem sabe, as lideranças ocultas arquem com acusações de organização criminosa, nos termos da Lei nº 12.850/2013, vindo a ser constatada a existência de estrutura ordenada e divisão de tarefas, como uma “empresa antidemocrática”, com atuação em bloqueios de estradas, manifestações nos quartéis e atos violentos na capital da República.
O “patriota cagão”, merecedor de destaque especial, por representar a índole do movimento antidemocrático, pode ser responsabilizado por ato obsceno (art. 233 do CP), além dos atos de vandalismo eventualmente apurados contra ele.
O crime de terrorismo, no entanto, não me parece configurado, embora leia na Folha de S.Paulo a manchete “Presidentes dos três Poderes chamam atos de terroristas e pregam união”.
O jornal, a propósito, chegou a divulgar que cerca de 1.200 bolsonaristas que se recusaram a sair do acampamento montado nas imediações do QG do Exército seriam autuados em flagrante por terrorismo e abolição violenta da democracia. A matéria, contudo, parece ter saído do ar. “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, até onde aprendi na faculdade de direito, é desobediência (art. 330 do CP).
Na perspectiva semântica, tudo bem. Concordo: são terroristas!
Embaso tal afirmação em simples consulta aos dicionários. O Houaiss define terrorista como “pessoa partidária do terrorismo ou que pratica atos de terrorismo”; enquanto o Michaelis registra terrorismo como “atitude de intolerância por parte de indivíduo ou grupo de indivíduos com aqueles que não compartilham suas convicções políticas, artísticas, religiosas etc”.
O problema é que, na perspectiva do art. 2º da Lei Antiterrorismo – Lei nº 13.260/2016 –, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em quem votei duas vezes, “terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
A propósito, o citado art. 2º é o que se chama de norma penal explicativa, espécie que não serve para proibir condutas nem estabelecer penalidades, limitando-se a esclarecer conceitos necessários à aplicação de determinado conteúdo jurídico. Pois bem ou pois mal, a exata interpretação desse dispositivo define se a Lei Antiterrorismo se aplica ou não ao caso concreto.
Nesse processo analítico, por mais repulsivo que seja o ato criminoso, é inviável extrair uma expressão do contexto da norma. Assim, o substantivo “religião” não pode ser isolado para abarcar o lema fascistóide “Deus, pátria e família” nem mesmo as falações “em línguas” ou as orações ensaiadas entre os destroços.
Para facilitar a compreensão, prometendo fugir do tecnicismo jurídico, separarei o art. 2º da Lei nº 13.260/2016 em quatro partes. Vamos ler juntos?
“[1] O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, [2] por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, [3] quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, [4] expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Percebe qual trecho não se enquadra dos atos nefastos praticados pelos radicais bolsonaristas, em Brasília? Se não percebeu eu digo: a [2] “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, que são requisitos causais, motivos ensejadores da prática delituosa.
Não confunda. Uma coisa é a religião estar de algum modo presente nos discursos de vários dos que atacaram os Três Poderes, outra é o ataque ser motivado por discriminação ou preconceito religioso.
Por essas razões, desculpo-me pela interferência no debate e reafirmo: os “patriotas” que depredaram os Três Poderes não são terroristas à luz do direito penal, são golpistas perigosos que devem responder criminalmente pelo que fizeram, nos limites e com as garantias da Lei, em nome da democracia.
Aguardava por atendimento diante do balcão da farmácia. Precisava comprar os cachetes que tomo desde os 25 anos de idade para controle da pressão arterial e do colesterol. Herança genética, segundo o cardiologista.
A fila estava parada porque uma senhora elegante, com sinais externos de hipocondria, a considerar as três cestinhas apinhadas de medicamentos, vitaminas, fitoterápicos, monopolizava a única funcionária disponível. Até Emulsão de Scott – eca! – a dondoca separara. Suspeito que este item, em especial, serviria de instrumento de tortura contra algum filho ou neto.
E eu ali, puto da vida, já pensando em mudar de fornecedor de drogas, comecei a ler anúncios colados nas prateleiras na expectativa de abstrair, quando, de repente, encontro o Luftal em promoção pela bagatela de R$ 46,00.
Inevitavelmente me veio à lembrança “O Valor que o peido tem”, de Celso da Silveira, de quem fui quase vizinho quando morei em Natal pela segunda vez, a partir de 1999. O título do livro, na verdade, é “Peido – O traque... O valor que o peido tem”, uma ode à emancipação do pum. Palavras dele:
“O peido de um general
não pode ser comparado
com o peido de um soldado
Que em tudo é desigual
Tem gente que peida mal,
há outros que peidam bem
Eu não conheço ninguém
que ainda não tenha peidado
Mas o povo não tem dado,
o valor que o peido tem”.
Com o Luftal em gotas ou comprimidos, de marca ou genérico, por quase 50 contos, eu mesmo já reconheço a grandiosidade da flatulência espontânea.
Lógico, quem peida bem talvez saia por aí peidando e andando para o semelhante que vive entourido – chique, não é? Entourido! Prefiro o popular “inturido” –. Há, de fato, pessoas sádicas que não se importam com o sofrimento do pobre coitado – nada de Menino Pobrezinho, pela caridade – que sente as dores do parto sem parir, no exato instante em que a bufa resvala do tórax ao vazio, na transversal, sem encontrar a luz no fim do túnel.
Feliz era a musa de uma das mais célebres glosas fesceninas do Rio Grande do Norte, de autoria atribuída a Moyses Lopes Sesyom. De acordo com o poeta, a figura não passava tempo ruim, bastava fastar a perna de lado para fazer a terra balançar que nem os terremotos de João Câmara e Caraúbas. Diz assim:
“MOTE
O peido que a doida deu
Quase não cabe no cu
GLOSA
Isto ontem aconteceu
Debaixo da gameleira,
Foi um tiro de ronqueira
O peido que a doida deu.
A terra toda tremeu,
Abalou todo o Assú,
Ela mexendo um angu,
Puxou a perna de lado
Deu um peido tão danado
Quase não cabe no cu”.
Francisco Augusto Caldas de Amorim, na 3ª edição de “Eu conheci Sesyom”, que me foi presenteada por Fernando Tavares, atesta a autoria dos versos. A inspiradora, conforme Chisquito, foi Bandeira, mulher que habitava à sombra de um pé de gameleira que havia defronte onde veio a ser construído o Cine Pedro Amorim, em Assú/RN, nas décadas iniciais do século XX. O escritor João Ramalho, contudo, acusava Sesyom de plágio. A glosa ou o mote seria de um sujeito de Campo Grande cujo nome não recordo, embora o autor de “O beato da serra de João do Vale” sempre me falasse a respeito.
Debates à parte, e seja lá de quem for o peido da doida, só peço a Deus que me livre e guarde do entourimento – outra vez –, mas também do peido público, principalmente em tons denunciadores, ofensivos, humilhantes, que, confesso, já me pegaram desprevenido.
Você fala e o bicho escapa semitonando. Exagero? Não! Pergunte a Deltan Dallagnol, que, em mensagem interceptada pela Vaza Jato – não é trocadilho – escreveu a frase “foi o tom do meu último peido”. Na época, a internauta Lívia Prata postou no Twitter que estava em dúvida se Deltan peida em “lá sustenido” ou “dó menor”.
Bom, o cara era procurador da República de Curitiba, renunciou para não ser punido e se elegeu deputado federal mais votado do Paraná, com quase 345 mil votos. Autarquia dessas, arrisco dizer, peida grave e grosso, em mi maior.
Pode parecer implicância. Jamais! Dou maior valor. Ruim é a sensação de querer e não poder peidar livremente. A liberdade precisa ser valorizada, tanto a dos patriotas quanto a dos esquerdistas, como também defende o grande Otacílio Batista:
“O peido é bom toda hora
Sem peido não há quem passe
A criança quando nasce
Tanto peida como chora
Um peido ao romper da aurora
Eu não troco por ninguém
Há noites que eu solto cem
Peidos grandes e pequenos
Já conheço mais ou menos
O valor que o peido tem”
Jurava que esses versos eram de Celso da Silveira. Não vou brigar com o Google, o pai de todos os burros. Ele certamente tem razão, considerando que 90% das minhas memórias são falsas e os outros 10% eu invento. De qualquer maneira, vou checar a informação em livros de “mermo-mermo”, em que a tinta sangra no papel, quando fizer bom tempo e puder entrar no quartinho em que está a minha singela biblioteca. Pode ser que os dois, Celso e Otacílio, tenham se servido do mesmo mote.
Abre parênteses.
Fiquei confuso com algo que escrevi parágrafos antes e que volta ao pensamento provocando a interrogação: bufa é manifestação da esquerda ou da direita?
Ao alcance da mão, tenho o Houaiss, melhor dicionário da língua portuguesa da atualidade, conforme especialistas. Para ele, peidar significa “disparar peidos involuntários e repetidos”. Ou seja, um ato inconsciente coletivo que ignora a livre iniciativa, a existência e o prazer da porção unitária de gases.
O peido, assim anunciado, só pode ser comunista, e o preço da simeticona um instrumento de exploração capitalista, mas vamos esquecer as ideologias. Deixa para lá, como diria o professor e advogado Charles Phelan, alter ego de Melissa Hofman, amante psicodélica do jornalista Jacson Damasceno.
Fecha parênteses.
Resumindo a ópera bufa – sem trocadilhos, repito – prefiro morrer entourido – ha, ha, ha, ha... ha... muito engraçado escrever desse jeito – do que pagar R$ 46,00 num frasco de Luftal. Domingo, também conhecido como hoje, amanheci na feira em busca de hortelã-pimenta, cidreira, erva-doce, camomila, louro e boldo. Estoque para dois meses garantido por menos de R$ 10,00.
Vou experimentar agora. Você não está convidado, não apareça. Quem avisa amigo é.
Meio quebrantado, mais ou menos capiongo, um tanto quanto bafejado pela Papary, olhou o espelho no fundo dos olhos e filosofou: “Não é fácil explicar o belo a quem só consegue enxergar o feio”.
Deu duro o ano inteiro, com fé, obstinação, perseverança e atributos mais que se exigem da pessoa padrão, incluindo a resiliência, por ser da moda. Da última vez, comeu porco – ou suíno, na liturgia dos espetinhos –, traçou 12 uvas, engoliu um naco de romã, sem mastigar, e, trepado na mesa da sala, encheu o bucho de lentilhas. Vestia branco, é claro, e, depois dos fogos ecologicamente corretos, pulou sete ondas. Fará tudo de novo, por via das dúvidas. Quem sabe um dia...!
Véspera do Natal. Acordou por volta das 6h00 da manhã chuvosa. Mesmo com aquele sem vontade, desvencilhou-se dos lençóis e da cama. Tirou as remelas dos olhos com os indicadores, mijou, cagou, jogou água no corpo, escovou os dentes, penteou os cabelos, perfumou-se, trajou-se de sábado. Saiu de casa rumo a Cheila, no Mercado Central. Em lá chegando, tomou duas talagadas de café preto, comeu uma terrina de cuscuz ensopado em graxa de galinha caipira e foi feliz pelo resto do dia.
Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... a vida sem feriados, sem fins de semana, sem descanso, sem paradas... Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... acautelar-se, pois o tempo devora os próprios filhos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... inadiável lidar com a impaciência dos vencimentos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... e mais ainda trabalhar... até que a morte proporcione o merecido descanso.
Enganava-se com dois ou três apagões de breve eternidade.
Cada sensação de queda parecia-lhe uma noite inteira profundamente bem dormida.
A insônia, fingindo-se de amiga, consolava-o madrugada adentro: “Deita no meu
colo, bom rapaz, que te protegerei dos pesadelos”. E o bom rapaz, ingênuo,
cedia devotando olheiras sinceras à terrível companheira.
No tempo
de eu menino, a cidade cabia nos meus olhos. Um dia, entretanto, ela dobrou a
esquina do Rabo da Gata com trejeito de quem pretende comprar cigarro e
desembestou no meio do nada. Ninguém sabe aonde foi ou se continua indo. Mesmo
à noite, aqui do 19º andar, a visão se desencontra das luzes que desfilam no
espinhaço do infinito. Parece que a cidade se perdeu de mim para ganhar o
mundo.
Surgiu do nada, no meio de uma escadaria onde nunca estive.
Parecia quase tão vivido quanto eu. O mesmo sorriso e os mesmos olhos, entretanto.
Iluminados! Reconheci na hora, a pesar do tempo enorme. Disse que veio por obra
e graça da saudade, mas não podia ficar muito. Desapareceu enquanto me
abraçava.
O sujeito sai de casa de manhã rumo ao trabalho, em pleno feriado de Santa Luzia.
- Espere! Você não está em Assú?
Tem razão, mas carrego Mossoró aonde vou e não perco o costume do 13 de dezembro nem por cem e uma cocada.
- Hunnn! E agora é religioso?
Bobagem, a virgem de Siracusa é patrimônio imaterial dos mossoroenses, acima dos credos e das descrenças.
Enfim, como dito, sai para trabalhar. De repente, minha amiga Fernanda Cristina Cosme de Sá Leitão Soares, colega de escritório de advocacia, poetisa tão grande quanto o próprio nome e ainda por cima imortal que nem o compadre Caio César Muniz, anuncia a provável chegada de Grimaldi Zacarias ao número 912 da rua Sinhazinha Wanderley.
E chegou mesmo, certeiro igual a poesia fescenina de Sávio Tavares, de violão em punho, sabotando por completo o expediente. Aí, meu bom e minha boa, veio Chico Buarque, saiu Belchior, desceu Cartola, Gal caetaneou-se de acordes e Marisa Monte se balançou para entrar no repertório.
Grimaldi, para constar, é dos grandes violonistas que conheço, honrando a tradição dos “ança” do Vale do Açu – Carlança, Miltança, Belinhança –, do patamar de Antero, que não é de Quental, mas é José e é dos Santos, do naipe de Mirabô Dantas e Lázaro Amaro, cabras de Areia Branca, sem dizer de Genildo e Geová Costa, esse povo maravilhoso de Grossos, e de Jacson Damasceno, baiano que Natal tomou de Catu.
Pois bem ou pois mal, precisei beber antes de chegar aos 85 quilos. É a dieta! Prometi que só tomaria uísque novamente quando caísse de 87 para 85. Ou seja, Fernanda e Grimaldi me levaram a queimar o expediente em vez de gordura.
Okay, Okay, Okay, confesso! A culpa é toda minha. Amanheci com o feriado de Mossoró fervilhando no Assú do meu juízo, cutucando-me as costelas, doido pra debandar largando guardanapos no Dom Pedro, em Gemário, no Bode, no La Lua, no Baronesa, na rodoviária e no Mercado do Peixe, tomando as últimas das últimas com Diá e Canarinho.
Só não completei o percurso imaginado porque, lá pelas não sei quantas, ao levantar as vistas tocadas pela pureza do malte das Terras Altas – pasmem! –, a madrugada estava nua diante deste reles mortal que vos atormenta com escrevinhações tolas.
Flagrei-a sem querer no extado instante em que ela trocava o vestido iluminado de Lua pelas vestes douradas de Sol. Completamente nua, a danada, em luz e sombras, do jeitinho que veio ao mundo.
Acredita?
Creia ou não, desviei o olhar para não ser indelicado com a dama que se deixou ver por acidente – suspeito inclusive que Renato Caldas fez também assim ao vislumbrar “os seios da lua amamentando uma estrela” –. Contudo, a brevíssima cena percebida sem maldade já estava tatuada em minhas retinas com pigmentos de deslumbre e decepção.
É que sempre encarno Florbela Espanca no ódio eterno à luz e na revolta incontida contra a claridade, a não ser a dos olhos de Clarisse.
Ah! Se eu conhecesse o segredo das tintas de Rogério Dias, Laércio Eugênio, Airton Cilon, Túlio Ratto e Gilvan Lopes. Se talvez Aluísio Barros, Marcos Ferreira, Antônio Francisco ou Nildo da Pedra Branca me emprestasse um versinho, o mais piquititinho que fosse.
Tivesse eu algum talento, a madrugada nua ganharia cores, prosa, verso, como se fosse uma noiva de Habner encantada na eternidade digital do retrato. Todavia, nem palavra seduzo mais a esta altura dos acontecimentos etílicos. As que me restam depois da curva do fundo da garrafa tropeçam nos próprios sentidos tentando acompanhar o redator cujas pegadas não encontram sequer os próprios passos.
Falando sobre enjoos com formalidades, discursos, paletós, gravatas, fardas, fardões e camisolas de dormir, minha sensorte, Clarisse Tavares, interrompe:
- Triste do poder que não pode!
- Annhh! Como assim?, pergunto.
E a resposta, outra dúvida:
- Qual a vantagem de ser um imortal que morre?
Tomei logo um gole de uísque, embora, segundo Plínio, o Velho, a verdade esteja no vinho.
lembrei-me
agora do poeta, cronista, músico e jornalista Antônio Maria, que teve o
disparate de compor aquela música horrorosa “ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém
de chama/ de meu amor”.
De lascar!
Puta merda!
Valei-me,
Nossa Senhora.!
Bangalô três
vezes!
Deus é maior!
Se bem que o
cara tomou a mulher de Samuel Wainer, dono do Última Hora, jornal importante da
época.
Quando me
olho no espelho, as banhas rompendo os umbrais da calça, testa sebenta de
gordura, só me lembro do velho Maria, meu cronista predileto.
Deveria
lembrar de Eneida, sempre nua. Livre!
Tivesse ao
menos o talento dele, mas não.
Um troço, uma
dor de cotovelo infernal – volto ao debate sobre a música –, mas o cara era sensacional.
Leiam “Diário de Antônio Maria” e “Benditas Sejam as Moças” para conferir.
Obrigatório.
Dia qualquer,
entrevista de emprego nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, seu
conterrâneo do Pernambuco, Chatô, o Rei do Brasil, propôs o teste:
- Escreva
sobre Jesus Cristo!
Maria, sem
tomar fôlego, respondeu interrogativamente:
- Contra ou
a favor?
Foi
contratado sem a necessidade de escrever linha sequer.
Quem diabos
argumentaria contra Jesus Cristo? Nem eu, ateu, graças a Deus, faria isso em
circunstâncias cotidianas.
De vez em
quando, convenhamos, até o cristão mais devoto pragueja contra a divindade. Faz
parte.
Mas a vida –
quem sabe a profissão – coloca o sujeito em circunstâncias desconcertantes que
desafiam princípios.
Agora, por
exemplo, aparece o diabo de um trabalho de faculdade. Tema desagradável, vago –
Porra de pandemia!
E a educação
nisso?
Permanecerá
como antes ou a experiência dramática valeu necas de pitibiriba?
Saltamos de 2019 para não sei quando ou qualquer
dia a gente pousa na realidade?
Vou tomar
dois ou três goles uísques para espantar a insônia e mergulhar nas dúvidas.
Respostas
nunca me importaram.
Só delírios
me conquistam.
Os seus.
"Desesperada
e nua", como disse Chico a seu respeito.
A argumentação é capacidade inata do ser humano. Ao nascer, instintivamente, a criança dá sinais claros sobre o que precisa, deseja, gosta, detesta, teme. Argumenta, por meio do choro, do riso, de movimentos corporais, que, embora inconscientes, não deixam de ser recursos lógicos capazes não apenas de levar o adulto à compreensão de algo, mas também de o convencer a respeito de alguma coisa.
Inicia-se ali, nas relações mais instintivas da existência, o exercício cotidiano de uma dialética que acompanha o indivíduo até o fim da vida. E mesmo além da morte, como se dá com grandes pensadores, a exemplo de Sócrates, Platão, Karl Marx, Bakhtin, Foucault, cujas ideias sobrevivem aos limites do corpo físico e se mantêm em latente dialogismo, despertando sentidos, geração a geração.
Percebe-se que a argumentação é essencial à vida em sociedade, em caráter indissociável. Naturalmente, ela ganha complexidade com o desenvolvimento das linguagens que integram a pessoa ao meio, com o apuro de marcas e mecanismos retóricos – silogismos, paradoxos, ironias, metáforas –, não sendo exagero afirmar que a experiência comunitária é um ato argumentativo por excelência.
Tudo o que faço ou deixo de fazer direciona-se ao outro, ao convencimento do outro. Eu, na verdade, arremedando Mário de Sá-Carneiro, “sou qualquer coisa de intermédio... que vai de mim para” a multidão de outros que me constituem sujeito. Mesmo na aparente concordância, eu e esses tantos outros – de mim e de além – estamos em luta infinita para estabilizar ou desconstruir enunciados.
Nas práticas acadêmicas, tais operações cognitivas ganham dupla importância: a da argumentação em si, em pleno uso, trabalhado com rigores intelectuais e certo grau de consciência retórica em prol do convencimento da comunidade científica; e a do ato ou efeito de argumentar enquanto objeto de estudo de diversos campos teóricos, como direito, filosofia, linguística, história, comunicação social.
Isso não significa que os letrados detenham a primazia da razão – a maioria, aliás, não chega à sola da apragata do repentista analfabeto –, até porque, nas democracias, em tese, a todos assiste o direito fundamental de se expressar, sem distinção de qualquer natureza, nos limites da lei, como forma de equilibrar as relações de poder. Na falta do argumento livre e plural, proliferam-se as tiranias.
Minha solidariedade aos amantes filmados na varanda do
Teatro Dix-huit Rosado, em plena e benfazeja antropofagia cultural, e expostos
nas redes antissociais. A mulher, dizem, com maior veemência, realçando a
evolução da mentalidade do povo que se gaba de haver alistado a primeira
eleitora brasileira.
Sem querer defendê-los, suponho que se imaginavam ocultados
pelos tapumes que embelezam o Corredor Cultural da Rio Branco, desprovidos da vontade
de ultrajar o pudor de quem publicizou a cena, insensível ao amor
improrrogável, ao amor de improviso, que não sabe, não faz hora, mas teima acontecer.
Quiçá enredados por Nelson Rodrigues, percebiam-se
invisíveis em “uma selva de epilépticos”; ou desejavam aplicar a tese de Jabor
segundo a qual “o sexo sonha com proibições”. Para rompê-las, é claro. Talvez
tenham se tornado valencianos: “cão vagabundo” e “onça-pintada” gozando
metáfora na realidade.
Alguém dirá que esta crônica de meia pataca exorta a
imoralidade, o pecado capital da luxúria e até o crime. Não se trata disso, e
sim de expressar a sensação de que a imprudência peculiar dos amadores, se
ofende alguém, ofende bem menos que a malícia do voyeur que grava e faz
circular cenas de tal ordem.
É, “o Grande Irmão está de olho em você”. Há câmeras por
todo lado, em todas as mãos, a serviço do público e do privado. George Orwell
teria noção de que o seu Big Brother romperia os limites de Oceânia para
dominar o mundo? Seria a realidade, depois de 1984, uma refração vulgar de
lentes desfocadas?
Na falta de respostas, só posso dizer que transar em tempos
de guerra soa como anúncio de paz, não desaforo, apesar do exibicionismo dos
enamorados e da psicose dos espectadores. Além disso, qualquer praça tem quatro
paredes quando o amor é urgente. E, se for a do teatro, sexo é pura expressão da
arte.
Meu compadre Caio César Muniz, poeta que Iracema deu de mão beijada a Mossoró, desabafa no Facebook contra aparente gesto de insensibilidade literária. Ao abrir o exemplar de certo livro da autoria dele, descoberto via Google e adquirido com vistas à recomposição do próprio acervo, percebeu que o danadinho estava autografado para uma amiga. A desalmada, embora o tenha recebido de graça, pelos Correios, trocou o presente por alguns tostões.
É, Muniz, isso acontece. Tenho aqui para contar a história, a obra Assu – Gente Natureza e História, do saudoso amigo Celso da Silveira, que adquiri aos 31 de julho de 1999, em Natal. Só não lembro se no Sebo Balalaica, de Ramos; no Sebo vermelho, de Abimael Silva; ou no Sebo Lisboa, de Lisboa. Aos sábados, quando residia na capital, gostava de garimpar rarezas nas livrarias de usados antes de me abancar lá em Nazaré, no Beco da Lama.
A dedicatória enobrece o livro porque o individualiza. Aquele “Assu” destinava-se a Beltrano, “companheiro de outras jornadas”, com “o abraço do admirador” Celso. Pensei em não mostrar ao autor, com receio de parecer enredo, mas, que droga, eu também queria um oferecimento para chamar de meu. Ficou assim: “Ao grande amigo e poeta maior, Cid Augusto, com um forte abraço, agradecendo o resgate, finalmente em boas mãos”. Generoso e meio.
Outra vez, agora com certeza no Sebo Lisboa, quando ainda funcionava na Praça Padre João Maria, encontrei uma plaqueta dedicada ao mestre Raimundo Soares de Brito, na prateleira de escritores do Rio Grande do Norte. Achado surreal, pois Raibrito – quem o conheceu sabe – não se desfazia dessas coisas. Por isso, adquiri o livreto desgarrado e, dias depois, ao pisar em solo mossoroense, cuidei de reconduzi-lo são e salvo à rua Henry Koster, 23.
Não recrimino o desapego aos livros, afinal eles foram feitos para correr de mão em mão e, quanto mais correm, mais cumprem o objetivo de semear palavras, mais fazem “o povo pensar”, como o “germe – que faz a palma” de Castro Alves. Conheço pessoas assim, que, logo após a leitura, doam ou vendem o exemplar. Carlos Drummond de Andrade, se não me fraqueja a memória, fazia isso, com a delicadeza de tirar e guardar a folha de autógrafo.
Havia na Espanha, o Libera Libros, projeto de fomento à circulação de escritos. Seus adeptos consumiam e depois deixavam os volumes em lugares públicos. Antes, porém, colavam etiquetas fornecidas pelo site do grupo nas contracapas, com código de monitoramento, como anilhas em aves migratórias, e instruções a quem os encontrasse. Os felizardos eram impelidos, no tal rótulo, a informar onde os localizou e a deixar que seguissem o fluxo.
Então, não se ofenda com o desprendimento da moça, “Poet! My Poet!” – roubo a expressão de Charles Phelan, advogado, bardo e professor, que costuma me cumprimentar assim, brincando com o “O Captain! My Captain!”, de Walt Whitman. Ela, decerto, quis compartilhar o deslumbre de seus versos. Faça o mesmo, devolva ao seu livro as rédeas do destino. Ele ainda tem muitos olhos para ler e muitas almas para encantar pelo meio do mundo.
Frequento redes sociais desde o começo delas no Brasil. Tive
IRC, Orkut e circulava pelos bate-papos do UOL. Muito antes, ouvia conversas no
145, o “disque-amizade”, fui PX e radioamador. Aprendi até a telegrafar com o
professor Eugênio Silva Filho, no QRV Clube, ao lado de dois gênios daquela
arte, Xavier Júnior e Emerson Azevedo Júnior. Sempre gostei de confabular, e alguns
mecanismos facilitavam a vida do menino tímido.
A contar dos primórdios, especialmente depois que a Internet
superou o grito, o tambor, a fumaça e o satélite, nunca invadi o espaço das
pessoas ligadas a mim por esses elos invisíveis para falar ou escrever algo que
não fosse edificante. Se discordo, não avanço o território alheio dizendo desaforos
ou tentando impor meu modo de enxergar as pessoas, a religião, a política. No
máximo, ofereço elementos para um debate saudável.
Minhas idiossincrasias nascem e morrem em ambiente próprio. Quem
chega ao que produzo por estas bandas, vem de livre e espontânea vontade,
suponho, porque gosta do que escrevo ou me tem por gente boa – Entre os tipos
de jornalistas, segundo andei lendo por aí, há bons repórteres que são
redatores sofríveis, ótimos redatores que são péssimos repórteres, os privilegiados
que dominam as duas artes e os que são só gente boa.
Nunca temi críticas nem me ofendem pontos de vista
discordantes. Do contrário, parodiando Drummond, não me contaria de peito
aberto como quem grita, como quem despe a alma em praça pública. Alegro-me
quando o leitor reage e fico triste, à moda Manuel Bandeira, se não tem “motivo
nenhum de pranto”, de riso, de reflexão, de indignação. A única coisa exigida,
em um ambiente civilizado, é a cordialidade no debate.
Em regra, não discuto comentários. Limito-me a “curti-los”
em reverente agradecimento, sejam positivos ou negativos. Deixo para cada
leitor a tarefa de garimpar as ideias em debate e formar sua opinião. Nunca, em
hipótese alguma, vou a redes sociais de terceiros destilar impropérios. Quando
surgem temas polêmicos sobre os quais desejo me posicionar, faço isso por aqui,
com o zelo de não entrar na esfera pessoal de ninguém.
Mesmo assim, tenho me deparado com indivíduos que rompem as
fronteiras imaginárias da Web e, embora sem vinculação às minhas mídias
sociais, alguns escondidos por trás de identidades falsas, tentam me
constranger com indelicadezas. Certa feita, vi-me obrigado a “privatizar” o Instagram
e o Facebook, pois, além de agressões gratuitas, robôs passaram a disparar contra
mim e meus amigos, a ponto de fazer eu me sentir na Matrix.
Estranho. Freudiano, talvez. Se fulano ou beltrana não gosta
de quem sou, do sobrenome que tenho, da minha descrença ou ideologia, do que
penso, da prosa e do verso que entorno pelos bares, da coragem de quebrar tabus
e da louca paixão pela liberdade, por que cargas d’água perde tempo comigo?
Crie tenência, criatura, tome o rumo da venta, porque a única resposta que terá
de mim será a eloquente explosão do silêncio.
Não devo reclamar da vida. Afinal, se passo por dificuldades
financeiras, isso se deve a incompetência de minha parte, por nunca haver me
preocupado com cargos, bens e valores. Desde que resolvi caminhar com as
próprias pernas, lá pelos 17 anos, raros foram os períodos de tranquilidade financeira.
Também, com as minhas inconstâncias matrimoniais e suas repercussões
econômicas, como diabos alguém prosperaria?
O fato é que estou aqui, às 4h02min, segundo me diz o
relógio do computador, sem conseguir dormir, apavorado com as contas do início
do mês, o vencimento do cartão de crédito e o estouro do cheque especial. A
solução talvez fosse vender alguns livros e discos. Não, Cascudo, Florbela,
Manoel de Barros, Dante, Foucault não têm nada a ver com isso. E os Beatles?
Chico Buarque muito menos, no vinil que ainda toca com açúcar e com afeto.
Podia ter tomado uns tragos para entorpecer as ideais. Ontem
foi segunda-feira e creio haver um restinho de Ypioca prata no congelador. Não
deu. Acabo de sair da covid-19, após 13 dias de molho, completados hoje, e,
apesar de já assintomático, optei por protelar o retorno às atividades etílicas
até o final de semana. Além disso, não pareceu que cachaça cairia bem, porque é
só pensar na garrafa para a saliva descer gritando “u-ís-que”!
A grana por enquanto não dá para o uísque, cuja idade
diminui a cada ano. Privilegiemos a Cosern, que mensalmente nos assalta com
suas bandeiras amarelas e vermelhas, que chegam a aproximadamente 20% do valor
da fatura. Ah, nem vou dizer da gasolina, que não demora vai bater os R$ 8,00 –
oito contos, como afirmaria Abimael do Sebo Vermelho. O carro está na garagem e
só circula em momentos necessários ou especiais.
Quando concluí o curso de direito e superei o Exame da OAB,
pensei que os tempos incertos do jornalismo transformar-se-iam em lembranças
engraçadas – fiz até essa mesóclise para intercalar a saudade que sinto dos
salários atrasados do O Mossoroense –. A advocacia é uma gangorra para
quem não tem clientes fixos nem desenvolveu o espírito empreendedor, a exemplo deste
indivíduo que vos escreve, ainda insone, já às 5h00min.
Tudo bem. Não me queixo. Ainda jovem, no verdor da
adolescência, li Francisco Otaviano e decidi não passar pela vida em branca
nuvem.Se me faltam tostões a esta
altura do campeonato, sobram-me lembranças de amores e madrugadas, patrimônios
imateriais da boemia, sem dizer do talento para cultivar ilusões no terreno seco
dos desenganos. Espera! Deixa abrir a janela. É, o Sol nasceu pálido, mas os
pássaros garantem a claridade.
Testemunhei certa vez, logo que me transferi para morar um tempo em Natal, no fim da década de 1990, início dos anos 2000, o debate acalorado entre os poetas Pedro Grilo Neto e Celso da Silveira, ambos meus amigos queridos, sobre a grafia de “Assu”, na visão deste; e de “Açu”, na perspectiva daquele.
Grilo continua lúcido, ostentando seu elegante sombreiro mexicano, produzindo e esbanjando poesia aos 85 anos de idade. Dia desses, passando pela escadaria de Mãe Luiza, desejei subir até a rua Guanabara para abraçá-lo. Recuei, entretanto, para não o colocar em risco. Tempos de pandemia.
Celso morreu em 2005, no comecinho de janeiro, período no qual deixava sua residência, na Alexandrino de Alencar, e tomava o rumo de Tibau, o “de Mossoró” ou “do Norte”, como dizem para distinguir de Tibau do Sul. A casa de veraneio ficava no Centro e tinha uma piscina que mal o cabia dentro.
Voltando ao diálogo dos vates, Pedro Grilo defendia a grafia Açu, a exemplo de muita gente boa e devota da Irmã Lindalva, centrado em fatores gramaticais. Celso da Silveira, assuense – ou açuense – da gema, recorria à lei de criação do município, carinhosamente emoldurada e pregada na parede.
Pedro Grilo Neto (Fonte: Facebook)
Deífilo Gurgel e Celso da Silveira (Foto: Alex Gurgel)
Detalhe interessante: nos seus livros, Celso grafa Assu, com dois esses, sem acento agudo na letra “u”, enquanto a Lei nº 24, de 16 de outubro de 1845, a da parede, eleva “à categoria de Cidade a Vila Nova de Princeza, com a denominação de Cidade do Assú”, redigido desse jeito, com “ú” acentuado.
Fórmula idêntica pode ser observada na Lei nº 13, de 11 de março de 1835, aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte e sancionada pelo presidente da província, o pernambucano Basilio Quaresma Torreão. Por meio dela, criou-se a “Comarca do Assú” há quase 187 anos.
Já a Lei Orgânica Municipal, promulgada aos 30 de março de 1990, no rasto da Constituição Federal de 1988, tentou oficializar Assu, por meio de emenda proposta por Domicito Soares Filgueira, presidente da Câmara de Vereadores, seguindo a sugestão de ninguém menos que Celso da Silveira.
O debate me remete à teoria de um antigo colega de trabalho, dos bons tempos do jornal O Mossoroense. O rapaz afirmava ter aprendido na aula de Português que a aposição de acento circunflexo em Antônio dependeria da idade do sujeito. Abaixo dos 30 anos seria Antonio e, depois disso, Antônio.
Brincadeiras à parte, a polêmica pode ser fruto do acordo ortográfico celebrado entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, em 1931. Levanto a hipótese porque tal deliberação também suscitou questionamentos sobre Mossoró com “ss” ou Moçoró “simplificado” com “ç”.
Talvez remonte há um pouco antes, 1911, ano em que a Academia de Ciências de Lisboa fez a primeira reforma ortográfica da língua portuguesa visando normalizar o idioma. Apesar de unilateral, o documento serviu de base para todas as convenções do gênero que se seguiram na comunidade lusófona.
“Como regra geral”, diz a proposta portuguesa, “ce, ci, -ç- correspondem a ce, ci, ti latinos, a ce, ci, za, zo, zu do castelhano actual, a ss arábicos, ou pertencem a vocábulos de origem americana indígena, transcritos pelos autores peninsulares”, formalismo reconhecido e utilizado até a atualidade.
Sem querer me alongar nesse aspecto, parece de bom alvitre esclarecer que o acordo ortográfico de 1931 – com perdão do trocadilho – resultou em desacordo, considerando que Portugal em 1940 e Brasil em 1943 tiraram dele interpretações divergentes que só vieram a ser unificadas em 1945.
Segundo as regras de padronização
e simplificação estabelecidas pelo acordo de 1931, consolidado para nós no
formulário ortográfico de 1943, realmente teríamos de escrever Moçoró, como
chegaram a fazer expoentes do jornalismo e da cultura norte-rio-grandenses, nas
décadas de 1960 e 1970.
Situação intrigante envolve o
título de um conto do poeta Carlos Drummond de Andrade, que aparece como “Lavadeiras de Mossoró” na edição de 17 de julho de 1979, do Jornal do Brasil, do
Rio de Janeiro; e se transforma em “Lavadeiras de Moçoró” no livro Contos
Plausíveis, datado de 1981.
O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou o conto as “Lavadeiras
de Moçoró” na edição de 17 de julho de 1979 do Jornal do Brasil, do Rio de
Janeiro. O texto foi reproduzido no livro Contos Plausíveis, de 1981, em que aparece também o “Lavadeiras de Moçoró – II”.
Ocorre que, segundo a versão tupiniquim, “topônimos de tradição histórica secular não sofrem alteração alguma na sua grafia, quando já esteja consagrada pelo consenso diuturno dos brasileiros”. O termo “secular”, por sinal, não remete a período de 100 anos, e sim a coisa bastante antiga.
Desse modo, venceu Mossoró pela mesma razão do Assú. Este, dizem, após consulta do então prefeito Ronaldo Soares a Luís da Câmara Cascudo, nos anos 1980. Para o historiador oficial do Natal, a escrita correta seria aquela contida na lei de criação da cidade, por ser a certidão de nascimento do lugar.
Na falta de intimidade para perguntar a Ronaldo, e sem poder sair de casa por estar com covid-19, pedi ajuda ao jornalista, historiador e poeta Ivan Pinheiro, o Oráculo do Assú. Sem demora, ele me respondeu por WhatsApp que o alcaide submeteu de fato a dúvida a alguém, só não sabe se a Cascudo.
Indaguei ainda se havia emenda à Lei Orgânica acrescentando o acento no “ú”, posto que o texto de 1990 oficializava a escrita Assu. Na ótica de Ivan, esse dispositivo específico da legislação municipal é inválido, considerando que nomes de municípios somente assembleias legislativas podem modificar.
E tem razão. Basta lembrar o processo por meio do qual Augusto Severo voltou a ser Campo Grande. A Assembleia do RN pediu ao TRE que realizasse plebiscito e, pelo desejo de 95,75% do eleitorado local, aprovou a Lei Ordinária nº 10.501, sancionada em abril de 2019 pela governadora Fátima Bezerra.
De toda sorte, a lição atribuída a Cascudo aplica-se igualmente a nomes e sobrenomes. Os Escóssias, por exemplo, mantêm os dois esses desde o século XIX, obedientes ao registro de João da Escóssia, o primeiro de nós, assim como “Sid” ou “Cid” será definido pela grafia averbada em cartório.
Livro de minha autoria sobre a família Escóssia
Abre parêntese. Aproveito a citação a meu nome, tirada de um exemplo de Ivan Pinheiro, nas críticas aos originais deste artigo que se pretendia crônica, para dizer que, na dicção escorreita do acordo de 1945, “o d é sempre pronunciado” no “antropónimo Cid”. Chique, não? Fecha o parêntese.
Em Mossoró não se fez tanto barulho a favor do “ç”, apesar do registro da Wikipedia de que que, pelas “atuais regras de ortografia da língua portuguesa, a grafia correta é Moçoró, pois prescreve-se o uso da letra ‘ç’ para palavras de origem tupi”. Na verdade, para as palavras indígenas, de modo geral.
Em Assú, a peleja continua. O município fechou questão com “ss” e acento no “ú”, a despeito de os adeptos do cê-cedilha terem apoio de outros órgãos públicos, entre os quais o poderoso Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que registra o topônimo “Açu” e indica “açuense” como gentílico.
O Houaiss, meu dicionário predileto, a exemplo do Aulete Digital, define “açuense” como “relativo a Açu RN”. Por outro lado, ao ocupar-se da etimologia, esclarece haver anotações da forma histórica “assuense” desde o longínquo 1845, ao passo que o primeiro registro de “açuense” só aparece em 1948.
Há quem diga não se tratar de mero capricho linguístico, e sim de respeitar a melhor tradição, uma vez que, antes mesmo da Vila Nova da Princesa, o lugar era chamado pelos índios, seus primeiros habitantes, de “taba-açu”, que muitos se aventuram a traduzir, com amparo no tupi, como “aldeia grande”.
Dicionário Houaiss
Vejo com descrença qualquer esforço de tradução dos topônimos do sertão do RN com base nas línguas dos troncos tupi e guarani, inerentes a indígenas do litoral, porque aqui viviam tribos tapuias. O verbete “tapuia”, a propósito, é tupi e era usado por seus falantes para se referir a “índios bárbaros”.
Também não tenho certeza se os ditos “autores peninsulares” referidos nas normas traçadas para o português de Portugal em 1910, a maioria com atuação no século XVII, grafavam “taba-açu”, “taba-assú”, “taba-assu”, e se tinham por base o tupi, porquanto “língua geral”, ou algum idioma exclusivo.
O fato é que as várias práticas linguageiras dos povos do interior, com repertório, gramática e fonologia próprios, não foram preservados. Conforme o mestre Olavo de Medeiros Filho, apenas alguns lexemas foram catalogados, de modo esparso. Mossoró e Assú, infelizmente, não integram esse rol.
A título de curiosidade, ainda de acordo com Olavo, nosso maior historiador na concepção do professor Vingt-un Rosado, “o acampamento principal do rei Janduí ficava localizado no rio Otschunogh (Açu), cujo vale recebia o nome de Kuniangeya”. A lagoa do Piató, por sua vez, era chamada Bayatagh.
Não devia tomar partido, mas, com as licenças de Grilo e de Celso, fico com Assú, pela “certidão de nascimento”. E o faço sem remorso, pois, com “ç” ou “ss”, com ou sem acento no “u”, Sinhazinha tem razão: “Assú é bom, eu posso afirmar!”. E viva a Terra dos Poetas!... Epa, não seria a Terra da Poesia?