sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Tolstói e a literatura potiguar


Minha personalidade é um tanto complexa. Mais do que a da maioria dos seres ditos normais, menos do que a de alguns camaradas. De acordo com Cid Filho, se o sujeito é meu amigo, com certeza é diferenciado, pervertendo o ditado segundo o qual os opostos se atraem. “Papai só tem amigo doido. Igual a ele!”, explica. Do quanto sei de mim, assumo alguns traços que reforçam esse pensamento, como a aversão instantânea a todo e qualquer modismo ou imposição.

Uma das manifestações desse transtorno, algo associado a “ser do contra”, conforme Clarisse Tavares, é não ler best-sellers por iniciativa própria – às vezes somos obrigados –. Se dizem que certo livro é “leitura obrigatória”, olhar a capa já me dá calafrios. Não leio e até desvio o olhar da capa, nas livrarias, pelo menos enquanto todo mundo louva a publicação querendo transparecer intelectualidade, muitos baseados apenas em resumos encontrados na Internet.

Em razão disso, passei anos dedicado a publicações do Rio Grande do Norte, em especial poetas e prosadores não incluídos entre os cânones pelos donos da cultura potiguar. Não vou declinar nomes temendo transformar esta crônica em uma lista incompleta. Seriam muitos! Somente da Coleção Mossoroense, uma multidão. Vingt-un Rosado, seu fundador e editor, conversando comigo nos anos 1990, calculou haver lançado mais de 400 escritores até aquela década.

Quando a barreira do asco se quebra – sempre por acidente, nunca para surfar na onda – a experiência pode ser boa. Semana passada, ao me deitar depois do almoço, na casa de meus pais, onde me hospedo em Mossoró, vi, através do vidro da prateleira, o volume II dos Contos Completos, de Liev Tolstói. Dos Russos, havia até então lido Mikhail Bakhtin, além de alguma coisa de Dostoiévski, justamente para compreender melhor algumas conclusões daquele sobre este.



A primeira impressão, espanto, por verificar que Tolstói escreve de forma incrivelmente simples, sem afetações estilísticas, e aborda temas comuns da sociedade em que vivia, pelo menos na tradução de Rubens Figueiredo. Intrigado, baixei o volume I da obra, no Kindle, para começar do começo e investigar por qual motivo algo com passagens até singelas está entre os clássicos das letras mundiais, tendo em vista o caráter elitista e excludente da crítica.

Em tempo, eu conhecia textos esparsos dele, vistos em coletâneas. No Livro das Virtudes, William J. Bennett apresenta De Quanta Terra um Homem Precisa?; Onde Está Deus, Está o Amor; Meninas Mais Sábias do que Homens; Iliás; Três Perguntas e O que Rege os Homens, para ilustrar valores como honestidade, disciplina, compaixão, amizade e trabalho. Sabia ainda de uma versão de A Roupa Nova do Rei, com variações no tocante ao conto homônimo de Hans Christian Andersen.

Muito me agradou, ampliando o horizonte da leitura, a descoberta de que Tolstói optou pelo conto, por ser essa a forma ideal para dizer a cultura das ruas, para exprimir a oralidade de povos sem acesso à escrita. Revisitando a história, vê-se que o gênero foi escolhido – não por acaso – como mecanismo de resistência à elite Russa, que, no século XIX, tentava sufocar expressões regionais de minorias e de grupos minorizados, impondo a cultura europeia como superior.

Nós brasileiros sofremos a mesma ditadura intelectualóide, de 1500 à contemporaneidade, com o sufocamento e o apagamento sistemático de usos, práticas, hábitos, costumes, das comunidades originárias. O mesmo fenômeno atinge a população negra, que supera 50% da demografia nacional, somados os que se declaram pretos e os que se apresentam como pardos, bem como os artistas das periferias do País, dos Estados e das cidades.

Esse processo de subalternização, a propósito, faz parte das tecnologias do racismo e funciona como estratégia de controle social. Embora não exista, no mundo, instrumento ou técnica capaz de determinar a superioridade da palavra escrita sobre a oralidade, do erudito sobre o popular, de uma etnia sobre outra, da região “x” sobre o lugar “y”, do doutor sobre o iletrado, há quem se enxergue acima dos demais pela origem e pela “boa formação”.

Nada contra os gringos. Sou fã de vários deles. Agora mesmo, conforme anunciado, estou encantando por um Russo, ainda por cima tentando me adaptar ao “papel digital”. Devemos, sim, ler clássicos de “Oropa, França e Bahia”, mas sem complexo de vira-lata. No Brasil, de ponta a ponta, existe literatura de qualidade; e, no Estado de Fabião das Queimadas e de Nildo da Pedra Branca, há vida inteligente além da Reta Tabajara, das faculdades e das academias.

Tais certezas se fortalecem no encontro fortuito com Tolstói, graças ao livro que papai deixou na prateleira antes de sair para trabalhar. Contos Completos prova que o universal nasce de fragmentos do cotidiano e que o grande escritor é aquele capaz de traduzir a alma da sua gente e do seu lugar, com sim-pli-ci-da-de, levando-me à constatação – sem comparativos – de que acertei ao me dedicar a autores que me contam sobre mim escrevendo sobre nós. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Netinho

Terminei a última crônica referindo-me brevemente a Pedro Neto, o Netinho, dono do Peter’s Bar, no Centro de Tibau, onde “encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga”. Menos de uma linha, como se percebe, mas o bastante para chamar a atenção de leitores atentos – e curiosos – que não param de me cobrar maiores informações sobre o dito cujo.

Pensando bem, é injusto – e até egoísta – mantê-lo escondido como detalhe de um texto qualquer. Por ser um cara sensacional e pelo tempo que ele, a mulher e os filhos suportam a mim e a outras figuras exóticas que se abancam no seu território para comer, beber e jogar conversa fora durante horas e horas, sem se preocupar com inconveniências etílicas, Netinho merece crônica exclusiva.

Somos amigos há tantos anos que nem me lembro como começou. De nossas conversas, envolvendo interlocutores do naipe de Cadu, o homem da supermemória, e de Caga na Lata, o poliglota, muitas histórias acabaram nas páginas do O Mossoroense. Falando nisso, também não faltam jornalistas no Peter’s, a exemplo de Ciro Ney e Sérgio Oliveira, sem dizer do fotógrafo das estrelas, Ricardo Lopes.

Certa feita, por ironia do destino, esbarraram por lá, o artista plástico, poeta, piloto de parapente e atleta de giroscópio, Laércio Eugênio, e sua musa, empresária e botadora de juízo, Arlete Cavalcante. Estavam cansados depois da longa caminhada de mais de duas horas, de Areias Alvas à Pedra do Ceará e da Pedra do Ceará ao Centro de Tibau, pela subida de doutor Rosado Cantídio. 

Quando entraram na Rua do Tubarão, alguns metros depois da igreja, deram de cara com Netinho, que abriu logo o sorriso e, com a simpatia de sempre, puxou as cadeiras a fim de que se sentassem. Laércio e Arlete não o conheciam e, para completar, tinham deixado o dinheiro na casa de João Batista, o psiquiatra de Jesus, que os hospedava. Mesmo assim, Laércio perguntou se podia beber uma cerveja. Fiado.

Uma cerveja que nada! Netinho escancarou as portas do bar, reativou a cozinha. Foi cerveja, água, pizza, refrigerante, do final da tarde até aproximadamente a meia-noite. Como não havia mais táxis, pela proximidade da madrugada, o dono do bar ainda viabilizou – e avalizou – dois mototáxis para levar o casal até Areia Alvas, longe feito a bexiga taboca, onde os psiquiatras se refugiam.

Ao se despedirem, impressionados, Laércio e Arlete, cada qual no seu mototáxi, agradeceram pela confiança naqueles “dois estranhos”, e a resposta veio na bucha: – Desconhecidos, não! Você é Laércio Eugênio, artista plástico, amigo de Cid Augusto. E amigo de Cid é meu amigo. Enfim, a viagem deu certo. Os mototaxistas foram e voltaram da corrida pagos e com o pagamento da pendura. 



Netinho é o cara! Gentil, simpático, solidário, amigo dos amigos e dos amigos dos amigos. Não sai do sério por nada neste mundo, nem por cem e uma cocada. Parece o Buda nos jardins de Jetavana. O mundo desaba e ele, impávido, sentado na calçada oposta à do Peter’s, em uma cadeira dobrável virada para trás, para que o encosto sirva de escora para os seus braços longos. 

Às vezes, nem chego ao bar, sento-me diretamente na calçada, do outro lado da rua, e a conversa flui sem roteiros, sobre tudo, sobre nada. Ou quase tudo. Ou quase nada. De repente, ele puxa religião, filosofia, literatura, o que der na telha. Só não tratamos de política, a não ser as trivialidades da temática. Pedro é um sujeito culto, virtude que se amplia em sua enorme humildade.

Quem passa pela rua do Brisa, de carro, moto, bicicleta, a pé, acena, grita, cumprimenta com alegria. A resposta é sempre um sorriso sereno e um gesto simpático com as mãos espalmadas para o alto. Conhece as pessoas pelo nome, qualidade que invejo. E eu ali de lado, morrendo de alegria de ser amigo dessa figura. Netinho é, sem dúvida, o melhor de Tibau, o dono da crônica.

Ao fim e ao cabo – chique, não é?... “ao fim e ao cabo”... aprendi com Dorian Jorge Freire –, um apelo do fundo do coração: pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas, não se aproveite destas informações privilegiadas para fazer vale em meu nome no Peter’s Bar. Minha triste condição de “liso estável”, como diria Carlos Santos, não me permite bancar nada além do meu uísque barato.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Aqui em Tibau

Todos os anos, do final de dezembro a fevereiro ou março, a depender do Carnaval e do calendário escolar, estávamos aqui, em Tibau, onde Rio Grande do Norte e Ceará se misturam como se fossem o mesmo estado de espírito e de coisas. Para ser sincero, não gostava, vinha à força. Nada específico contra o lugarejo abençoado pela natureza que vi se transformar em cidade, embora lavar as lentes dos óculos de 30 em 30 minutos, por causa da maresia, sucedesse como fator relevante. O problema, a bem da verdade, é que, além da preferência por sertão, as noites longas e escuras do litoral me provocavam medo.

Contribuía para o assombro do menino frouxo, o cenário da casa dos avós, imóvel rústico de taipa rebocada com cal, que não mais existe, a não ser na memória, em fragmentos remendados pela imaginação. De qualquer maneira, vejo agora, em flashs, o alpendre voltado para o Atlântico, as portas e janelas amarelas, a sala em “T”, o banheiro, os quartos, o pátio espremido entre a saída dos fundos e o paredão úmido enlodado pelas águas das vertentes que jorravam sem parar. Sucumbiu em 1985, devastada pelas areias coloridas que desabaram em razão das chuvas torrenciais daquele ano.

Como se percebe, ficávamos entre o morro e o mar, o que já dava sensação de isolamento, e isso nas imediações da Pedra da Sereia, formação argilosa dotada de uma gruta esculpida pela maré e pela maré destruída ao longo do tempo. Reza a lenda que nela coabitavam duas criaturas míticas: uma jovem lindíssima que, em noites de lua cheia, seduzia homens e os arrastava até lá; e uma fera acorrentada que devorava os tais incautos. Nunca tive o privilégio de esbarrar com a moça nem o desprazer de encarar o monstro. Aliás, os dois eram um só nos meus pesadelos seriados, dignos de produção da Netflix.



À noite, o som revolto das ondas, o balé contemporâneo das dunas, a sombra vacilante dos coqueiros, a penumbra contemplativa e os assobios fantasmagóricos do vento nutriam-me os pavores, sem dizer do repertório de lendas contadas por Ananias e Tidó, pescadores de outras eras. Acrescento às histórias deles, as narrativas de Mazinha, funcionária de minha avó, excêntrica a ponto de convidar a mim, um menino com menos de 10 anos, para ser padrinho do filho dela. É da autoria da comadre, com a melhor intenção de nos aquietar, a fábula da sapa gigante que morava no quintal e se alimentava de crianças traquinas. 

Medroso, mas curioso, não me furtava, junto a outros meninos e meninas, de frequentar sessões mediúnicas clandestinas promovidas por uma senhora que trabalhava em um lar próximo. Sentávamos em círculo, no chão frio de cimento queimado, enquanto ela abria os trabalhos rezando o Salve Rainha. As almas chegavam e, cordialmente, respondiam às perguntas formuladas, movendo um copo de vidro posto no solo com a boca para baixo. Certa feita, agora em nosso alpendre, esteve uma vidente que revelou a presença iluminada de Cid Augusto, tio materno falecido na infância, que me empresta o nome.

Não poderia faltar neste repertório, o “grito” da Fazenda Trevas, propriedade rural situada na região do cemitério e do campo de pouso, à época pertencente a Iogo Rosado, primo de saudosa memória a quem eu chamava de tio, por força do afeto. Pai de Ioguinho, amigo que não vejo há tempos, embora o tenha sempre à vista pelos olhos do bem-querer, Iogão costumava levar-nos até a propriedade para caçadas e para testemunhar, auditivamente, o “grito” sinistro que rasgava as madrugadas silenciosas. Especula-se que o fenômeno era humano, produzido pelo destemido vaqueiro Sansão.

Nestes 50 e poucos anos, Tibau mudou, perdeu morros, vertentes, personagens. A julgar pela ausência das jangadas e dos pescadores, o mar não está mais para peixe. Talvez seja o preço da urbanização, do progresso. Eu também mudei. Hoje só tenho medo de gente viva e percebo que os pesadelos da infância eram de certo modo confortáveis diante das ameaças reais da vida adulta. Volto pouco aqui, especialmente na alta estação, época barulhenta, de trânsito caótico, de pessoas nervosas, na qual só encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga, no Peter’s Bar, do meu bom e velho camarada Netinho.