sábado, 26 de julho de 2014

ARIANO SUASSUNA E MOSSORÓ


Congresso Mundial de Jornalistas, Centro de Convenções de Olinda-PE, maio de 1998. Representantes de 112 países reunidos para discutir desafios tecnológicos, futuro das comunicações, liberdade de expressão. E lá estava Ariano Suassuna, com sua famosa aula espetáculo, destacando-se entre palestrantes de renome internacional.

Sou fã avesso à tietagem, de modo que pensei muito antes entregar ao ídolo a cópia de “Síntese Histórica de O Mossoroense”, livreto de meia pataca que cometi na adolescência. Para minha surpresa, ele disse conhecer o jornal, que estivera inclusive em sua sede e “furtara” uma xilogravura utilizada como peso de porta logo na entrada da empresa.

Para quem não sabe, xilogravura é a matriz para imprimir, geralmente em papel ou tecido, imagens talhadas em pedaços de madeira. No Brasil, com exceção dos poucos cultores da “gravura de arte”, o método sobrevive no talento dos gravadores populares, a exemplo do poeta Antônio Francisco, que o utilizam para ilustrar capas de cordel.

A peça que Ariano salvou sem saber, pois grande parte se perdeu na enchente de 1985, é de autoria de João da Escóssia Nogueira, meu trisavô, que introduziu a técnica no Rio Grande do Norte a fim de ilustrar textos e propagandas veiculados nos jornais O Echo (lê-se eco) e O Mossoroense, aquele em 1901 e este de 1902 a 1905.

Tempos depois, o homem do Alto da Compadecida e da Farsa da Boa Preguiça chegou a Natal para lançar outra obra. Antônio Rosado Maia, primo querido de saudosa memória, telefonou-me da capital do Oeste pedindo que lhe comprasse um exemplar devidamente autografado, missão da qual tentei me desincumbir, com medo da fila gigantesca.

Fujo de filas como dizem que o tinhoso foge da cruz, mas segui em homenagem a Toinho. Ao ler nossos nomes naqueles papeizinhos criados para facilitar a vida dos escritores em noites de autógrafo, o autor perguntou: “Você é Cid Augusto ou Antônio Rosado Maia?”. Esclareci as identidades, sem imaginar, contudo, o motivo da indagação.

Após ouvir-me, lançou novo questionamento e explicou: “Vocês são o que de Tércio Rosado?... Doutor Tércio foi meu professor na faculdade de direito”. Tércio, irmão de Dix-sept, Dix-neuf, Dix-huit, Vingt e Vingt-un, pioneiro do cooperativismo, morou no Recife, onde vivia como docente e livreiro, embora formado em farmácia, direito e odontologia.


Pois é, Ariano Vilar Suassuna, gênio armorial da literatura que a morte, a “moça caetana”, resolveu abraçar aos 87 anos, censurando o livro inédito que preparava há duas décadas, possuía uma xilogravura de João da Escóssia e foi aluno de Tércio Rosado, cabras de Mossoró que a cidade não conhece além dos logradouros batizados com seus nomes.

sábado, 19 de julho de 2014

Licença poética


Brochei! O anúncio da partida de João Ubaldo Ribeiro, recebido pela TV às sete e poucos da manhã, “de chofre”, como diria o poeta Marcos Ferreira, sacramentou o destino de uma semana brochante, com desastres cinzentos e poucas tintas para remediar a palidez do caos. Solução, solução mesmo, com todo respeito a quem acredita em ressurreição da carne, vida eterna, parnaso de além-túmulo, só não tem para a filha da puta da morte.

Padre Antônio Vieira, no segundo dos três sermões sobre a “Arte de Morrer”, destinados a cerimônias de Quartas-feiras de Cinzas, lembra que escrever se aprende escrevendo e navegar se aprende navegando, de modo que, “assim também se há-de aprender a morrer, não meditando, mas morrendo”, pois, conforme advertira poucas linhas antes, “Nenhuma coisa se faz bem da primeira vez, quanto mais a maior de todas, que é morrer bem”.

A morte não é licença poética e não se conserta igual à perna quebrada do verso torto, pois a vida, a vida, meu amigo, é uma só e, como no Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes, “Duas mesmo que é bom/ Ninguém vai me dizer que tem/ Sem provar muito bem provado/ Com certidão passada em cartório do céu/ E assinado embaixo: Deus!/ E com firma reconhecida!”. O negócio, voltando a Vieira, é esforçar-se para morrer bem, morrer em pé.

Um escritor da elevação de João Ubaldo Ribeiro, por outro lado, sendo ele a própria licença poética entre nós, mortais de segunda classe, tem a vida e a morte multiplicadas nas personagens de suas obras. Não à toa, bradou seu Viva o Povo Brasileiro, que enxergo daqui, na prateleira, ao lado de O Feitiço da Ilha do Pavão, O Rei da Noite, A Casa dos Budas Ditosos, Diário do Farol, O Sorriso do Lagarto e O Santo que não acreditava em Deus.

Quando o inevitável acontece de fato e a “indesejada das gentes” se nos apresenta como a Manuel Bandeira, pessoas assim o fazem em dimensão diferente, tarimbadas das experiências vividas e morridas, nas mentiras de si e nas verdades alheias que, misturadas no liquidificador das mentes criadoras, dão asas à prosa e à poesia. Vai-se, então, o organismo desobrigado das rotinas fisiológicas. Fica a essência perpetuada na imortalidade das palavras.

Evidentemente existem entre os homens da laia a que pertenço, desprovidos da eternidade do verbo, indivíduos que, por serem tão amados ou bastante odiados, sobrevivem às gerações às quais se apresentam com roupas e sapatos diferentes, e até nus, conforme os olhares de cada época e cada espaço. Podem, inclusive, variar a estada entre o paraíso e a caldeirinha, mas sem se desprender da memória do mundo onde um dia se fizeram matéria.


O pintor Laércio Eugênio, que há 28 anos veio ao jornal conhecer-me em razão dos rumores sobre minha loucura, adora “chupar juízo”. Eu, sem lápis, sem pincel, escrevedor de meia pataca exilado na terra onde não há poetas nem cronistas, nutro tesão pelos juízos que nos reinventam no espaço da linguagem. Por isso, a impotência ante a falta de João Ubaldo. E o resultado, perdão, é um texto phoda no qual todos sofrem e ninguém goza.