quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Microconto nº 6

Deu duro o ano inteiro, com fé, obstinação, perseverança e atributos mais que se exigem da pessoa padrão, incluindo a resiliência, por ser da moda. Da última vez, comeu porco – ou suíno, na liturgia dos espetinhos –, traçou 12 uvas, engoliu um naco de romã, sem mastigar, e, trepado na mesa da sala, encheu o bucho de lentilhas. Vestia branco, é claro, e, depois dos fogos ecologicamente corretos, pulou sete ondas. Fará tudo de novo, por via das dúvidas. Quem sabe um dia...!


segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

MADRUGADA


Era tarde, eu vagava pela rua 
Naquele tempo incerto, irresoluto,
Em que a hora se esvai em um minuto 
E o Sol se reencontra com a Lua.

Buscava o bar, a dose que atenua 
A ilusão que nem quero nem refuto, 
Quando diante de mim – como tributo – 
A jovem madrugada se fez nua.

Por mera displicência ou fantasia,
Trocava, ali, a tez de noite escura
Pelos trajes dourados de outro dia.

Assim, virei boêmio e, sem tabu,
Só desejo que a flor da formosura,
Da próxima, também me faça nu.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Microconto nº 5

Véspera do Natal. Acordou por volta das 6h00 da manhã chuvosa. Mesmo com aquele sem vontade, desvencilhou-se dos lençóis e da cama. Tirou as remelas dos olhos com os indicadores, mijou, cagou, jogou água no corpo, escovou os dentes, penteou os cabelos, perfumou-se, trajou-se de sábado. Saiu de casa rumo a Cheila, no Mercado Central. Em lá chegando, tomou duas talagadas de café preto, comeu uma terrina de cuscuz ensopado em graxa de galinha caipira e foi feliz pelo resto do dia.


Microconto nº 4

Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... a vida sem feriados, sem fins de semana, sem descanso, sem paradas... Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... acautelar-se, pois o tempo devora os próprios filhos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... inadiável lidar com a impaciência dos vencimentos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... e mais ainda trabalhar... até que a morte proporcione o merecido descanso.

Microconto nº 2

Enganava-se com dois ou três apagões de breve eternidade. Cada sensação de queda parecia-lhe uma noite inteira profundamente bem dormida. A insônia, fingindo-se de amiga, consolava-o madrugada adentro: “Deita no meu colo, bom rapaz, que te protegerei dos pesadelos”. E o bom rapaz, ingênuo, cedia devotando olheiras sinceras à terrível companheira.

Microconto nº 3

No tempo de eu menino, a cidade cabia nos meus olhos. Um dia, entretanto, ela dobrou a esquina do Rabo da Gata com trejeito de quem pretende comprar cigarro e desembestou no meio do nada. Ninguém sabe aonde foi ou se continua indo. Mesmo à noite, aqui do 19º andar, a visão se desencontra das luzes que desfilam no espinhaço do infinito. Parece que a cidade se perdeu de mim para ganhar o mundo.

Microconto nº 1

 Surgiu do nada, no meio de uma escadaria onde nunca estive. Parecia quase tão vivido quanto eu. O mesmo sorriso e os mesmos olhos, entretanto. Iluminados! Reconheci na hora, a pesar do tempo enorme. Disse que veio por obra e graça da saudade, mas não podia ficar muito. Desapareceu enquanto me abraçava.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

SABOTAGEM

E assim nasce a boemia...

O sujeito sai de casa de manhã rumo ao trabalho, em pleno feriado de Santa Luzia. 

- Espere! Você não está em Assú?

Tem razão, mas carrego Mossoró aonde vou e não perco o costume do 13 de dezembro nem por cem e uma cocada.

- Hunnn! E agora é religioso? 

Bobagem, a virgem de Siracusa é patrimônio imaterial dos mossoroenses, acima dos credos e das descrenças. 

Enfim, como dito, sai para trabalhar. De repente, minha amiga Fernanda Cristina Cosme de Sá Leitão Soares, colega de escritório de advocacia, poetisa tão grande quanto o próprio nome e ainda por cima imortal que nem o compadre Caio César Muniz, anuncia a provável chegada de Grimaldi Zacarias ao número 912 da rua Sinhazinha Wanderley. 

E chegou mesmo, certeiro igual a poesia fescenina de Sávio Tavares, de violão em punho, sabotando por completo o expediente. Aí, meu bom e minha boa, veio Chico Buarque, saiu Belchior, desceu Cartola, Gal caetaneou-se de acordes e Marisa Monte se balançou para entrar no repertório. 

Grimaldi, para constar, é dos grandes violonistas que conheço, honrando a tradição dos “ança” do Vale do Açu – Carlança, Miltança, Belinhança –, do patamar de Antero, que não é de Quental, mas é José e é dos Santos, do naipe de Mirabô Dantas e Lázaro Amaro, cabras de Areia Branca, sem dizer de Genildo e Geová Costa, esse povo maravilhoso de Grossos, e de Jacson Damasceno, baiano que Natal tomou de Catu. 

Pois bem ou pois mal, precisei beber antes de chegar aos 85 quilos. É a dieta! Prometi que só tomaria uísque novamente quando caísse de 87 para 85. Ou seja, Fernanda e Grimaldi me levaram a queimar o expediente em vez de gordura. 

Okay, Okay, Okay, confesso! A culpa é toda minha. Amanheci com o feriado de Mossoró fervilhando no Assú do meu juízo, cutucando-me as costelas, doido pra debandar largando guardanapos no Dom Pedro, em Gemário, no Bode, no La Lua, no Baronesa, na rodoviária e no Mercado do Peixe, tomando as últimas das últimas com Diá e Canarinho.

Só não completei o percurso imaginado porque, lá pelas não sei quantas, ao levantar as vistas tocadas pela pureza do malte das Terras Altas – pasmem! –, a madrugada estava nua diante deste reles mortal que vos atormenta com escrevinhações tolas.




Flagrei-a sem querer no extado instante em que ela trocava o vestido iluminado de Lua pelas vestes douradas de Sol. Completamente nua, a danada, em luz e sombras, do jeitinho que veio ao mundo. 

Acredita? 

Creia ou não, desviei o olhar para não ser indelicado com a dama que se deixou ver por acidente – suspeito inclusive que Renato Caldas fez também assim ao vislumbrar “os seios da lua amamentando uma estrela” –. Contudo, a brevíssima cena percebida sem maldade já estava tatuada em minhas retinas com pigmentos de deslumbre e decepção. 

É que sempre encarno Florbela Espanca no ódio eterno à luz e na revolta incontida contra a claridade, a não ser a dos olhos de Clarisse.

Ah! Se eu conhecesse o segredo das tintas de Rogério Dias, Laércio Eugênio, Airton Cilon, Túlio Ratto e Gilvan Lopes. Se talvez Aluísio Barros, Marcos Ferreira, Antônio Francisco ou Nildo da Pedra Branca me emprestasse um versinho, o mais piquititinho que fosse. 

Tivesse eu algum talento, a madrugada nua ganharia cores, prosa, verso, como se fosse uma noiva de Habner encantada na eternidade digital do retrato. Todavia, nem palavra seduzo mais a esta altura dos acontecimentos etílicos. As que me restam depois da curva do fundo da garrafa tropeçam nos próprios sentidos tentando acompanhar o redator cujas pegadas não encontram sequer os próprios passos.

E assim morre a crônica.