Abri
sem querer o arquivo das velhas crônicas, espécie de baú eletrônico onde
encontrei tantas memórias que meu juízo frágil não suportou: desenrosquei a
tampa do litro de uísque e despejei no caneco de ágata dose dupla de lembranças
empoeiradas.
Bebi-as
num gole e, de repente, diante de mim redesenharam-se músicas, mulheres, noites
intermináveis, amigos, pessoas desaparecidas na imensidão da humanidade, a
madrugada sem fim, o medo de ser normal, de me fazerem igual aos outros homens.
Outro
gole me trouxe Maringá, Natacha, a guantanamera, a tigresa de unhas negras, o
choque entre o azul e o cacho de acácias, a primavera, Eurídice - meu silêncio,
a menina que, linda, virou mulher, Nefer! Nefer! Nefer!, a flor do mocambo, a
mais bonita.
Ainda
um e a lembrança de que, ontem, a noite apaixonou-se pela chuva, mas veio o
vento, tomou a chuva em seus braços e os dois, diante dos olhos da noite, amaram-se
fazendo evoluções eróticas iluminados pelos refletores da velha Praia dos
Artistas.
Muitos
depois, passei a enxergar versos se desmancharem na prosa, como se para ela
fossem feitos. Sílabas poéticas seduzidas em escocesa embriaguez promovendo espécie
de traição à lírica, como quem larga o poeta e se aboleta no colo de um
cronista.
E
este, o prosador das banalidades, despido dos pudores acadêmicos, alisa-lhes as
partes íntimas e excita a flor de cada letra, que se arrepia e geme. Depois,
com a boca cheia d’água, roça-lhes os fonemas com aquela língua grande, grossa,
grogue.
A
poesia surpreende os amantes, reclama seu pedaço. Namoram a três, mas ninguém vai
ao clímax. Esqueceram-se de convidar a inspiração para a suruba e, sem musas,
vocábulos são verbetes brochas no fundo dos dicionários, não alimentam os
orgasmos.
É
coisa do uísque, só pode. Conheço-lhe as faces e até reformulo o brocardo: “No uísque,
a verdade!”. Sinceramente, prefiro as mentiras dele que me deixam menos
realista e mais sonhador, pois, às vezes, o bom malte me vale por mil sonhos.
Fecha-se o baú.