sábado, 26 de abril de 2014

PALAVRAS PERDIDAS


Que merda! Perdi as palavras ou as palavras se perderam de mim. Não sei ao certo, e, para falar a verdade, pouco me importa escrever de coração vazio, boca seca e olhos ateus. Talvez tenham arranjado um amante para aliviar o tédio de um casamento de quase 30 anos, cheio de entregas e abandonos, muito mais desleixo que cuidado.

No começo desta avassaladora crise verbodegradável, tanto perplexo quanto desesperado, cortei os pulsos com o fio cego de adjetivos primitivos, daqueles que estraçalham a carne em que se esfregam na substantivação da raiva. Enquanto esvaía-se o sangue, reli coisas minhas tiradas dos bolsos da calça, de gavetas e de arquivos digitais.

Inútil exercício de autoflagelo, porque, sinceramente, detesto quase tudo o quanto escrevo. E publico. Alguns textos fedem a roupa suja. Mas, apelei a Vinícius, Drummond, Quintana, Florbela. Pessoa mente e não me acode para declarar a tristeza por Gabriel García Márquez, que partiu deixando-me à mercê de cem mil anos de solidão.

Olhava a tela do PC e broxava. Recorri ao bloco de papel, rabisquei versos, ensaiei crônica, em abjeta tentativa de masturbação intelectual. Pensava na gota d'água que não amolece e muito menos fura, visto que nem os fantasmas de Charles Dickens abalam o coração da pedra bruta, e dura, quando me surpreendeu a flor cantando assim:

“Veleja, barquinho, veleja!
Veleja nas ondas do mar.
Leva-me sem remos, sem velas.
Leva-me sem vento e luar.
Veleja, barquinho, veleja!
Por que não sei velejar.
Sozinho eu me perco, barquinho.
No vai e volta das ondas,
Das ondas, das ondas de amar.

Veleja e me leva, barquinho.
Veleja para outro lugar.
Joga-me numa ilha, sozinho.
Bem longe das ondas do mar.
Veleja, barquinho, veleja!
Que eu rezo para não naufragar
A nau do meu coração,
No vai e volta das ondas,
Das ondas, das ondas de amar”.

Versos alheios tão meus, que dispenso dizer algo por agora. Já soltei a caneta e rasguei a papelada. Falta desligar o computador e velejar sem remo, sem rumo, sem prumo, sem vento, entregue a ondas que vão, que vêm e que me lambem os pensamentos cabeludos, até encontrar a ilha onde enterraram o baú das palavras perdidas em mim.

sábado, 12 de abril de 2014

O VISITANTE


Segunda-feira, 15h30min. Dia, mês e ano, deixei de anotar nos papéis reencontrados na bagunça do armário, entre livros, documentos, telas, CDs, DVDs. A hora, segundo consta, verifiquei no relógio do computador quando Daniela, à época recepcionista do jornal, interfonou-me comunicando que um sujeito queria falar comigo.

O cabra foi entrando, pois não há burocracia para se falar com qualquer funcionário do O Mossoroense. Era um moreno grisalho vestido com jeans e camisa de algodão branca de mangas compridas. Calçava tênis pretos, usava pochete semicoberta pela barriga saliente e transportava óculos escuros na cabeça, como se fosse uma tiara.

Acompanhei-o com os olhos enquanto atravessava a redação, na tentativa de conferir se o conhecia – tenho cabeça ruim para nomes e fisionomias. Ao nos cumprimentarmos, no entanto, descartei a hipótese, inclusive porque ele foi logo dizendo que viera por indicação de um amigo comum cujo nome preferia não revelar. Por enquanto.

Indiquei a cadeira com a mão espalmada e ele se esparramou feito mulher buchuda. Perguntei no que poderia ser útil. “Procuro um escritor”, respondeu-me, com a desculpa de que desejava contar “algo que você jamais ouviu na sua vida”. Agradeci a confiança e o rótulo de “escritor”, mas lamentei, esclarecendo minha prosaica condição de cronista.

Antes de fechar a frase, recebi a ordem: “Anota aí. Tudo. E publica quando meus planos se concretizarem”. Tentei mudar de assunto... “Anota aí, porra, vou matar minha mulher”. Abri o bloco do Banco CNH, alusivo ao 15º prêmio de jornalismo econômico, mais por espanto que medo, apesar da condição pública de frouxo convicto e militante.

Argumentei que a separação seria menos traumático para todos. “Nada feito”, disse ele, garantindo que, na verdade, estava separado. O problema é que a ex-mulher era uma “cadela” que lhe roubava as coisas e fazia sexo com o filho adotivo de ambos. “Há alguns dias, para completar, invadiu-me a residência e transou com meu cachorro”.

“O senhor deve pensar que sou louco”, prosseguiu atropelando as sílabas e embolando palavras em frases com a língua trôpega, “sei que não lhe trago uma história comum, dessas das pessoas simplórias, e, justamente por isso, preciso de alguém de grande sensibilidade que vá a casa comigo agora, tome café, beba água, ouça os detalhes”.

Agradeci pela gentileza e declinei do convite, pedindo que compreendesse a impossibilidade de sair no meio da tarde para o convescote. Expliquei que os afazeres de jornalista mantinham-me prisioneiro dos fatos até tarde, entrando por vezes na madrugada, além do que preferia não divulgar aquele negócio nem enquanto notícia.

O homem respirou fundo. Repousou as mãos cruzadas sobre a barriga. Fechou os olhos. Tornou a respirar. Desentrelaçou as mãos, levando a esquerda ao rosto, indicador e médio na testa, polegar no queixo. Pensou. Pediu sugestões, escritores de Mossoró, telefones, “alguém que possa escrever para eu não me esquecer de tudo um dia”.


Lamentei outra e outra e a derradeira vez. Ele agradeceu com um “obrigado” um tanto mudo, entre dentes, levantou-se ajeitando as calças e sumiu em passos rápidos, embora curtos. Talvez fosse louco. Talvez a mulher nem existisse. Nem ele. Talvez as anotações do bloquinho fossem tópicos de um conto qualquer. Quem diabos saberá?