sexta-feira, 30 de março de 2012

ESTAÇÕES



Os olhos
já não tocam
a carne
que os procura
na penumbra
do quarto.

Nessa busca,
às vezes se despe
e espera.
Tanto espera
que se desengana.

Por que
rasgaram-lhe
a pele
de sombra?

Servir luz
e logo depois
arreganhar
dentes
amarelados
é covardia.

Qualquer dia,
varrido
pelas águas
o mau cheiro
de folhas mortas,
outra flor
há de nascer
entre as pedras.

E, se for tarde,
outro perfume
certamente
enfeitará
as vergonhas
da matéria humana.

sábado, 17 de março de 2012

Augusto Floriano


 
Havia poucas pessoas dispostas a colaborar quando, na década de 1990, O Mossoroense lançou o suplemento cultural denominado Caderno 2, hoje Universo, por sugestão do jornalista Emerson Linhares.

Para superar a deficiência de colaboradores, e na intenção de difundir e estimular as artes, os mais próximos dispunham-se a publicar crônicas, contos e poemas em nome próprio e se utilizando de pseudônimos, garantindo, assim, o mínimo necessário de trabalhos.

Não revelo os disfarces literários dos amigos que ajudaram a consolidar aquele que vem a ser o único espaço essencialmente cultural da imprensa norte-rio-grandense, mas não me incomodo de dizer o meu: Augusto Floriano.

Augusto não por meu segundo nome, e sim em homenagem ao meu bisavô materno, jornalista Augusto da Escóssia Nogueira. Floriano como remissão aos sobrenomes de meus "escanchavós" Floriano da Rocha Nogueira, poeta, e Ana Floriano, comandante do Motim das Mulheres.

Tentei criar uma personagem com identidade própria, que se qualificava "autodidata" e escrevia versos livres com roupagem contemporânea, mesclando tendências sem preocupações formalísticas.

Tipo como no dia em que me deparei com "Lance de Dardos", de Iracema Macedo, e, apaixonado pela obra, uma das mais importantes da poesia potiguar, incorporei Augusto Floriano para homenageá-la num passeio pelos versos da musa poeta.

CARTA A IRACEMA MACEDO

Augusto Floriano
Autodidata

Não tenho a graça escrita no livro das estrelas.
Na verdade, não sou anjo, talvez demônio ou nada.
Quem sabe, sou apenas este nome que me deram
no fim de outra era, quando a moça feiticeira
seqüestrou minha alma para o fundo do Poço Feio.

Desde aquele tempo devorado pelos anos,
vivi aqui dentro, na sombra do mundo,
sem as bênçãos do brilho de ninguém,
até que choveram tuas palavras em meu inferno
e, nos olhos dos teus versos,
sonhei contigo duzentas noites,
descobrindo novos caminhos
até te adivinhar inteira dentro do vestido.

Profanei os teus altares com os meus dedos insanos,
penetrei com minha língua pornográfica
o sagrado silêncio dos teus seios,
menti às tuas carnes somente para te fazer vadia.

Contudo, não eras minha, não eras para mim,
era a um anjo que escrevias.
Mesmo assim, perfumei-me com versos teus,
fui ao primeiro bar e bebi à tua inspiração.

Depois da terceira dose de luz,
a moça feiticeira arrastou-me novamente
para o fundo do fundo do Poço Feio,
onde espero ansioso a próxima tempestade.

Por que revelar isso agora? Ocorre que acabo de encontrar os textos de Augusto Floriano perdidos num recanto da memória do computador. Ocorre que deu vontade. E pronto!

sábado, 10 de março de 2012

Estado de coisa



Todos dormem. Na penumbra rajada pelo luar que atravessa as frestas da janela do quarto, ouvidos de ouvir canção de nada servem aos barulhos da madrugada e olhos vermelhos que arremedam vaga-lumes contemplam, em via reversa, a imensidão do nada. Por dentro, o ser humano em estado de coisa – coisificado – é a primitiva expressão do caos.

Abafado para chuva de verão. O suor na testa denuncia tanto a quentura quanto a precariedade do ventilador de teto cujas hélices gemem e gemem e gemem. Gole da água no copo de alumínio sobre o criado-mudo não basta, pois a garganta seca, inflamada, reclama dilúvio que a ajude a deglutir a insônia atravessada faz eras no desfiladeiro do pescoço.

A memória em condição vegetativa, mastiga, macrobioticamente, palavras que achou abandonadas no twitter: “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”... “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”.... “‘Você me ama?’ Não é pergunta que se faça/ ‘Amo!’ não é resposta que se dê”...

As muriçocas mais parecem urubus, essas sebosas, quase matam o sujeito de anemia. Elas e o calor, o calor e o suor, o suor e o ventilador, o ventilador e as hélices, as hélices e os gemidos, os gemidos e a insônia, o acocho no juízo. Podia estar agora em Lyon, entre os cinzeiros e as garrafas, com os cabelos grisalhos derretidos no colo de uma qualquer.

Quando descoisificar, voltar a ser gente nos próprios ossos e carnes, a janela estará escancarada, permitindo o vislumbre das aves noturnas em pleno exercício de voo. A cidade, enternecida, arreganhará gentilmente os seus bares, implorando para ser acariciada, lambida, penetrada até que o Sol abençoe a Terra com seu gozo de luz. Todos acordaram.

sábado, 3 de março de 2012

Fora do texto



Passaram-se mil anos até que eu entendesse a natureza etérea das palavras. Naquela sala quente e escura situada nos fundos do colégio, para onde me transporto acidentalmente, atraído por fantasmas renitentes, jamais as imaginaria por trás da máscara monstruosa com a qual se apresentavam aos meus olhos de criança. Revejo-me humilhado, perdido entre as letras do alfabeto. Não raro, estava ali, no “Cantinho do Feio”, de castigo por tropeçar nas letras do alfabeto que não conseguia aprender de cor.

Havia uma menina cuja companhia todos disputavam por sua beleza, simpatia e inteligência, um anjo de candura que abria mão do intervalo e descia ao mundo dos mortais, ao meu socorro. Ditava e ordenava os vocábulos, traduzindo-os, quando necessário, em sinais gráficos elementares, os quais imprimia segurando-me a mão que apertava o lápis enquanto este se derretia nas folhas do caderno. Nunca esquecerei o gesto de solidariedade e ternura que evitou maiores vexames na presença dos colegas.

A mocinha é a única lembrança agradável dessa história reencontrada, acidentalmente, sob entulhos de memória. As punições e seus efeitos psicológicos devastadores levaram-me a odiar substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, com todas as minhas forças e fraquezas - mais fraquezas do que forças. Durante uma eternidade, reneguei livros, jornais, revistas, estudos, qualquer espécie de leitura. Gramática tornou-se desaforo. Escola era sinônimo do enfado que se agigantava na tarde quente de Mossoró.

Séculos depois, movido por sentimentos tão repugnantes quanto aqueles, dissequei uma frase, espalhando as tripas da infeliz no chão da biblioteca, e descobri o mundo de sentidos em suas entranhas. Descobri, nesse exercício anatômico, que os signos da linguagem têm sangue e alma. Apaixonei-me por linhas, mesmo as vagabundas mal traçadas, e aprendi a me encontrar nas entrelinhas. Hoje, ajoelho-me diante das palavras e imploro que me seduzam e me libertem da solidão que escraviza fora do texto.