sábado, 30 de outubro de 2010

O estranho



Encontrava-se ali, sentado, fazia horas. Segundo consta, o estranho chegou puxando uma carrocinha cheia de papelões velhos, garrafas secas e revistas usadas. Nada pediu nem ofereceu. Ficou quieto com as pernas cruzadas, revelando, mesmo sem esta intenção, que os pés descalços estavam tão sujos quanto o bigode e a barba.

Ele ria sem arreganhar os dentes. Na verdade, ele nem abria a boca, apenas acionava a musculatura do rosto sulcado por rugas precoces, empurrando as extremidades dos lábios no rumo das orelhas semiencobertas pelos cabelos castanhos. Tarefa difícil. A pouca mobilidade facial e os olhos apequenados eram prova do sacrifício.

O silêncio do maltrapilho feria os tímpanos dos observadores que fingiam não enxergar as toneladas de palavras mortas atrás daquele sorriso. As cadeiras punham-se de costas, porque os olhos distantes do homem embrulhavam o estômago de quem teve o privilégio das primeiras refeições do dia e já se deleitava com o aperitivo do jantar.

Pode crer, prezado leitor, o constrangimento foi geral. Até o vento deixou de brincar com as folhas da mangueira amojada que se derramava em flores na própria sombra. Os pássaros, pouco a pouco calaram e a tarde pediu que a noite se apresentasse mais cedo ao posto de trabalho, de modo a esconder na escuridão a miséria da personagem indesejada.

De repente, uma tigela de comida chegou às mãos do maltrapilho. Alguém decifrara o enigma proposto no sorriso mudo e no olhar disperso. Ele aceitou a oferta sem agradecimentos, apenas estendeu as mãos para receber o que lhe davam e comeu bem devagar, como se não estivesse faminto, mas comeu tudo, raspou a tigela.

Depois, o estranho esfregou as mangas da camisa na boca, retirando o excesso de gordura, levantou-se e partiu sem olhar para trás, sem dizer palavra, arrastando em marcha lenta a carroça carregada de quinquilharias. Foi indo e indo até dobrar a primeira esquina da rua e desaparecer sem revelar nada sobre si além da miséria e da fome.

sábado, 16 de outubro de 2010

Medo da Morte



Quer saber? Eu morro de medo da Morte e de inveja de quem não a teme. Do universo de menino ao tempo de rapaz, não me lembro de haver me preocupado com o assunto. Não era à toa a coragem de correr nos telhados das casas de meus pais e de meus avós, de montar em burro brabo, de saltar de peito aberto do pinga da Pedra do Ceará na crista das ondas de Tibau e de enfrentar os bandidos imaginários do Beco dos Tarados, aquele ali à direita de quem olha para o Cemitério de São Sebastião. Atravessá-lo à noite, quando não era pavimentado nem possuía iluminação, era demonstração de bravura.

Anos se passaram, perdi familiares, perdi amigos, perdi crenças, perdi sonhos de imortalidade construídos na memória da infância com imagens de figuras de revistas em quadrinhos. Ganhei tristeza, ganhei saudade, ganhei inquietações medonhas e, vez em quando, no silêncio das multidões, pego-me a refletir sobre o sentido das coisas, se é que algo no mundo faz realmente sentido diante da única certeza da vida, a de que o verbo ser não será conjugado para sempre no futuro do presente na concepção de existência física, mesmo com o avanço da genética que tenta alcançar a sabedoria da natureza.

O repórter fotográfico Luciano Lellys, meu amigo e colega de trabalho há quase duas décadas, jura beijando os dedos indicadores em cruz que a Morte não o amedronta. "Meu receio", diz o retratista, "é a forma que ela chegará". Em outras palavras, quem assusta mestre Luc é a face da nova namorada que se imagina a velha amante, como a define Vinícius de Moraes no poema Haver. "Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio", escreveu o poetinha, "Pelo momento a vir, quando, emocionada/ Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ Sem saber que é a minha mais nova namorada".

Esse mistério da chegada é perturbador, inclusive para os que, a exemplo de Fernando Pessoa, afirmam que "Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada". Será cruel e dolorosa ou amável e serena? Terá a forma de esqueleto armado de foice ou a cara indefinida do pai que devora os próprios filhos? Chegará na hora esperada ou atrapalhará os nossos planos? Virá pelo aço, pelo fogo, pela água ou pela própria matéria? Gilberto Freyre pedia que viesse suave: "Eu não chamo a Morte de doce/ Sei que Ela é amarga/ (O amargor das raízes)/ O que eu digo à amarga Morte é que venha/ docemente".

Prefiro a ideia de João Cabral de Melo Neto de que "a medida do homem/ não é a morte mas a vida". O problema é que a medida é curta. Por isso, embora sentindo medo, torço para que a Morte seja tão feminina quanto sua presença substantiva no dicionário. Não precisa ser linda, basta ser bonita. Tomara, se não for pedir muito, que tenha a paciência da amante experimentada nas artes da noite e, recorrendo a essa vivência, quebre o clima de tensão do primeiro encontro servindo-me um bom vinho tinto chileno, fazendo-me massagem nos pés e dizendo-me indecências ao pé do ouvido na hora de nos deitarmos.

sábado, 2 de outubro de 2010

15 de março de 1852



Véspera das eleições 2010, abro a “História de Mossoró”, do mestre Francisco Fausto de Souza, que a brava Coleção Mossoroense acaba de republicar. A quarta edição, com orelhas de Wilson Bezerra de Moura e prefácio de Lemuel Rodrigues da Silva, traz nas páginas 24 e 25 narrativa sobre a emancipação política do município que acaba de comprar o título nobiliárquico de “Metrópole do Futuro”.

O livro é um daqueles, na linha do “Mossoró”, de Vingt-un Rosado, do “Notas e Documentos para a História de Mossoró”, de Luís da Câmara Cascudo, e do “Executivo e Legislativo de Mossoró – numa viagem mais que centenárias”, de Raimundo Soares de Brito, que os senhores vereadores deveriam haver ao menos folheado antes de violentar nossa inteligência com a malfadada Lei nº 2009/2004.

Esse monstrengo legislativo – ainda em vigor – faz de 9 de novembro de 1870 o dia a partir do qual teríamos conquistado o direito de eleger nossos valorosos edis. O correto, no entanto, é 15 de março de 1852, data em que o multifacetado capitão José Joaquim da Cunha, presidente do Rio Grande do Norte, assinou a Lei Provincial nº 246, emancipando-nos de Assú. Nas letras de Francisco Fausto:

“CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO – Pela Lei Provincial nº 246, de 15 de março de 1852, fora o território da ribeira de Mossoró desmembrado do município do Assu, a quem sempre pertencera, formando um novo município e elevada a respectiva povoação à categoria de vila de Mossoró”. E mais: “Neste mesmo ano foi eleita a primeira Câmara”, presidida pelo reverendo “Antônio Freire de Carvalho”.

A lei nº 620, de 9 de novembro de 1870, que confundiu os legisladores do século XXI, limita-se, de forma lacônica, a dizer “Fica elevada à categoria de cidade a Vila de Mossoró”. Tratou-se, a bem da verdade, de um gesto emocional, sem efeitos práticos, intentado pelo deputado vigário Antônio Joaquim. A diferença entre vilas e cidades, na época, era apenas a potencialidade econômica do lugar.

O brasão de Mossoró, estampado em todos os documentos do Legislativo, inclusive no timbre da Lei nº 2009/2004, traz numa faixa verde-amarela a inscrição “Município de Mossoró 1852”. O símbolo, de acordo com o historiador Geraldo Maia, existe desde 1912, havendo sido incluída a data magna graças à lembrança do então presidente da intendência, o apodiense Francisco Izódio de Souza.

Nem era preciso fazer o extraordinário esforço de abrir um livro ou de se submeter ao desgaste de consultar quem perde tempo estudando o passado daquela que Túlio Ratto apelidou de “Megalotrópole do Semiárido”. A data real estava na cara dos vereadores que reescreveram a história da “Terra da Liberdade”, justo privando-a de 18 anos de emancipação, erro crasso que infelizmente persiste.