sábado, 16 de outubro de 2010

Medo da Morte



Quer saber? Eu morro de medo da Morte e de inveja de quem não a teme. Do universo de menino ao tempo de rapaz, não me lembro de haver me preocupado com o assunto. Não era à toa a coragem de correr nos telhados das casas de meus pais e de meus avós, de montar em burro brabo, de saltar de peito aberto do pinga da Pedra do Ceará na crista das ondas de Tibau e de enfrentar os bandidos imaginários do Beco dos Tarados, aquele ali à direita de quem olha para o Cemitério de São Sebastião. Atravessá-lo à noite, quando não era pavimentado nem possuía iluminação, era demonstração de bravura.

Anos se passaram, perdi familiares, perdi amigos, perdi crenças, perdi sonhos de imortalidade construídos na memória da infância com imagens de figuras de revistas em quadrinhos. Ganhei tristeza, ganhei saudade, ganhei inquietações medonhas e, vez em quando, no silêncio das multidões, pego-me a refletir sobre o sentido das coisas, se é que algo no mundo faz realmente sentido diante da única certeza da vida, a de que o verbo ser não será conjugado para sempre no futuro do presente na concepção de existência física, mesmo com o avanço da genética que tenta alcançar a sabedoria da natureza.

O repórter fotográfico Luciano Lellys, meu amigo e colega de trabalho há quase duas décadas, jura beijando os dedos indicadores em cruz que a Morte não o amedronta. "Meu receio", diz o retratista, "é a forma que ela chegará". Em outras palavras, quem assusta mestre Luc é a face da nova namorada que se imagina a velha amante, como a define Vinícius de Moraes no poema Haver. "Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio", escreveu o poetinha, "Pelo momento a vir, quando, emocionada/ Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ Sem saber que é a minha mais nova namorada".

Esse mistério da chegada é perturbador, inclusive para os que, a exemplo de Fernando Pessoa, afirmam que "Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada". Será cruel e dolorosa ou amável e serena? Terá a forma de esqueleto armado de foice ou a cara indefinida do pai que devora os próprios filhos? Chegará na hora esperada ou atrapalhará os nossos planos? Virá pelo aço, pelo fogo, pela água ou pela própria matéria? Gilberto Freyre pedia que viesse suave: "Eu não chamo a Morte de doce/ Sei que Ela é amarga/ (O amargor das raízes)/ O que eu digo à amarga Morte é que venha/ docemente".

Prefiro a ideia de João Cabral de Melo Neto de que "a medida do homem/ não é a morte mas a vida". O problema é que a medida é curta. Por isso, embora sentindo medo, torço para que a Morte seja tão feminina quanto sua presença substantiva no dicionário. Não precisa ser linda, basta ser bonita. Tomara, se não for pedir muito, que tenha a paciência da amante experimentada nas artes da noite e, recorrendo a essa vivência, quebre o clima de tensão do primeiro encontro servindo-me um bom vinho tinto chileno, fazendo-me massagem nos pés e dizendo-me indecências ao pé do ouvido na hora de nos deitarmos.

Um comentário:

Rosemilton Silva disse...

Meu caro, Cid. Você cada dia se supera no saber lidar com a palavra e, agora, me parece que aliado ao retratista Luciano - profissão do meu pai que eu teimo em achar que sei seguí-la - também se agiganta diante da certeza que a morte virá e que não a teme. Amigo velho, eu já vi, bem de perto, a foice roçando no cangote, muitos anos depois de ver a foice e o martelo cruzarem novas vidas. Como vocês, só peço que ela venha suave e, de preferência, na noite em que o sono esteja profundo.

Um abraço grande.