sábado, 27 de dezembro de 2008

Folhas de outono



O livro de Francisco Rodrigues é uma maravilha, desde a capa de Túlio Ratto ao posfácio de José Leite. Aliás, Seu Chico é, em si, uma beleza, inteligente sem arrogância, “lido” sem afetações literatescas, cordial sem fingimento e humilde o bastante para compartilhar memórias, libertando-as ao sabor dos ventos, de carona em Folhas de Outono.

O parecer carece de fundamentação crítica, sustenta-se apenas na passionalidade afetiva de quem se limita a falar “gostei” ou “não gostei”, por desconhecer as variáveis dos entendidos para indicar os elementos que diferenciam obra e obra. Pois muito bem, gosto do autor, mesmo sem maior convivência que justifique o bem-querer, e gosto do livro.

Quem lê as recordações de Seu Chico tem a sensação de ouvir histórias daquele parente mais velho cujas experiências nos servem de parâmetro. Até as tiradas ficcionais desse retratista das letras ajudam a compreender o passado de nossa terra, o passado de nossa gente e, assim, a contextualizar os retalhos de nosso próprio varal de lembranças.

A leitura me remete às conversas com meu avô paterno, o velho Lahyre, falecido aos 92 anos, véspera dos 93, lúcido até o último dos suspiros. Sua cabeça era algo invejável, capaz de manter intactos as cores, os sons e os cheiros dos acontecimentos. Para se ter idéia, trazia de cor as fórmulas dos remédios que produzia na extinta Farmácia Rosado.

Em Folhas de Outono, não necessariamente com pontos de vista iguais, há ecos dos relatos de doutor Lahyre. Porto Franco, estrada de ferro, ruas antigas, embates políticos. Algumas figuras se cruzam, a exemplo de Terto Diabo, sogro do monsenhor Barreto, religioso vítima de uma das maiores injustiças praticadas na libertária terra dos monxorós.

Diga-se, ao fim e ao cabo, de meu respeito pelos memorialistas, e, à vista de sua bela coleção de momentos, Seu Chico é digno da nomeada. Eu, que perco os óculos no rosto, que sofro para ligar nomes a pessoas e que não raro me esqueço do autor quando acabo de ler seu livro, deixo, por escrito e impresso, este humilde gesto de reconhecimento.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Beleza é fundamental


O poeta Vinicius de Moraes comprou uma briga de foice com segmentos feministas ao pedir perdão às "muito feias", em Receita de Mulher, para declarar que "beleza é fundamental". Poucos compreenderam a subjetividade do texto, pois o belo, inclusive no reino das criaturas estereotipadas, alimenta-se das fantasias e das expectativas de cada sujeito.

Disseram-me que tenho a triste fama de namorar mulheres feiosas. E isso aconteceu na madrugada de sexta-feira, na festa de Santa Luzia, padroeira das claridades visuais. Fiquei surpreso, embora sem queixas, afinal o comentário veio de uma bela mulher e me foi repassado por outra não menos atraente, de acordo com meu "duvidoso" sentido estético.

Ao amanhecer, tentei decifrar a enigmática face da feiúra. Comecei pelo rosto que me apareceu no espelho do banheiro, com dois pares de rugas aspando olheiras gigantes e estas, por suas tristes vezes, servindo de molduras a olhos vermelhos, parecidos com aqueles descritos por Machado, o Bruxo do Cosme Velho, "de ressaca, oblíquos e dissimulados".

Parti para o espelho do quarto, que é dos grandes, e enxerguei o indigitado sujeito na superfície envidraçada do objeto narcisista, agora de corpo inteiro, nu, ostentando aquele físico de anjo barroco: baixinho, gordinho e sexualmente resumido, além de ser cabeção e branquela feito ratazana de laboratório. Ixe, ainda bem que há gosto e setembro para tudo.

Existem, nas conjecturas de Baudelaire, "tantos tipos de beleza quanto modos habituais de se procurar a felicidade". Nesse contexto, toda mulher, inclusive as consideradas "muito feias", tem algo de fascinante a oferecer, especialmente aos homens que se esbaldam na riqueza do detalhe. "Quem ama o feio", diz um sábio e antigo ditado, "bonito lhe parece".

Não nos esqueçamos dos padrões culturais. O belo na ótica brasileira é diferente do conceito americano, do alemão, do africano, do chinês e por aí vai. Claro, há gente como eu que é horrorosa em qualquer parte do globo, mas, no passo dos desafinados, nós, os desabonitados, também temos coração e queremos ser felizes, crescer, amar e multiplicar.

No mais, cabe-me dizer, sem o interesse de com isso me gabar, que vivo com uma mulher linda, cheirosa, gostosa e, como se não bastasse, de rara inteligência. Foi ela quem me enquadrou na sub-raça dos boêmios de asa quebrada, com a magia de seus beijos, o calor de sua carne e a maravilha do amor que conservou por 20 anos para me entregar.