sábado, 29 de outubro de 2011

A um soneto

Não sei por onde principio, só sei que preciso fazê-lo, desaguar a mágoa que vem se acumulando nestes anos de pouca convivência e muito desencontro. Talvez não valha a pena destrancar esqueletos do armário, contar-lhes as costelas, ouvir-lhes o estalo dos ossos, o arrastado das correntes, embora alguns saiam das gavetas por conta própria e deem o maior trabalho para retornar aos sepulcros da memória.

Melhor dizer na generalidade das metáforas, se alguma delas me acudir neste vale de lágrimas antes de os neurônios boiarem nos humores do uísque que desce rápido, goela abaixo, inunda veias, artérias, e se lança - ou me lança? - nos labirintos da loucura. Permita-me, deus dos ateus, penetrar de fala dura a santidade das palavras, pois a missão que se desvela roga, implora, frases virgens na foz da língua úmida.

Sem lhes roubar a pureza, ternura necessária a tirar dos ombros as ruínas do coração em frangalhos, depositando os entulhos em lugar digno. É a morte do verbo numa espécie de haraquiri, a caneta como espada. Ou, na boa, a eutanásia do suspiro, "a morte sem sofrimento". Creia, amiga, até o mau poeta escravizado nas entrelinhas da prosa sabe quando o soneto não o transportará à chave de ouro. E desiste.

Dedico-lhe, portanto, versos sem saída nascidos com alguma métrica, alguma rima, algum sentido, mas que se veem, depois de tantas reescritas, encurralados na pobreza da alma que se rende à sensatez da realidade implacavelmente... fria. E pergunta: por que a inspiração trai? Por que anjos mentem feito demônios sádicos? Por que musas aliam-se a inimigos da lira? Por que a poesia humilha o pobre criador?

Desarme-se e me responda à cor daquelas vistas que observavam a esquina do mundo antigo da infância: devo concluí-lo? Recomeçá-lo? Esquecê-lo? Rasgá-lo? Onde diabos, mulher, seus gemidos se perderam? Que nunca mais. Em tempo: please, don't let me down com ironias, o melhor e pior de você, afinal a eloquência dos perfumes se revela, muitas vezes, no silêncio das flores. Amo você, mas sinto medo.

Mais que isso: é pavor! De te conhecer por fora, além das letras pelas quais se reinventa em esfinge e me devora, e me chupa o juízo. É pavor! Dos olhos de fogo os quais só me falta plantar num rosto. Amar composições inacabadas, mantê-las ensimesmadas ou dar-lhe à luz e correr o risco de encontrá-las nas mãos de outras criaturas prenhes de fantasia? Eis a questão. Diga-me, insisto, já não sinto aonde vou.

sábado, 22 de outubro de 2011

“Mister Gaddafi”

Desde o início da crise na Líbia, que resultou na morte de Muammar Gaddafi, tenho me lembrado de dois colegas de intercâmbio. Muhammad e Ali, aquele médico e este engenheiro, estudaram comigo durante três meses na escola de idiomas Eurocentres, na cidade de Brighton, Inglaterra.

Certa feita, surgiu na sala de aula do professor Michael, especialista em pes-soas com muitíssima dificuldade em aprender Inglês, o debate sobre política. Cada um dos estudantes, e havia gente de várias partes do mundo, deveria tentar descrever o sistema governamental do seu país.

Os relatos dos alunos de origem islâmica chamavam atenção pelas diferenças em relação a nós, nossa visão cultural e sistemática de poder. Os relatos oci-dentais, digamos assim, igualmente causavam espécie aos amigos árabes. Tudo isso, no entanto, sem afastar o clima respeitoso.

Muhammad e Ali, cujos nomes pronunciados nessa sequência remetem ao pugilista americano Cassius Marcellus Clay Júnior, descreveram a Líbia de 2001, um período de otimismo, com o fim das sanções da Onu e a retomada das negociações com a Europa, no setor de petróleo e gás.

Confrontados com o conceito de ditadura, defenderam “Mister Gaddafi” – e te-nho a impressão que na época escrevíamos “Kadafi”. Demonstravam, em suas palavras, reverência por aquele que, em nossa maneira de enxergar as coisas, não passava de um déspota corrupto e sanguinário.

Nada estranho, pois, na década passada, os grandes líderes mundiais faziam questão de aparecer abraçados com o tirano. Tony Blair o visitou duas vezes, sem se lembrar dos atentados terroristas que Gaddafi patrocinou na Escócia, em 1988, que causaram a morte de 270 inocentes.

O tirano foi abraçado por Condoleezza Rice e Barack Obama. A União Africana o promoveu a seu líder. Até Nelson Mandela, meu ídolo, responsável pelo fim do Apartheid na África do Sul, exemplo de tolerância e espírito humanitário, deu-lhe apoio público em determinadas ocasiões.

Na madrugada de sexta, fechando o dia anterior de trabalho, liguei a TV para relaxar pouco antes de dormir e me deparei com a cena grotesca do lincha-mento de Gaddafi. Primeiro, o homem vivo, limpando sangue do rosto com uma das mãos. Depois, um cadáver como troféu.

O governo dos “rebeldes” divulgou comunicado mentiroso informando que a morte se dera após troca de tiros, já quando o ferido era levado ao hospital. As imagens mostram outra realidade, a da execução bárbara, sumária, incompatí-vel com os discursos libertários da “Nova Líbia”.

Chefes de nações “democráticas”, antes aliados do regime deposto, festejaram a chacina. O único de opinião sensata, dentre os que ouvi, foi Dilma Rousseff, que, embora falando em momento favorável à democracia líbia, repudiou os festejos pelo assassinato do caudilho africano.

E Muhammad e Ali nisso tudo? Sobreviveram à guerra civil? Rebelaram-se ou permaneceram fiéis ao líder? Pobre povo da Líbia. Pelas demonstrações de vi-olência e desonestidade de propósitos dos substitutos, terá, aquela brava gen-te, um governo novo, mas de velhos costumes.

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PS: mal deixei cair o ponto final, eis que o celular apita anunciando o recebi-mento da seguinte mensagem de meu amigo Rogério Dias: “A Comissão de Direitos Humanos-ONU está investigando e irá punir com rigor os que mataram torturando Muamar Khadafi que já assassinou nada menos que 1 milhão de inocentes líbios – RIDÍCULO!!!”.

Salamalecum!

sábado, 8 de outubro de 2011

Sertão e mar

Uns atravessam a vida e jamais sentem a força do Sol sertanejo abrindo a moleira para fortificar as ideias. Outros passam no mundo e se despedem sem purificar a alma na vazante da maré que, tanto sagrada, tanto profana, arrasta todos os pecados para as profundezas.

Quem nasce em Mossoró, onde o sertão vez em quando se arrepia com o cheiro atlântico que o vento tange das entranhas de Tibau, Grossos e Areia Branca, escolhe livremente, a qualquer instante, se mergulha no destino das ondas ou se embrenha nas veredas da caatinga.

As tradições do sertão e do litoral, opostas nos dicionários da língua portuguesa, avizinham-se nos ensinamentos do meu avô materno, homem da cidade com jeito de país cujo rio, no espaço de um aboio, rompe mangues, beira pirâmides de sal e penetra o mar da Barra.

Ora o patriarca estava na Fazenda Mororó, na lida com o gado quase sempre magro, no desafio quixotesco de extrair água razoável do subsolo salobro, à base de moinhos, e na ilusão de produzir frutos de sementes que a chuva, sem o menor tesão, recusava-se a fecundar.

Em janeiro, exilava-se entre o morro e o oceano, vizinho à Pedra da Sereia e ao Bar de Zé Chorão. A antiga casa de taipa com paredes caiadas, janelas e portas amarelas, ladeada por sulcos de vertentes, era, à noite, à luz de candeeiros, o melhor observatório de estrelas.

Na fazenda, os heróis do mato reuniam-se no alpendre do vaqueiro Cesário para reviver as pegas, as vaquejadas. Contavam de mal-assombros, o fogo do boitatá na mata escura, a vingança do caipora contra aquele que se atreveu na caçada sem lhe ofertar fumo e cachaça.

Em Tibau, a “Morros Vermelhos” do navegador holandês Gideon Morris de Jorge, que por lá esteve no século XVII, paraíso terapêutico do poeta Henrique Castriciano, pescadores recém-chegados da lida das marés paravam a fim de vender peixe e narrar suas aventuras.

Dos homens do campo, inesquecível a saga de Chico Mouco, sobrevivente de três raios, um deles responsável pelas mortes do pai, do jumento e do cachorro da família. Havia juazeiros habitados por fantasmas, as burrinhas de padre, as almas penadas que revelavam botijas.

Entre os lobos do mar, Ananias desvendou o segredo do batalhão de soldados que viajava no coração das ventanias da madrugada. Tidó encontrou-se com o tinhoso num heróico mergulho em alto-mar. Pirá, que era mecânico, garantia existirem elefantes na Praia do Ceará.

O leite morno amanhecia o curral ao bater o fundo das canecas, o café de Dona Terezinha, feito no forno a lenha e coado no pano. No almoço, paçoca de pilão, bode assado, maxixe, arroz de leite. A janta, no último claro da tarde, e a família em torno da tigela de coalhada.

“Olha o grude! Olha a tapioca!” Assim anunciava-se o dia no sopé do Morro das Sete Cores. Por volta das 13 horas, peixada de cioba e pirão ou cavala frita. Feijão e arroz branco no acompanhamento de ambos. Aqui e acolá, taioba, siri. Vencida a tarde, o leite, o pão, a sopa.

Nos dois casos, as mesas enormes de madeira, o avô na posição patriarcal, à cabeceira, de frente para a imagem de Santa Luzia. Morreu cego, mas nunca perdeu a fé. A avó, ao seu lado esquerdo da fazenda e direito na praia, sempre insistia para todo mundo comer mais.

Meninos virgens pastoravam o amor dos bichos com instinto animal. A pressa dos galináceos. O cio das vacas, o faro dos touros, mugidos, montas, orgasmos. As potrancas, como em versos de Olegário Mariano, sacudindo as crinas para o corcel que lhes erguia as patas.

Tais moços buscavam em vertentes afastadas, a nudez das praieiras, amores de Othoniel Menezes; e aguardavam, ansiosos, as tardes de domingo para testemunhar as evoluções de casais que se refugiavam nas alas secretas da formação erodida denominada Labirinto.

Montava-se em burro bravo, cavalgadas, fabricavam-se baladeiras com ganchos de pereiro e ligas de pneu, bois de osso, cabra-cega, bonecos de sabugo de milho... Empinava-se pipa, guerreava-se com torrões, pescaria, jacaré, enchiam-se garrafas de areias coloridas.

Há no espírito dessas memórias, a ampulheta com todas as areias da região, dando o norte de que, acertadas as profecias do beato Antônio Conselheiro, sertão e mar, virados um no outro, permanecerão no mesmíssimo território, na harmonia de séculos. Ao menos aqui.

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Crônica prublicada na revista Preá.

sábado, 1 de outubro de 2011

Arrumando o embornal

Estou arrumando o embornal para uns dias nos states. Cueca, meia, rapadura, garrafa com areias coloridas de Tibau, bomba de asma abastecida com oxigênio do Sítio Mororó, fotos das crianças e outros petrechos essenciais para quem deseja ganhar o mundo sem morrer de saudade.

Pretendo rever amigos em Wenatchee, cidade encravada no Estado de Washington, lamentando a ausência de um deles cujo coração, de muito ocupado em distribuir amor e generosidade, esqueceu-se das próprias funções orgânicas, parando de bater terça-feira, 10 de maio de 2011.

Mencionei-o em crônica que escrevi de lá, Karl Ohler, o “pai americano” de Samara e, por consequência, meu sogro postiço. A Expressão aspada carece de explicação: quando jovens participam de intercâmbios em países estrangeiros, eles se incorporam às famílias que os hospedam.

Minha companheira, que morou lá aos 17 anos, sempre o tratou com tal deferência. E eu também, desde a primeira vez que trocamos palavras por telefone, num drible ao inglês banguela que mastigo cabralinamente, como quem masca fonemas indo-europeus no idioma pedra de sertanejo.

Karen Ohler, a “mãe americana”, permanece entre nós. Quando a vi no inverno de 2006, ao descer do trem Amtrak que nos levou, a mim e a Samara, de Seatle até lá, lembrei-me de minha mãe. O porte físico, o olhar acolhedor, a assistência impecável para que nos sentíssemos em casa.

Curiosamente, Karl não era estadunidense por nascimento. Seu berço, aos 8 de fevereiro de 1952, foi Belícia, Croácia, de onde se mudou para Wenatchee com apenas sete anos. Brindamos com uma aguardente croata, de mais de 70 graus, com saudação apropriada. Algo como “Givili”!

O jornal da cidade de aproximadamente 40 mil habitantes, com tiragem de 40 mil exemplares, noticiou o falecimento: “Karl tinha aparência austera, mas todos que o conheciam podiam ver através dela. Ele era um homem honrado, excelente marido e pai, e uma pessoa maravilhosa”.

E prossegue informando sobre suas paixões, entre as quais as partidas de golfe e os pássaros. “Sua família incluía uma variedade de cinco papagaios”. No meio do texto, uma expressão que resume o caráter do ser humano: “Karl era amado por sua família e amigos”. Assino em baixo.

Bom, se um ônibus espacial de seis toneladas não atropelar o avião, voltarei logo para as bandas de cá, a rotina dos bares, dos pesares. Das alegrias, também, da família, do encontro com os leitores deste Canto de Página que às vezes fede, às vezes cheira, mas não ofende ninguém.