sábado, 8 de outubro de 2011

Sertão e mar

Uns atravessam a vida e jamais sentem a força do Sol sertanejo abrindo a moleira para fortificar as ideias. Outros passam no mundo e se despedem sem purificar a alma na vazante da maré que, tanto sagrada, tanto profana, arrasta todos os pecados para as profundezas.

Quem nasce em Mossoró, onde o sertão vez em quando se arrepia com o cheiro atlântico que o vento tange das entranhas de Tibau, Grossos e Areia Branca, escolhe livremente, a qualquer instante, se mergulha no destino das ondas ou se embrenha nas veredas da caatinga.

As tradições do sertão e do litoral, opostas nos dicionários da língua portuguesa, avizinham-se nos ensinamentos do meu avô materno, homem da cidade com jeito de país cujo rio, no espaço de um aboio, rompe mangues, beira pirâmides de sal e penetra o mar da Barra.

Ora o patriarca estava na Fazenda Mororó, na lida com o gado quase sempre magro, no desafio quixotesco de extrair água razoável do subsolo salobro, à base de moinhos, e na ilusão de produzir frutos de sementes que a chuva, sem o menor tesão, recusava-se a fecundar.

Em janeiro, exilava-se entre o morro e o oceano, vizinho à Pedra da Sereia e ao Bar de Zé Chorão. A antiga casa de taipa com paredes caiadas, janelas e portas amarelas, ladeada por sulcos de vertentes, era, à noite, à luz de candeeiros, o melhor observatório de estrelas.

Na fazenda, os heróis do mato reuniam-se no alpendre do vaqueiro Cesário para reviver as pegas, as vaquejadas. Contavam de mal-assombros, o fogo do boitatá na mata escura, a vingança do caipora contra aquele que se atreveu na caçada sem lhe ofertar fumo e cachaça.

Em Tibau, a “Morros Vermelhos” do navegador holandês Gideon Morris de Jorge, que por lá esteve no século XVII, paraíso terapêutico do poeta Henrique Castriciano, pescadores recém-chegados da lida das marés paravam a fim de vender peixe e narrar suas aventuras.

Dos homens do campo, inesquecível a saga de Chico Mouco, sobrevivente de três raios, um deles responsável pelas mortes do pai, do jumento e do cachorro da família. Havia juazeiros habitados por fantasmas, as burrinhas de padre, as almas penadas que revelavam botijas.

Entre os lobos do mar, Ananias desvendou o segredo do batalhão de soldados que viajava no coração das ventanias da madrugada. Tidó encontrou-se com o tinhoso num heróico mergulho em alto-mar. Pirá, que era mecânico, garantia existirem elefantes na Praia do Ceará.

O leite morno amanhecia o curral ao bater o fundo das canecas, o café de Dona Terezinha, feito no forno a lenha e coado no pano. No almoço, paçoca de pilão, bode assado, maxixe, arroz de leite. A janta, no último claro da tarde, e a família em torno da tigela de coalhada.

“Olha o grude! Olha a tapioca!” Assim anunciava-se o dia no sopé do Morro das Sete Cores. Por volta das 13 horas, peixada de cioba e pirão ou cavala frita. Feijão e arroz branco no acompanhamento de ambos. Aqui e acolá, taioba, siri. Vencida a tarde, o leite, o pão, a sopa.

Nos dois casos, as mesas enormes de madeira, o avô na posição patriarcal, à cabeceira, de frente para a imagem de Santa Luzia. Morreu cego, mas nunca perdeu a fé. A avó, ao seu lado esquerdo da fazenda e direito na praia, sempre insistia para todo mundo comer mais.

Meninos virgens pastoravam o amor dos bichos com instinto animal. A pressa dos galináceos. O cio das vacas, o faro dos touros, mugidos, montas, orgasmos. As potrancas, como em versos de Olegário Mariano, sacudindo as crinas para o corcel que lhes erguia as patas.

Tais moços buscavam em vertentes afastadas, a nudez das praieiras, amores de Othoniel Menezes; e aguardavam, ansiosos, as tardes de domingo para testemunhar as evoluções de casais que se refugiavam nas alas secretas da formação erodida denominada Labirinto.

Montava-se em burro bravo, cavalgadas, fabricavam-se baladeiras com ganchos de pereiro e ligas de pneu, bois de osso, cabra-cega, bonecos de sabugo de milho... Empinava-se pipa, guerreava-se com torrões, pescaria, jacaré, enchiam-se garrafas de areias coloridas.

Há no espírito dessas memórias, a ampulheta com todas as areias da região, dando o norte de que, acertadas as profecias do beato Antônio Conselheiro, sertão e mar, virados um no outro, permanecerão no mesmíssimo território, na harmonia de séculos. Ao menos aqui.

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Crônica prublicada na revista Preá.

Um comentário:

Rosemilton Silva disse...

Cid,
não sei se o amigo ainda anda nas bandas dos isteiti, mas que continua com inspiração divina, isso é verdade. Esta crônica merece ser impressa e colocada em moldura bem em frente a porta da sala, pra toda vez que a gente entrar em casa admirá-la. E isso vale para matuto que nem eu e também pro povo da beira da praia. Tou com saudade de um papo com você e seu pai. Qualquer dia, selo o jumento e aporto no ancoradouro d´O Mossoroense/
Abraços.