sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Peido de Todos os Cus

Nem sei por onde começar. Terminar, muito menos. É quase sempre desse jeito.

Às vezes surge de repente, pronto e acabado. Na maioria, contudo, revela-se pouco a pouco, depois de horas, horas... e mais tantas horas em que vou pensando, pensando... e mais pensando na mesmíssima coisa, obsessivamente, até que ela se fragmente.

Não diria em pontos, como nas retículas aplicadas – antes da informática – nas fotografias a serem impressas nos jornais e nas revistas de papel, mas em lascas, em pedacinhos disformes com elementos imperceptíveis a olho nu, sem as lentes aguçadas dos sentidos.

A depender da luz e do ângulo, aliás, e a partir de estilhaços de matéria qualquer, é possível ouvir o som das cores, sentir a textura dos alumbramentos, descrever a anatomia dos cheiros, conhecer o sabor dos substantivos e enxergar o mundo a partir de evidências ordinárias do vazio.

O que me interessa, por assim dizer, não é a revelação de universos, é a extraordinária simplicidade do detalhe, morada dos deuses e dos diabos.

Não é também a metáfora da árvore frondosa, completa, com o aconchego da sombra e a delícia dos frutos. O que me inspira é a farpa debaixo da unha, é o desconforto daquela dorzinha tesuda de se sentir que estimula o sujeito a cutucar o minúsculo ferimento a fim de extrair dele o corpo estranho. E para que doa!


Imagem gerada pelo ChatGPT
Imagem gerada pelo ChatGPT

Esse corpo estranho, incômodo, ambíguo, é o objeto da minha relação íntima com a palavra. Então, que outros se encarreguem de explicar, de construir narrativas orgânicas, bem-procedidas, com introdução, desenvolvimento e conclusão, porque eu, por mania ou de preguiça, ignoro paralelismos, desprezo purismos e, sem nenhum pudor, trepo com fonemas roucos, sílabas esmigalhadas e expressões simplórias, troços encontrados na linguagem das ruas que não servem à ao redator erudito.

Além de bizarrices tais, arrisco-me em traços que nunca deveriam ser postos no papel, fazendo-o a partir de um tempo e de um lugar aos quais me transporto, sem aviso prévio de mim mesmo e sem óculos especiais, pelo simples fato de que a nitidez me aborrece.

Gosto de imaginar um quê de beleza nas curvas desajeitadas de entrelinhas opacas, de me confundir com o leito do rio de águas barrentas do vernáculo, de me perceber na imperfeição das criaturas, dos atos, dos ditos, dos escritos, dos silenciamentos, acrescentando-lhes, por acidente ou a propósito, pigmentos estéticos que me interpretem.

E dessa maneira irresponsável, um tanto quanto torta, um tanto quanto livre, leve e solta, rebelada contra os falares suntuosos e as escritas magnânimas do Grande Intelectual – o Peido de Todos os Cus –, é que me dou ao luxo de desafiar a paciência do leitor com banalidades, brincando de dizer tudo divagando sobre nada.


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