sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Bem-vindo a Matrix!

 

A arte imita a vida ou a vida imita arte? Dúvida antiga, sem resposta definitiva, talvez pelo fato de as duas perspectivas estarem corretas. Desconfio que a arte imita a vida porque, em maior ou menor proporção, é da realidade que o artista alimenta a obra; e que a vida imita arte porque a obra influencia dinâmicas pessoais e sociais.

Ocorre que a arte também imita a arte. A Netflix, por exemplo, acaba de lançar a série Cem Anos de Solidão, inspirada no romance homônimo de Gabriel Garcia Márquez. Há algumas semanas, assisti ao filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, inspirado no livro em que Marcelo Rubens Paiva conta o drama vivido por sua família na Ditadura Militar de 1964, que prendeu e matou o pai dele, ex-deputado Rubens Paiva.

Lembrei-me também de obras, como diria o professor Pasquale Cipro Neto, que parecem escritas amanhã, a começar por 1984, de George Orwell. Nessa distopia, de 1948, o autor britânico disseca e descreve relações de poder que se repetem – e se reinventam – ao longo da história, antecipando o debate sobre vigilância em massa e manipulação da realidade, chamada por muitos de pós-verdade.


 

Falando em pós-verdade, quem poderia esquecer Matrix? Lançado em 1999 pela Warner Bros, sob direção dos irmãos Wachowski – agora irmãs Wachowski –, o filme constrói dois cenários: o da realidade física, sobre a qual apenas revolucionários têm conhecimento; e o da realidade virtual, em que humanos são fontes energéticas “cultivadas” por máquinas computacionais, vivendo na ilusão dos algoritmos.

Há muito vivemos 1984, ultravigiados e megamonitorados por satélites, câmeras, torres, celulares, relógios, anéis, óculos. Para desvendar alguém, nos íntimos e ínfimos detalhes, não precisa consultar Walter Mercado nem Mãe Diná, a cartomante de Machado de Assis ou o Oráculo de Delfos, basta apropriar-se do smartphone dessa pessoa, por míseros minutos. As big techs, a propósito, conhecem-nos bem mais que nós mesmos pensamos nos conhecer. 

Agora, as redes sociais digitais e a inteligência artificial nos arrastam para o centro de Matrix, onde nos conservam anestesiados, catatônicos. Simultaneamente, criaturas cibernéticas nos alimentam de dopamina enquanto sugam o nosso foco e nos convertem em algarismos binários. Digitalizados, podemos ser o que quisermos – bonitos, inteligentes, talentosos, bem-sucedidos, felizes –, graças a filtros, editores e mecanismos de arquitetura de aprendizado profundo, da linha do ChatGPT.

Nessa onda, desavisados e deslumbrados acabam se transformando em arremedos grosseiros do “eu” que gostariam de ser, que jamais seriam no mundo físico. Ouço até falar de gente que virou avatar e não consegue se desvirar em gente. É Matrix, o caminho irreversível da desumanidade. Por isso, cuidado até com o que lê agora, pois já não sei se quem escreve para você sou eu ou alguém inventado de mim.

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