domingo, 8 de dezembro de 2024

E eu, uma pedra!


Pedra é poesia... poesia é pedra... pedra, matéria de poesia... pedra... poema... poesia à flor da pedra.... A pedra deita e rola na imaginação dos poetas. Tal percepção me chega em meio à leitura da monografia do meu amigo e colega de curso de Letras, Marcos Fernandes, muito bem orientada pelo professor Gustavo Tanus.

O trabalho de Marcos, A pedra que vive e grita: considerações literárias sobre a poesia de Ana Martins Marques em “risque esta palavra”, analisa, como se percebe, poemas de um dos livros dessa poeta – ou poetisa, como queira – de Belo Horizonte/MG, vencedora do Prêmio Jabuti de 2016 e finalista de 2024.

Os versos inaugurais do livro da autora mineira não têm exatamente um título, têm um vocativo. Começa com “Meu amigo,” e prossegue:


quase já não escrevo

passo o dia sentada em algum lugar

olhando florescer qualquer coisa que esteja

posta diante dos olhos


com isso já vi morrer uma pedra

e um cachorro enforcar-se

numa nesga de sol


[...]


Incrível, a segunda estrofe, composta por duas metáforas sensacionais enfileiradas em dois versos bem curtinhos. Quem já viu “morrer uma pedra” ou “um cachorro enforcar-se/ numa nesga de sol”? Nunca vi, e digo isso não com desconfiança das imagens. É inveja, mesmo, de quem consegue alcançar tamanho alumbramento.

Interessante a percepção da poesia, o que a torna mágica, especial para cada um, a seu modo. Marcos interpretou, na pedra, o “mundo sólido, externo, através das palavras”. Na minha leitura, a pedra é a poeta, talvez diante do espelho, e até o poema que se anima e desfalece, como lá na frente ela própria declara: “um poema não é mais/ do que uma pedra que grita”. 

Em verdade, tudo é matéria de poesia e ganha o sentido que valha à hora e ao lugar do leitor. Basta ter olhos de enxergar linguagens. Por isso, não importa o que me vem à mente, até porque a minha cabeça é cheia de vadiagens. Além disso, você certamente terá outra impressão ao ler Ana Marques, diferente de mim e de Marcos, e recomendo que o faça urgentemente. Eu o farei.



Enquanto não me chega às mãos o livro, acode-me a pedra que deita e rola na poesia. Drummond botou uma pedra no meio do caminho, diante das “retinas tão fatigadas” de todos nós. Em João Cabral, a pedra é palavra, “A educação pela pedra”, o idioma em que se expressa o sertanejo. No cancioneiro de Jobim, está nas Águas de Março. Eu mesmo, cronista menor, poeta de meia pataca, já tratei do romance entre a pedra e o mar.

Espere! Acaba de me ocorrer uma memória prosaica que, embora fuja ao sentido deste conjunto mal-amanhado de palavras, conto para não desperdiçar a lembrança. Coisa da infância. É que essa conversa toda sobre pedra me remete, reflexamente, ao episódio de Charlie Brown em que ele e outras crianças, incluindo a Garotinha Ruiva, amor platônico do personagem, saem para pedir doces no Halloween. Ao final, todos conferem as sacolas e, alegres, dizem o que receberam – bombons, chocolates... –, até chegar a vez de Charlie Brown, que responde desconsolado: “... E eu, uma pedra!”. 

De agora em diante, eu, que já ganhei tantas pedras e pedradas, vindo a receber mais uma ou outra, prometo me vingar matando-a em um poema.


2 comentários:

Anônimo disse...

Direto amigo, se eu souber com antecedência que irei encontrar você, como sei que não encontrarei uma armadura, irei fazendo uso de um bom capacete! Sei lá que iPhone dá um poeta armado de pedra!

Anônimo disse...

Fique tranquilo! A única vítima será a pedra. E no poema. Rsrs