Caminhava, apesar da preguiça e do enfado. Caminhava assim mesmo, em busca não se sabia de quê. O médico mandou. Parava de vez em quando, não pelo desânimo, mas para analisar sombras. É que fazia sol na perpendicular, deformando corpos opacos ao projetá-los no mosaico desgastado da praça.
As pessoas que arrodeavam o obelisco eram longilíneas, tinham pernas finas e cabeças enormes. Isso, todavia, se observadas no sentido Oeste/Leste. De Leste para Oeste, encolhiam, engordavam, e até se espezinhavam na execução de um ritual masoquista de autoflagelo corporal. De passo a passo.
Árvores se aventuravam na paisagem, incluindo quatro carnaubeiras que mal se faziam perceber na sepultura da luz, a não ser pelo arrepio das copas arredondadas; e se dispersavam nos canteiros a chafurdar no barro onde a relva desgrenhada e rala, de algum jeito, também fabricava as próprias résteas.
Prédios derramados pelo asfalto tremiam no vácuo de carros, motos, bicicletas, carroças, transeuntes. Sem saber, cada um deles, até o cachorro que mijava no vulto desnutrido do poste, contribuía para o espetáculo das formas, em que as coisas não são as coisas, são outras coisas. São o que se imaginar.
O casarão da esquina se retraía aos poucos, ensimesmando-se meio de banda. Ia se engolindo. Logo, o bêbado sem-teto adormecido nos alicerces da mansão secular, no usufruto da silhueta disforme em que portas, janelas e traços arquitetônicos coloniais se dissolviam, perderia a posse do singularíssimo bem.
De tanto contemplar sombras como quem observa nuvens quando mudam de forma sem perder a essência, entendeu: a imagem exata das coisas não passa de deformação produzida no inconsciente para enganar os sentidos de quem só enxerga a vida da maneira que deseja, pelo ângulo que mais lhe convém.
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A imagem que ilustra esta crônica foi produzida pelo Copilot.
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