sábado, 11 de outubro de 2025

O coro dos contentes

 

O senador Rogério Marinho exigiu o afastamento de Eduardo Bueno do Conselho Editorial do Senado, porque o historiador, nas próprias redes sociais, ironizou a morte do extremista americano Charlie Kirk. Jamais, entretanto, condenou Jair Bolsonaro por zombar do sofrimento das vítimas da pandemia e do luto de milhares de famílias.

O presidente Lula repudiou a perseguição do MPF ao jornalista Glenn Greenwald, que desmascarou a nefasta operação Lava-Jato. Em 2004, contudo, mandou suspender o visto de Larry Rohter, correspondente do The New York Times, por haver escrito reportagem citando suposto abuso de bebidas alcoólicas por parte dele.

Logo após acusar o governo brasileiro de censura contra as big techs, pela pretensão de regulamentá-las, e de seus porta-vozes ameaçarem intervir no Brasil para assegurar a livre manifestação do pensamento, o babaca do Trump – a propósito, meu visto está vencido – ameaçou cassar licenças de TVs “adversárias”.

Bolsonaro, registra-se, fez o mesmo na presidência, ao dizer que não renovaria a concessão da Globo, em retaliação a reportagens “desfavoráveis”. Ele também atacou a imprensa profissional e adversários com o auxílio do Gabinete do Ódio. Agora, reclama de censura, silenciado por Alexandre de Moraes como Lula o foi por Luiz Fux.

Falando nessa relação de afeto, a extrema direita pirou quando o supremo ministro determinou o bloqueio do X – de Xandão? –, por desrespeito sistemático a ordens judiciais, mediante deliberação expressa do dono da rede, Elon Musk. Nem um “Stop, please!”, diante do banimento do TikTok dos EUA por violação a normas nacionais. 

Com todos os defeitos do seu governo, José Sarney atravessou o mandato de presidente sem histórico de perseguição à mídia, mas, cedendo a “sentimentos religiosos”, proibiu o filme Je Vous Salue, MarieEu Vos Saúdo, Maria –, alegando proteger valores da cristandade, embora vivamos em um País laico.


Ilustração criada pelo Gemini

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem sido essencial na proteção da democracia, inclusive ao fixar que a Constituição não protege manifestações de ódio, de ataque à honra e que representem crime. Peca, todavia, ao censurar reportagens e críticas aos seus próprios ministros.

Por último, embora como reflexo do primeiro exemplo, a escritora Paula Taitelbaum, esposa de Eduardo Bueno, foi excluída da 40ª Feira do Livro de Canoas/RS, por causa do comentário do marido sobre Charlie Kirk. Imagina! Um evento criado para celebrar a diversidade sucumbindo aos caprichos do mandatário de plantão. Que vergonha!

Quem teve paciência para chegar aqui deve estar se perguntando o que eu quero dizer com tudo isso? Na verdade, já disse pelos exemplos, bem como em 2014, na crônica “Espiral do Silêncio”, a partir do episódio em que o linguista Noam Chomsky defendeu a publicação de um livro, mesmo discordando das ideais nele escritas.

Atacado pelo posicionamento, Chomsky respondeu: “[...] a liberdade de expressão (incluindo a liberdade acadêmica) não deve ser restrita a visões que alguém aprova, e que é precisamente no caso de visões que são quase universalmente desprezadas e condenadas é que esse direito deve ser mais vigorosamente defendido”.

Ou seja, liberdade de expressão é semente rara que só germina, dá flores e gera frutos no terreno instável de ideais em conflito. É fácil advogar por ditos e escritos alinhados ao nosso ponto de vista. Difícil é respeitar quando um anjo torto, daqueles de Torquato Neto, chega para “desafinar o coro dos contentes”.

sábado, 4 de outubro de 2025

A CIGARREIRA DA CARIOCA

Por volta das 11h, de segunda a sábado, trabalhadores da região lotam o canteiro do cruzamento das ruas Afonso Pena e Governador Juvenal Lamartine para almoçar no restaurante de Angélica, mais conhecido como Cigarreira da Carioca. Dia após dia, ela e sua fiel escudeira Avete atendem dezenas – talvez centenas – de pessoas.

Comida sem frescura, saborosa, farta, barata. O prato, como diria o livreiro Abimael Silva, custa “somente 15 contos”. Hoje, o cardápio é arroz, feijão, macarrão, farofa, salada e carne – boi ou frango. Não tem o pudim que Angélica garante ser o melhor do mundo, por questões logísticas passageiras. O jeito é quebrar o galho com rapadura.


Imagem capturada do Google Maps

O povo faz fila. Quem não chegar cedo, dança, a exemplo do que me ocorre de vez em quando pelo costume de almoçar tarde. Reservaria por WhatsApp se a proprietária lesse a mensagem antes de a comida se acabar. “Tem dias” – se Chico usa, posso usar – que raspo as terrinas de arroz e feijão, e peço um ovo frito de complemento.

A propósito, para quem não sabe, cigarreira nada tem a ver com cigarros no RN. Nas bandas de cá, à revelia dos dicionários, a expressão designa pequenos pontos comerciais construídos em metal e instalados em canteiros e calçadas. Na própria Afonso Pena há várias delas, com oferta de produtos e serviços diversos.

A dona do empreendimento que inspira esta crônica, conforme o apelido antecipa, nasceu no Rio de Janeiro. Quando a conheci, levado pelo poeta George Veras, a Carioca comentou sobre a mudança para Natal. Não me lembro do motivo exato. Recordo apenas tê-la ouvido comparar a violência em ambos os lugares.

A capital fluminense, disse-me, tem índices bem maiores de criminalidade. Lá, seria perigoso agir como estávamos agindo, eu e George, almoçando em via pública com os celulares sobre a mesa, embora ela própria tenha sido furtada por cá. Levaram-lhe o par de sandálias na praia. Este ano, ao menos um roubo foi registrado nas imediações.

O importante é que a gente se delicia com a comida e com as conversas. Ouve-se de um tudo: cálculo estrutural, rede de internet, vendas, pendengas jurídicas, corações partidos, política, literatura, religião, futebol. Escuto em silêncio, a fim de capturar vestígios do cotidiano, matérias-primas da crônica.

Agora mesmo, entre uma garfada e outra, observo dois jovens debatendo o custeio de festas pelo município. Um deles, afobado, declara ter ido à última delas. Bebeu, comeu, embriagou-se, divertiu-se... “Enquanto – arremata o narrador – falta escola, saúde, educação...”. E haja pau no prefeito e nos frequentadores “alienados”.

O interlocutor exige coerência: “Você estava lá, meu amigo!”. O cara retruca: “Estava, sim, foi pago com o nosso dinheiro. E não me considero alienado, não, porque consigo identificar a manipulação da política de pão e circo”. Em acréscimo, explica que essa estratégia é antiga e evoca o Império Romano.

O rapaz do lado oposto da mesa insiste em tom sarcástico: “Perda de tempo protestar contra uma festa, especialmente se você vai a ela”. O boêmio consciente solta a última em forma de questionamento – “Perda de tempo lutar por seus direitos?” – e se levanta com raiva por haver tropeçado nas próprias contradições.

Como se vê, a Cigarreira da Carioca é também um ambiente de livre manifestação do pensamento. Pena eu não poder me demorar além dos já consumidos 10 minutos, em razão do trabalho. Vou perder inclusive o desfecho da peleja entre o sujeito de barbas brancas e o inimigo imaginário dele. Pense numa briga! Arrisca sair bofete.

Adoro garimpar histórias, histórias de gente, histórias que não frequentam noticiários nem interessam ao ego inflado dos grandessíssimos intelectuais da província. Contudo, o dever me fustiga. Por míseros segundos de devaneio, penso na aposentadoria, que nunca chegará. Então, volto bruscamente à realidade e chamo por Avete.

– A conta, por favor.

– Crédito ou débito?

– Crédito.

– Pode aproximar.

Pausa dramática. Sempre rola aquela tensão básica enquanto o pagamento é aprovado pela operadora de cartão de crédito.

– Passou?

– Passou, obrigada.

– Até amanhã!

– Até! Caso se lembre, guarde o meu almoço.


sábado, 20 de setembro de 2025

Esquerda e direita


Desde o advento do bolsonarismo, o brasileiro quebra a cabeça com as concepções de “esquerda” e “direita”, sem descuidar do “centro” com as suas oscilações pendulares, “pra lá... para cá... pra lá, pra cá, pra lá”, como na musiquinha infantil. A Folha de S.Paulo até criou um teste on-line prometendo ajudar a resolver crises ideológicas de identidade. Usei a ferramenta, mas fiquei encafifado com a resposta. Segundo o jornal, eu seria de “centro-esquerda”: esquerda na pauta de costumes e liberal em temas econômicos.

Faz algumas semanas – embora obstinado a comprar apenas livros digitais, para fazer jus ao investimento no Kindle –, adquiri, em papel, Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, de Noberto Bobbio. Finalizada a leitura, apaziguei-me. A inquietação tem razão de ser, e eu, que nem entendo do assunto, estava certo: não existem dois lados definidos, delimitados em bolhas homogêneas. São várias as direitas e esquerdas, todas flutuantes no tempo e no espaço.

Extrema esquerda, esquerda moderada, centro-esquerda, liberais socialistas, progressistas, anarquistas, comunistas, socialistas, esquerda autoritária. Extrema direita, direita moderada, centro-direita, conservadorismo, teocracia, fascismo, liberalismo, nazismo, direita democrata. Do mesmo modo, as bandeiras partidárias, muito além da simples alteração do nome – Arena, PDS, PFL, Democratas, União Brasil – tremulam ao sabor dos ventos definidores de suas pautas no tabuleiro do jogo do poder.

Quando pesquisei sobre o perfil dos proprietários do O Mossoroense, na primeira fase do periódico – 1871 a 1876 –, observei que eles eram filiados ao Partido Liberal, considerado vanguardista em oposição ao Partido Conservador. O PL assumia o papel da esquerda no século XIX, ao defender a abolição da escravatura, as eleições diretas, as liberdades religiosa, intelectual, política e individual. Agora, do lado de baixo do Equador, a mesma agremiação é associada ao extremo conservadorismo.

Lembrei-me agora do meu flerte com o comunismo. Foi por volta dos 11 anos de idade, quando o Brasil ainda vivia a ditadura iniciada com o golpe de 1964. O general João Batista Figueiredo presidia a Nação. Havia dois partidos principais, PDS e PMDB, que, em Mossoró, todavia, desdobravam-se em quatro. De um lado, o PDS 1 de Tarcísio Maia e o PDS 2 de meu avô Vingt Rosado. Do outro, o PMDB que detestava os Rosados e o PMDB que, em agradecimento a eles pelo “Voto Camarão”, defendia o “Voto Cinturão”.

Devo explicar essa história de “Camarão” e “Cinturão” antes de retornar ao comunismo? Sim? Pois vamos lá! No pleito de 1982, o voto era vinculado, ou seja, o eleitor só podia sufragar candidatos do mesmo partido, dispostos assim na chapa eleitoral: governador, senador, prefeito, deputado federal, deputado estadual e vereador. Tentando a reeleição a deputado federal, Vingt queria, mas não podia pedir voto para os candidatos a governador e senador do PMDB, pois a mistura anularia a cédula.


Ilustração gerada pelo Gemini.

A saída foi pedir o voto em branco para governador e senador. Como tais cargos estavam na cabeça da lista, surgiu o apelido “Voto Camarão”. Para constar, geralmente, arranca-se e não se come a cabeça desse saboroso crustáceo. Figueiredo, inclusive, foi a Mossoró para dizer que comeria camarão com cabeça e tudo. Não dobrou Vingt. Em contrapartida, os peemedebistas agradecidos pediam o “Voto Cinturão”, o sufrágio em branco para prefeito, cargo situado na cintura da cédula eleitoral.

De volta ao comunismo. Justamente naquela época, contei ao meu pai, Laíre Rosado, que decidira ser comunista, influenciado sabe-se lá por quem. Com a tranquilidade que lhe é peculiar, ele se dirigiu à prateleira – estávamos na biblioteca –, arrastou um livro da estante e me entregou dizendo: “Leia, aprenda o que é comunismo para ser um comunista consciente”. Não vou fingir costume. Entendi bulhufas! E, pior: nem me lembro do título. Só sei que era fininho e tinha na capa uma foto de Karl Marx.

Descobri, depois, que papai tinha a mania de difundir “obras subversivas”. Chegou a responder a um Inquérito Policial Militar (IPM) no 16º Batalhão de Infantaria Motorizado de Natal (16 RI), sob a acusação quase verdadeira de disseminar literatura de países da Cortina de Ferro no RN. Digo “quase” porque a intimação do Exército para esclarecer os fatos antecedeu – e frustrou – a chegada de livros que ele pedira, por carta, a embaixadas de vários países, sem observar se os governos eram de esquerda ou de direita.

Luiz Alves Neto, ex-preso político cuja companheira, Anatália Melo Alves, foi “suicidada” no DOPS do Pernambuco, contou-me que o seu ingresso no comunismo se deu, entre outros fatores, pela leitura de livros que Laíre lhe doou. As obras proibidas já não existem. Dona Iracema, uma das irmãs de Lulu, disse-me, em determinada ocasião, que enterrou tudo no quintal de casa ao receber a notícia de que o irmão militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) havia sido capturado.

Não aderi ao comunismo, apesar do apreço pelas leituras marxistas, incluindo o próprio Marx, Foucault e Bakhtin. Aliás, nunca desejei filiação partidária, ainda menos agora, diante da volatilidade do pensamento ideológico ocidental. Desde quando Bolsonaro reacendeu o orgulho da extrema direita, no Brasil, sufocando as outras direitas, lançaram-se luzes sobre a fragmentariedade do campo político. Assim, dizer-se esquerda ou direita soa ingênuo na liquidez da modernidade. Qual esquerda? Qual direita?

Se eu tivesse que me autodeclarar, dir-me-ia de esquerda moderada, aquela que admite a economia de mercado, sem, contudo, descuidar dos direitos dos trabalhadores e dos consumidores; que promove o bem-estar social por meio de políticas afirmativas, da defesa do meio ambiente, do provimento das necessidades básicas do ser humano; que faz justiça fiscal, a partir de políticas tributárias equitativas; que diverge dentro das leis e disputa o poder pelas vias democráticas.

A Folha quase acerta. Perdeu o gol por não perceber que, entre as barras laterais da trave existem fatores aquém e além do goleiro. Bem assim, nas páginas da história, não há somente a mancha de impressão entre as margens do papel. Há textos, subtextos, imagens. Gritos! Silêncios... Discursos, interdiscursos. Há subjetividades em trânsito por linhas e entrelinhas capazes de se refletir e se refratar, de convergir e de se opor, de morrer e de renascer – do nada como a onda autoritária que aterroriza o mundo democrático.


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 Da série, faça você mesmo, seguem testes que prometem revelar o seu perfil ideológico:


1) https://www1.folha.uol.com.br/poder/teste-esquerda-direita-centro/

2) https://especiais.gazetadopovo.com.br/quiz-politico-ideologico/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=dinamico&gad_source=1&gad_campaignid=20802200119&gbraid=0AAAAADlVTPeofzII6LYkj2-0wYz5Ono99&gclid=CjwKCAjwobnGBhBNEiwAu2mpFCOHdC3JIZRqir4tes-A2iKXlS-RxWYdE2j4roCIUyiSbciPCr_KXRoCQ6kQAvD_BwE

3) https://infograficos.oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024-esquerda-centro-ou-direita-descubra-seu-perfil-ideologico.html

sábado, 6 de setembro de 2025

RACISMO REGIONAL

Há coisas que a gente lê, confere a veracidade, mas não quer acreditar no que está lendo, tamanha a imbecilidade, para dizer o mínimo. Se você não soube, procure a história do vereador Mateus Batista (União Brasil), integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), que defendeu, na Câmara Municipal de Joinville/SC, a elaboração de um projeto de lei com o objetivo de proibir a migração de nortistas e nordestinos para a “Cidade das Flores”.

Segundo esse racistazinho de meia pataca, Santa Catarina será favelizada se não barrar pessoas do Norte/Nordeste. Mas espere! Racistazinho? Tal conduta é mesmo racista? Semanticamente, afirmo que sim, e comprovo com o dicionário. Racismo, diz o Houaiss, é também o preconceito contra “indivíduos pertencentes a grupos [...] considerados inferiores”, é “discriminação social”, é gesto de hostilidade contra categorias de seres humanos.

E criminalmente, como defende a corajosa vereadora Thabatta Pimenta (PSOL), de Natal/RN? Por infelicidade, não. Conforme o art. 1º da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Crime Racial), são racistas os autores de “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Acrescentam-se a homofobia e a transfobia ao rol como delitos equiparados, por obra do Supremo Tribunal Federal (STF).

O discurso do vereador, embora indecoroso, ridículo, babaca, não é alcançado pela legislação antirracismo porque não se enquadra nos conceitos de raça, um marcador social que enfoca características biológicas; de cor, uma criação também social que hierarquiza as pessoas pela tonalidade da pele; ou de etnia, divisão de grupos por afinidades culturais, envolvendo língua, semelhanças genéticas, estrutura comunitária, política e territorial.

 

Ilustração produzida por inteligência artificial (Gemini)

Além disso, não se deve confundir procedência nacional com procedência regional. A discriminação por razões de procedência nacional é o comportamento hostil contra quem vem do exterior. Assim, quando um brasileiro – que contraditoriamente integra o “União Brasil” e o “Brasil Livre” – externa ódio por conterrâneos de outros Estados, age com índole racista no cartório da língua portuguesa, mas não perante a legislação penal.

Também não é injúria racial, crime previsto no art. 2-A da Lei nº 7.716/1989 e que consiste em ofender “a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. A questão é simples: a injúria atinge a honra subjetiva, ou seja, o sentimento que o sujeito tem de si, diferentemente da honra objetiva, juízo que o outro faz dele. Então, para ser injúria racial, a conduta do político sulista precisaria ter alguma vítima específica.

A notícia boa é a de que tramitam na Câmara dos Deputados, apensados um ao outro, e prontos para votação em plenário, dois projetos de lei (2564/2021 e 5944/2016) relativos ao assunto. Se forem aprovados, a discriminação regional passará a ser mais uma modalidade de racismo. Aí, quem resolver imitar o edil ou se ele próprio voltar a destilar preconceito, será enquadrado como racista tanto no aspecto linguístico quanto na seara jurisdicional.

Por enquanto, nada pode ser feito? Pode! Deve! E não será a primeira vez. O Ministério Público Federal (MPF) já impetrou ações civis públicas requerendo a condenação de pessoas da laia de Mateus Batista ao pagamento de danos morais coletivos. Agiu assim, por exemplo, com Ângela Machado, diretora de Responsabilidade Social do Flamengo; e contra um piloto de avião, ambos por discursos discriminatórios contra a gente do Nordeste.

Como, entretanto, o direito não é uma ciência exata, existem opiniões divergentes em todas as questões, inclusive acerca do que acabei de escrever, interpretando a lei com objetividade e garantismo. Há integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário que ampliam o significado do termo “procedência nacional”, a fim de alcançar manifestações discriminatórias de natureza regional. Trago até exemplos de condenações penais.

O vereador Sandro Fantinel (PL), de Caxias do Sul/RS, atacou os baianos e foi condenado, em 1ª instância, a três anos de cadeia, à perda do cargo e ao pagamento de R$ 50 mil. Isso, por “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de [...] procedência nacional” (art. 20 da Lei nº 7.716/1989). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por sua vez, absolveu o réu por entender impossível harmonizar fato e norma.

Em sentido oposto, um pedido de produção de provas negado pela Justiça Federal do RN e pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), por não verem crime na conduta narrada pelo MPF, acabou autorizado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O objetivo: identificar o autor das frases “E aí tudo graças aos flagelados nordestinos que vivem de bolsa esmola” e “Ebola, olha com carinho para o Nordeste”, vistas em perfil do Facebook.

Admito que a decisão do STJ não é absurda, se observada à luz do art. 20-C da Lei nº 7.716/1989. Está dito ali que o juiz deve valorar como discriminatórios, gestos contra indivíduo ou minorias que gerem “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Viu? “Procedência”, sem especificação de origem.

Parodiando Ulysses Guimarães, tenho ódio ao racismo. Ódio e nojo! Ao mesmo tempo, reitero a visão garantista de quem ama a democracia e defende o processo penal democrático, no qual os direitos fundamentais do indivíduo são respeitados. Romper tal barreira, por melhor que se mostre a intenção, traz graves riscos para a sociedade. No direito, o fim não pode justificar o meio. Fora da legalidade estrita, o meio se confunde com o crime.


sábado, 9 de agosto de 2025

Interrogatório do poeta Augusto Floriano

 

- Nome?

- Augusto Floriano.

- Profissão?

- Dizem-me poeta.

- Tem filhos em idade escolar?

- Sim.

- Renda mensal?

- Inconstante e insuficiente. Sou um “liso estável”, como diria o jornalista Carlos Santos.

- O senhor tem o direito de permanecer em silêncio, sem que o silêncio seja usado em seu desfavor, mas o interrogatório é também momento de especial oportunidade para o acusado se defender, além de a confissão representar diminuição da pena que eventualmente vier a ser imposta. Compreende isso?

- Sim, compreendo. E desejo falar. Ou confessar, se minhas palavras assim parecerem.

- O senhor ouviu atentamente a acusação?

- Com certeza! Dicção perfeita, a de Vossa Excelência, com pausas dramáticas nas partes mais “incriminadoras”.

- Os fatos narrados são verdadeiros?

- Absolutamente!

- Não entendi. A resposta é ambígua.

- Cristalinos como um bordeaux Château d'Yquem, safra de 1811.

- Por favor, respeito. Não venha com ironia barata.

- Bom, o vinho é caríssimo, mas, de fato, prefiro cachaça.

- Essa confissão é espontânea?

- As minhas palavras são livres, espontâneas e gratuitas, sem os favores dos 30 dinheiros com os quais se vêm convencendo delatores das mais elevadas classes, patentes e estrelas. Até porque um poeta, por menos talento e inspiração que tenha, jamais seria dedo-duro. Aliás, senhor magistrado, o que tenho a dizer diz tudo de mim, nada de ninguém.

- Então, indo direto ao assunto...

- Sim, é verdade, eu faço amor por fazer, e não me importo, de jeito maneira alguma, se essa impostura ofende a honra da música sertaneja ou se os românticos vão me excluir de suas redes sociais. Quanto aos puritanos, prefiro exercitar o direito constitucional ao silêncio.

- O réu está se esquivando... ou fala tudo ou se cala...


Ilustração produzida pelo Gemini


- Seria preferível não falar dessa gente. Entretanto, já que insiste em me negar o silêncio seletivo, afirmo que os puritanos são criaturas desprezíveis, a escória da humanidade. Eles fazem guerra por fazer. Quem faz guerra não faz amor.

- Como assim?

- O puritano é, na essência, um depravado enrustido, que deturpa moralidades para disfarçar perversões e infernizar a vida alheia. Em vez de amor – puro, espontâneo, leve e solto –, ele faz guerra.

- Como assim, guerra?

- Guerra para atormentar ex-mulher, ex-marido, vizinho, desconhecido; guerra para atanazar protestante, budista, católico, umbandista; guerra para irritar esquerda, direita, centro; guerra contra a felicidade alheia; guerra contra tudo o que é democrático, a exemplo do amor. Guerra contra o que lhe parece contra!

- Fazer amor por fazer é subversivo aos olhos de Deus, da Pátria e da Família (escrivão, favor consignar Deus, Pátria e Família com letras iniciais maiúsculas).

 - Não perante Florbela Espanca, que defende “amar só por amar” em vez de odiar só por odiar. A propósito, como diria José Régio, “Eu amo o Longe e a Miragem,/ Amo os abismos, as torrentes, os desertos…”. Nada contra quem ama “o que é fácil”, embora o amor belo, recatado e do lar não seja o espírito de Coríntios 13: 1-13.

- Coríntios 13: 1-13? O senhor zomba das Sagradas Escrituras (escrivão, Sagradas Escrituras com iniciais maiúsculas, por favor).

- De nada adianta falar a língua dos homens e até a língua dos anjos, conhecer mistérios, dominar ciências, distribuir falsa caridade, sem a capacidade de amar perdidamente o próximo e o distante, pois o amor é um dom que, em sua plenitude, supera a fé e a esperança.

- Melhor o senhor se aconselhar com a sua advogada antes de prosseguir nesse raciocínio profano e subversivo...

- Não vou precisar. O senhor mesmo exigiu-me a fala franca como condição de prosseguir com o interrogatório.

- Precisar, verbo transitivo direto ou indireto?

- Interprete como quiser, o juiz aqui é o senhor, embora eu deva dizer, “com a máxima vênia”, da intransitividade que...

- Respeito à Justiça! Chega de blasfêmias e ironias!

- Desculpa! Quis apenas ressair que a justiça deve se preocupar também – e ainda mais – com os que precisam de Justiça, muito acima, parodiando famoso jurisconsulto de minha terra, das abstrações da lei adormecida “na frialdade inorgânica da celulose, o papel”. Essa lei, excelência, jamais será exata porquanto interpretada por homens, que, por último, desde a Suprema Corte, passam a decidir maquinalmente pelo livre convencimento da inteligência artificial. Deram-lhe até nome: Maria!

- Eu decido com base no livre convencimento motivado, conforme a legislação me faculta, e escrevo minhas próprias decisões.

- Tudo bem, “Doutor”! Meu convencimento também é motivado. E meu motivo é a poesia, o verso que atravessa a alma e liberta a carne viva e pulsante de quem ama porque ama. Ou isso seria um livre convencimento imotivado, já que não preciso de motivo algum para fazer amor com quem me deseja e a quem desejo?

- Legalmente...

- Do ponto de vista legal, só posso dizer que sou camonianamente indefeso contra o tal “fogo que arde sem se ver”, contra a tal “dor que desatina sem doer”, contra o tal “querer estar preso por vontade”; embora drummondianamente consciente das “sem-razões do amor” e de seu parentesco de quarto grau com a morte, que o vence e por ele é vencida a todo o tempo.

- A medida do amor desmedido pode ser a dor constante da perda...

- Provavelmente. Contudo, sopesando os prós e os contras, convenço-me de que é melhor sofrer por amor do que se regozijar no ódio. Em outros termos, melhor ser passarinheiro e gostar de passarinhar, na voz de Roberta Sá, com a licença de Dudu Nobre e Roque Ferreira, do que cair nas armadilhas das desafeições.

- Que vergonha, seu Augusto! O senhor, um homem velho...

- Interrompo, respeitosamente, antes de que a Excelência cometa a gafe de antecipar o veredicto, não obstante vossa inquestionável proximidade com certa República de Curitiba. E, se me permite, acrescento, mais uma vez fundamentado em Drommund, que “amar se aprende amando” e que o “amor é grande e cabe/ no breve espaço de beijar”. De cada amor que se encanta o poeta, nasce uma rosa, um verso e, quem sabe, um quadro de Laércio Eugênio ou de Túlio Ratto.

- E os grandes e verdadeiros amores onde ficam?

- Grandes e verdadeiros? E todos não são assim? Olha, senhor juiz, já percorri tantas vezes o inferno e o purgatório para alcançar Beatriz e continuo descendo ao mundo dos mortos para resgatar Eurídice sempre que ela me chama.

- E esse esforço vale a pena?

- Sempre vale a pena. Sempre! Pois a recompensa é o paraíso perdido que se encontra e volta a se perder em si. Nesse exercício, aprendi que todos os amores são grandes, excelência, mesmo os que se consumam “no breve espaço de beijar” ou, transgredindo o bom mineiro, no breve espaço de um orgasmo.

- O senhor tem algo a acrescentar?

- Sim! Sem anistia! Sem anistia para os que atentaram contra o estado democrático de amar, com a arma – anagrama ilícito de amar – mais abjeta dos fascistas: o ódio à soberania dos que amam a liberdade.

- Ministério Público, perguntas?

- Satisfeito, excelência.

- Advogada Clarisse Tavares, perguntas?

- Sem perguntas, excelência. A defesa está posta.

- Partes intimadas em audiência para alegações finais sucessivas, por memoriais. O réu continuará preso cautelarmente, com respaldo na proteção da ordem pública, aguardando pela sentença. Audiência encerrada.

 

quinta-feira, 26 de junho de 2025

O caminho do crime

A linguagem do direito é cheia de expressões em latim, que, francamente, evito usar. São cafonas, a não ser quando necessárias, a exemplo de habeas corpus. Neste caso, seria pior traduzir para o português e dizer “tome o corpo”. Mas o termo da moda, desde a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Jair Bolsonaro e pouco mais de duas dezenas de militares é iter criminis.

Em nosso idioma inculto e belo, na expressão bilaquiana, iter criminis significa “caminho do crime” e designa as etapas percorridas na prática do delito. São elas, cogitação, preparação, execução e, às vezes, exaurimento.

No contexto penal, cogitar significa pensar em cometer o delito. Ninguém pode ser punido por isso, a não ser, talvez, em ditaduras. Raul Seixas bem o revela na letra de Metrô Linha 743, gravada em 1984, ao descrever a cena do homem abordado por três outros, armados, só porque estava escorado em um poste, fumando. Logo no início da abordagem, um dos agentes do Estado declara: “Eu quero é saber o que você estava pensando/ Eu avalio o preço me baseando no nível mental / Que você anda por aí usando”.

A preparação também não recebe penalidade alguma, a não ser quando o ato preparatório é em si um crime definido em lei, a exemplo da associação criminosa (art. 288 do CP), antigamente chamada formação de quadrilha ou bando; e da organização criminosa (Lei n. 12.850/2013). Em ambos os casos, basta a reunião de agentes com o intuito de fazer algo, sem necessariamente chegar às vias de fato.

Já a execução é sempre punível, a não ser que acobertada por alguma excludente, como a famosa legítima defesa. Ao iniciar os atos executórios, o autor pode responder nas formas consumada, quando consegue realizar completamente o intento; ou tentada, se o crime não se consuma por motivo alheio à vontade dele. Em termos práticos, se, iniciada a prática do homicídio, a vítima é morta, tem-se a consumação, mas se o homicida é impedido, ocorre a tentativa.

Existem hipóteses, todavia, nas quais a tentativa é em si a consumação. São os casos de atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública (art. 265 do CP), afastamento de licitante (art. 337-K do CP), evasão mediante violência contra pessoa (art. 352 do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).

O exaurimento, para constar, corresponde a efeitos produzidos após a consumação, que podem ou não ser punidos ou influenciar na quantidade de pena. Por exemplo, matar alguém com um tiro na cabeça e descarregar o resto na munição da arma no cadáver. Se o primeiro disparo causou a morte, os demais são mero exaurimento da conduta delituosa.


Marcello Casal - Agência Brasil

A propósito, o exaurimento foi um dos pontos do julgamento de Elize Natsunaga, no tocante a qualificadora de meio cruel, que poderá ser tema de outra coisa assim, tanto artigo, quase crônica. A questão era: se Elize começou a esquartejar o marido Marcos Kitano Matsunaga quando ele ainda estava vivo, sua pena ganharia um plus. Se o corpo sem vida de Marcos foi esquartejado, poder-se-ia interpretar como exaurimento no tocante ao assassinato e início da execução de outro delito, a ocultação de cadáver (art. 211 do CP).

Voltando ao assunto de hoje, como se viu, abolição do estado Democrático de Direito e golpe de Estado, dois dos crimes imputados ao agrupamento bolsonarista, consumam-se na tentativa, porque assim o CP estabelece. Então, se corretas as afirmações da PGR, de que esse grupo pôs em prática, de 7 de setembro de 2021 a 8 de janeiro de 2023, um plano macabro para reimplantar uma ditadura no Brasil, todos podem ser condenados.

Os outros crimes atribuídos são organização criminosa armada, que se consuma nos atos preparatórios, e dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, que exigem, estes sim, o ingresso nos atos executórios.

Atenção! Não estou dizendo que os réus são culpados. A palavra quanto a isso cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), após o devido processo, com oportunidade para a ampla defesa e o contraditório por parte dos denunciados, garantias que, diga-se de passagem, só existem nas democracias.

Neste momento, afirmo apenas que a denúncia da PGR atribui condutas graves aos denunciados que correspondem a crimes consumados, inclusive os dos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. Se há provas para condenação, e parece haver em quantidade, aí são outros quinhentos. Aguardemos o desfecho.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O QUADRO


Para Túlio Ratto


Um suspiro de luz atrás do monte

Explode de amarelo no vermelho

Que se derrama ao longo do horizonte

Tendo a terra encarnada como espelho.


O oceano, aquarela indecifrável

Onde o artista mergulha os seus pincéis

E o vento indecoroso, insaciável,

Transa cores com ondas infiéis.


Os coqueiros se dizem cataventos

E os cataventos juram ser coqueiros

Confundindo poetas desatentos.


Há quem diga – talvez seja loucura –

Sentir na brisa o tom de cada cheiro

Da paisagem que pulsa na pintura.




sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Tolstói e a literatura potiguar


Minha personalidade é um tanto complexa. Mais do que a da maioria dos seres ditos normais, menos do que a de alguns camaradas. De acordo com Cid Filho, se o sujeito é meu amigo, com certeza é diferenciado, pervertendo o ditado segundo o qual os opostos se atraem. “Papai só tem amigo doido. Igual a ele!”, explica. Do quanto sei de mim, assumo alguns traços que reforçam esse pensamento, como a aversão instantânea a todo e qualquer modismo ou imposição.

Uma das manifestações desse transtorno, algo associado a “ser do contra”, conforme Clarisse Tavares, é não ler best-sellers por iniciativa própria – às vezes somos obrigados –. Se dizem que certo livro é “leitura obrigatória”, olhar a capa já me dá calafrios. Não leio e até desvio o olhar da capa, nas livrarias, pelo menos enquanto todo mundo louva a publicação querendo transparecer intelectualidade, muitos baseados apenas em resumos encontrados na Internet.

Em razão disso, passei anos dedicado a publicações do Rio Grande do Norte, em especial poetas e prosadores não incluídos entre os cânones pelos donos da cultura potiguar. Não vou declinar nomes temendo transformar esta crônica em uma lista incompleta. Seriam muitos! Somente da Coleção Mossoroense, uma multidão. Vingt-un Rosado, seu fundador e editor, conversando comigo nos anos 1990, calculou haver lançado mais de 400 escritores até aquela década.

Quando a barreira do asco se quebra – sempre por acidente, nunca para surfar na onda – a experiência pode ser boa. Semana passada, ao me deitar depois do almoço, na casa de meus pais, onde me hospedo em Mossoró, vi, através do vidro da prateleira, o volume II dos Contos Completos, de Liev Tolstói. Dos Russos, havia até então lido Mikhail Bakhtin, além de alguma coisa de Dostoiévski, justamente para compreender melhor algumas conclusões daquele sobre este.



A primeira impressão, espanto, por verificar que Tolstói escreve de forma incrivelmente simples, sem afetações estilísticas, e aborda temas comuns da sociedade em que vivia, pelo menos na tradução de Rubens Figueiredo. Intrigado, baixei o volume I da obra, no Kindle, para começar do começo e investigar por qual motivo algo com passagens até singelas está entre os clássicos das letras mundiais, tendo em vista o caráter elitista e excludente da crítica.

Em tempo, eu conhecia textos esparsos dele, vistos em coletâneas. No Livro das Virtudes, William J. Bennett apresenta De Quanta Terra um Homem Precisa?; Onde Está Deus, Está o Amor; Meninas Mais Sábias do que Homens; Iliás; Três Perguntas e O que Rege os Homens, para ilustrar valores como honestidade, disciplina, compaixão, amizade e trabalho. Sabia ainda de uma versão de A Roupa Nova do Rei, com variações no tocante ao conto homônimo de Hans Christian Andersen.

Muito me agradou, ampliando o horizonte da leitura, a descoberta de que Tolstói optou pelo conto, por ser essa a forma ideal para dizer a cultura das ruas, para exprimir a oralidade de povos sem acesso à escrita. Revisitando a história, vê-se que o gênero foi escolhido – não por acaso – como mecanismo de resistência à elite Russa, que, no século XIX, tentava sufocar expressões regionais de minorias e de grupos minorizados, impondo a cultura europeia como superior.

Nós brasileiros sofremos a mesma ditadura intelectualóide, de 1500 à contemporaneidade, com o sufocamento e o apagamento sistemático de usos, práticas, hábitos, costumes, das comunidades originárias. O mesmo fenômeno atinge a população negra, que supera 50% da demografia nacional, somados os que se declaram pretos e os que se apresentam como pardos, bem como os artistas das periferias do País, dos Estados e das cidades.

Esse processo de subalternização, a propósito, faz parte das tecnologias do racismo e funciona como estratégia de controle social. Embora não exista, no mundo, instrumento ou técnica capaz de determinar a superioridade da palavra escrita sobre a oralidade, do erudito sobre o popular, de uma etnia sobre outra, da região “x” sobre o lugar “y”, do doutor sobre o iletrado, há quem se enxergue acima dos demais pela origem e pela “boa formação”.

Nada contra os gringos. Sou fã de vários deles. Agora mesmo, conforme anunciado, estou encantando por um Russo, ainda por cima tentando me adaptar ao “papel digital”. Devemos, sim, ler clássicos de “Oropa, França e Bahia”, mas sem complexo de vira-lata. No Brasil, de ponta a ponta, existe literatura de qualidade; e, no Estado de Fabião das Queimadas e de Nildo da Pedra Branca, há vida inteligente além da Reta Tabajara, das faculdades e das academias.

Tais certezas se fortalecem no encontro fortuito com Tolstói, graças ao livro que papai deixou na prateleira antes de sair para trabalhar. Contos Completos prova que o universal nasce de fragmentos do cotidiano e que o grande escritor é aquele capaz de traduzir a alma da sua gente e do seu lugar, com sim-pli-ci-da-de, levando-me à constatação – sem comparativos – de que acertei ao me dedicar a autores que me contam sobre mim escrevendo sobre nós. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Netinho

Terminei a última crônica referindo-me brevemente a Pedro Neto, o Netinho, dono do Peter’s Bar, no Centro de Tibau, onde “encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga”. Menos de uma linha, como se percebe, mas o bastante para chamar a atenção de leitores atentos – e curiosos – que não param de me cobrar maiores informações sobre o dito cujo.

Pensando bem, é injusto – e até egoísta – mantê-lo escondido como detalhe de um texto qualquer. Por ser um cara sensacional e pelo tempo que ele, a mulher e os filhos suportam a mim e a outras figuras exóticas que se abancam no seu território para comer, beber e jogar conversa fora durante horas e horas, sem se preocupar com inconveniências etílicas, Netinho merece crônica exclusiva.

Somos amigos há tantos anos que nem me lembro como começou. De nossas conversas, envolvendo interlocutores do naipe de Cadu, o homem da supermemória, e de Caga na Lata, o poliglota, muitas histórias acabaram nas páginas do O Mossoroense. Falando nisso, também não faltam jornalistas no Peter’s, a exemplo de Ciro Ney e Sérgio Oliveira, sem dizer do fotógrafo das estrelas, Ricardo Lopes.

Certa feita, por ironia do destino, esbarraram por lá, o artista plástico, poeta, piloto de parapente e atleta de giroscópio, Laércio Eugênio, e sua musa, empresária e botadora de juízo, Arlete Cavalcante. Estavam cansados depois da longa caminhada de mais de duas horas, de Areias Alvas à Pedra do Ceará e da Pedra do Ceará ao Centro de Tibau, pela subida de doutor Rosado Cantídio. 

Quando entraram na Rua do Tubarão, alguns metros depois da igreja, deram de cara com Netinho, que abriu logo o sorriso e, com a simpatia de sempre, puxou as cadeiras a fim de que se sentassem. Laércio e Arlete não o conheciam e, para completar, tinham deixado o dinheiro na casa de João Batista, o psiquiatra de Jesus, que os hospedava. Mesmo assim, Laércio perguntou se podia beber uma cerveja. Fiado.

Uma cerveja que nada! Netinho escancarou as portas do bar, reativou a cozinha. Foi cerveja, água, pizza, refrigerante, do final da tarde até aproximadamente a meia-noite. Como não havia mais táxis, pela proximidade da madrugada, o dono do bar ainda viabilizou – e avalizou – dois mototáxis para levar o casal até Areia Alvas, longe feito a bexiga taboca, onde os psiquiatras se refugiam.

Ao se despedirem, impressionados, Laércio e Arlete, cada qual no seu mototáxi, agradeceram pela confiança naqueles “dois estranhos”, e a resposta veio na bucha: – Desconhecidos, não! Você é Laércio Eugênio, artista plástico, amigo de Cid Augusto. E amigo de Cid é meu amigo. Enfim, a viagem deu certo. Os mototaxistas foram e voltaram da corrida pagos e com o pagamento da pendura. 



Netinho é o cara! Gentil, simpático, solidário, amigo dos amigos e dos amigos dos amigos. Não sai do sério por nada neste mundo, nem por cem e uma cocada. Parece o Buda nos jardins de Jetavana. O mundo desaba e ele, impávido, sentado na calçada oposta à do Peter’s, em uma cadeira dobrável virada para trás, para que o encosto sirva de escora para os seus braços longos. 

Às vezes, nem chego ao bar, sento-me diretamente na calçada, do outro lado da rua, e a conversa flui sem roteiros, sobre tudo, sobre nada. Ou quase tudo. Ou quase nada. De repente, ele puxa religião, filosofia, literatura, o que der na telha. Só não tratamos de política, a não ser as trivialidades da temática. Pedro é um sujeito culto, virtude que se amplia em sua enorme humildade.

Quem passa pela rua do Brisa, de carro, moto, bicicleta, a pé, acena, grita, cumprimenta com alegria. A resposta é sempre um sorriso sereno e um gesto simpático com as mãos espalmadas para o alto. Conhece as pessoas pelo nome, qualidade que invejo. E eu ali de lado, morrendo de alegria de ser amigo dessa figura. Netinho é, sem dúvida, o melhor de Tibau, o dono da crônica.

Ao fim e ao cabo – chique, não é?... “ao fim e ao cabo”... aprendi com Dorian Jorge Freire –, um apelo do fundo do coração: pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas, não se aproveite destas informações privilegiadas para fazer vale em meu nome no Peter’s Bar. Minha triste condição de “liso estável”, como diria Carlos Santos, não me permite bancar nada além do meu uísque barato.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Aqui em Tibau

Todos os anos, do final de dezembro a fevereiro ou março, a depender do Carnaval e do calendário escolar, estávamos aqui, em Tibau, onde Rio Grande do Norte e Ceará se misturam como se fossem o mesmo estado de espírito e de coisas. Para ser sincero, não gostava, vinha à força. Nada específico contra o lugarejo abençoado pela natureza que vi se transformar em cidade, embora lavar as lentes dos óculos de 30 em 30 minutos, por causa da maresia, sucedesse como fator relevante. O problema, a bem da verdade, é que, além da preferência por sertão, as noites longas e escuras do litoral me provocavam medo.

Contribuía para o assombro do menino frouxo, o cenário da casa dos avós, imóvel rústico de taipa rebocada com cal, que não mais existe, a não ser na memória, em fragmentos remendados pela imaginação. De qualquer maneira, vejo agora, em flashs, o alpendre voltado para o Atlântico, as portas e janelas amarelas, a sala em “T”, o banheiro, os quartos, o pátio espremido entre a saída dos fundos e o paredão úmido enlodado pelas águas das vertentes que jorravam sem parar. Sucumbiu em 1985, devastada pelas areias coloridas que desabaram em razão das chuvas torrenciais daquele ano.

Como se percebe, ficávamos entre o morro e o mar, o que já dava sensação de isolamento, e isso nas imediações da Pedra da Sereia, formação argilosa dotada de uma gruta esculpida pela maré e pela maré destruída ao longo do tempo. Reza a lenda que nela coabitavam duas criaturas míticas: uma jovem lindíssima que, em noites de lua cheia, seduzia homens e os arrastava até lá; e uma fera acorrentada que devorava os tais incautos. Nunca tive o privilégio de esbarrar com a moça nem o desprazer de encarar o monstro. Aliás, os dois eram um só nos meus pesadelos seriados, dignos de produção da Netflix.



À noite, o som revolto das ondas, o balé contemporâneo das dunas, a sombra vacilante dos coqueiros, a penumbra contemplativa e os assobios fantasmagóricos do vento nutriam-me os pavores, sem dizer do repertório de lendas contadas por Ananias e Tidó, pescadores de outras eras. Acrescento às histórias deles, as narrativas de Mazinha, funcionária de minha avó, excêntrica a ponto de convidar a mim, um menino com menos de 10 anos, para ser padrinho do filho dela. É da autoria da comadre, com a melhor intenção de nos aquietar, a fábula da sapa gigante que morava no quintal e se alimentava de crianças traquinas. 

Medroso, mas curioso, não me furtava, junto a outros meninos e meninas, de frequentar sessões mediúnicas clandestinas promovidas por uma senhora que trabalhava em um lar próximo. Sentávamos em círculo, no chão frio de cimento queimado, enquanto ela abria os trabalhos rezando o Salve Rainha. As almas chegavam e, cordialmente, respondiam às perguntas formuladas, movendo um copo de vidro posto no solo com a boca para baixo. Certa feita, agora em nosso alpendre, esteve uma vidente que revelou a presença iluminada de Cid Augusto, tio materno falecido na infância, que me empresta o nome.

Não poderia faltar neste repertório, o “grito” da Fazenda Trevas, propriedade rural situada na região do cemitério e do campo de pouso, à época pertencente a Iogo Rosado, primo de saudosa memória a quem eu chamava de tio, por força do afeto. Pai de Ioguinho, amigo que não vejo há tempos, embora o tenha sempre à vista pelos olhos do bem-querer, Iogão costumava levar-nos até a propriedade para caçadas e para testemunhar, auditivamente, o “grito” sinistro que rasgava as madrugadas silenciosas. Especula-se que o fenômeno era humano, produzido pelo destemido vaqueiro Sansão.

Nestes 50 e poucos anos, Tibau mudou, perdeu morros, vertentes, personagens. A julgar pela ausência das jangadas e dos pescadores, o mar não está mais para peixe. Talvez seja o preço da urbanização, do progresso. Eu também mudei. Hoje só tenho medo de gente viva e percebo que os pesadelos da infância eram de certo modo confortáveis diante das ameaças reais da vida adulta. Volto pouco aqui, especialmente na alta estação, época barulhenta, de trânsito caótico, de pessoas nervosas, na qual só encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga, no Peter’s Bar, do meu bom e velho camarada Netinho.


sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Peido de Todos os Cus

Nem sei por onde começar. Terminar, muito menos. É quase sempre desse jeito.

Às vezes surge de repente, pronto e acabado. Na maioria, contudo, revela-se pouco a pouco, depois de horas, horas... e mais tantas horas em que vou pensando, pensando... e mais pensando na mesmíssima coisa, obsessivamente, até que ela se fragmente.

Não diria em pontos, como nas retículas aplicadas – antes da informática – nas fotografias a serem impressas nos jornais e nas revistas de papel, mas em lascas, em pedacinhos disformes com elementos imperceptíveis a olho nu, sem as lentes aguçadas dos sentidos.

A depender da luz e do ângulo, aliás, e a partir de estilhaços de matéria qualquer, é possível ouvir o som das cores, sentir a textura dos alumbramentos, descrever a anatomia dos cheiros, conhecer o sabor dos substantivos e enxergar o mundo a partir de evidências ordinárias do vazio.

O que me interessa, por assim dizer, não é a revelação de universos, é a extraordinária simplicidade do detalhe, morada dos deuses e dos diabos.

Não é também a metáfora da árvore frondosa, completa, com o aconchego da sombra e a delícia dos frutos. O que me inspira é a farpa debaixo da unha, é o desconforto daquela dorzinha tesuda de se sentir que estimula o sujeito a cutucar o minúsculo ferimento a fim de extrair dele o corpo estranho. E para que doa!


Imagem gerada pelo ChatGPT
Imagem gerada pelo ChatGPT

Esse corpo estranho, incômodo, ambíguo, é o objeto da minha relação íntima com a palavra. Então, que outros se encarreguem de explicar, de construir narrativas orgânicas, bem-procedidas, com introdução, desenvolvimento e conclusão, porque eu, por mania ou de preguiça, ignoro paralelismos, desprezo purismos e, sem nenhum pudor, trepo com fonemas roucos, sílabas esmigalhadas e expressões simplórias, troços encontrados na linguagem das ruas que não servem à ao redator erudito.

Além de bizarrices tais, arrisco-me em traços que nunca deveriam ser postos no papel, fazendo-o a partir de um tempo e de um lugar aos quais me transporto, sem aviso prévio de mim mesmo e sem óculos especiais, pelo simples fato de que a nitidez me aborrece.

Gosto de imaginar um quê de beleza nas curvas desajeitadas de entrelinhas opacas, de me confundir com o leito do rio de águas barrentas do vernáculo, de me perceber na imperfeição das criaturas, dos atos, dos ditos, dos escritos, dos silenciamentos, acrescentando-lhes, por acidente ou a propósito, pigmentos estéticos que me interpretem.

E dessa maneira irresponsável, um tanto quanto torta, um tanto quanto livre, leve e solta, rebelada contra os falares suntuosos e as escritas magnânimas do Grande Intelectual – o Peido de Todos os Cus –, é que me dou ao luxo de desafiar a paciência do leitor com banalidades, brincando de dizer tudo divagando sobre nada.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Bem-vindo a Matrix!

 

A arte imita a vida ou a vida imita arte? Dúvida antiga, sem resposta definitiva, talvez pelo fato de as duas perspectivas estarem corretas. Desconfio que a arte imita a vida porque, em maior ou menor proporção, é da realidade que o artista alimenta a obra; e que a vida imita arte porque a obra influencia dinâmicas pessoais e sociais.

Ocorre que a arte também imita a arte. A Netflix, por exemplo, acaba de lançar a série Cem Anos de Solidão, inspirada no romance homônimo de Gabriel Garcia Márquez. Há algumas semanas, assisti ao filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, inspirado no livro em que Marcelo Rubens Paiva conta o drama vivido por sua família na Ditadura Militar de 1964, que prendeu e matou o pai dele, ex-deputado Rubens Paiva.

Lembrei-me também de obras, como diria o professor Pasquale Cipro Neto, que parecem escritas amanhã, a começar por 1984, de George Orwell. Nessa distopia, de 1948, o autor britânico disseca e descreve relações de poder que se repetem – e se reinventam – ao longo da história, antecipando o debate sobre vigilância em massa e manipulação da realidade, chamada por muitos de pós-verdade.


 

Falando em pós-verdade, quem poderia esquecer Matrix? Lançado em 1999 pela Warner Bros, sob direção dos irmãos Wachowski – agora irmãs Wachowski –, o filme constrói dois cenários: o da realidade física, sobre a qual apenas revolucionários têm conhecimento; e o da realidade virtual, em que humanos são fontes energéticas “cultivadas” por máquinas computacionais, vivendo na ilusão dos algoritmos.

Há muito vivemos 1984, ultravigiados e megamonitorados por satélites, câmeras, torres, celulares, relógios, anéis, óculos. Para desvendar alguém, nos íntimos e ínfimos detalhes, não precisa consultar Walter Mercado nem Mãe Diná, a cartomante de Machado de Assis ou o Oráculo de Delfos, basta apropriar-se do smartphone dessa pessoa, por míseros minutos. As big techs, a propósito, conhecem-nos bem mais que nós mesmos pensamos nos conhecer. 

Agora, as redes sociais digitais e a inteligência artificial nos arrastam para o centro de Matrix, onde nos conservam anestesiados, catatônicos. Simultaneamente, criaturas cibernéticas nos alimentam de dopamina enquanto sugam o nosso foco e nos convertem em algarismos binários. Digitalizados, podemos ser o que quisermos – bonitos, inteligentes, talentosos, bem-sucedidos, felizes –, graças a filtros, editores e mecanismos de arquitetura de aprendizado profundo, da linha do ChatGPT.

Nessa onda, desavisados e deslumbrados acabam se transformando em arremedos grosseiros do “eu” que gostariam de ser, que jamais seriam no mundo físico. Ouço até falar de gente que virou avatar e não consegue se desvirar em gente. É Matrix, o caminho irreversível da desumanidade. Por isso, cuidado até com o que lê agora, pois já não sei se quem escreve para você sou eu ou alguém inventado de mim.

domingo, 8 de dezembro de 2024

E eu, uma pedra!


Pedra é poesia... poesia é pedra... pedra, matéria de poesia... pedra... poema... poesia à flor da pedra.... A pedra deita e rola na imaginação dos poetas. Tal percepção me chega em meio à leitura da monografia do meu amigo e colega de curso de Letras, Marcos Fernandes, muito bem orientada pelo professor Gustavo Tanus.

O trabalho de Marcos, A pedra que vive e grita: considerações literárias sobre a poesia de Ana Martins Marques em “risque esta palavra”, analisa, como se percebe, poemas de um dos livros dessa poeta – ou poetisa, como queira – de Belo Horizonte/MG, vencedora do Prêmio Jabuti de 2016 e finalista de 2024.

Os versos inaugurais do livro da autora mineira não têm exatamente um título, têm um vocativo. Começa com “Meu amigo,” e prossegue:


quase já não escrevo

passo o dia sentada em algum lugar

olhando florescer qualquer coisa que esteja

posta diante dos olhos


com isso já vi morrer uma pedra

e um cachorro enforcar-se

numa nesga de sol


[...]


Incrível, a segunda estrofe, composta por duas metáforas sensacionais enfileiradas em dois versos bem curtinhos. Quem já viu “morrer uma pedra” ou “um cachorro enforcar-se/ numa nesga de sol”? Nunca vi, e digo isso não com desconfiança das imagens. É inveja, mesmo, de quem consegue alcançar tamanho alumbramento.

Interessante a percepção da poesia, o que a torna mágica, especial para cada um, a seu modo. Marcos interpretou, na pedra, o “mundo sólido, externo, através das palavras”. Na minha leitura, a pedra é a poeta, talvez diante do espelho, e até o poema que se anima e desfalece, como lá na frente ela própria declara: “um poema não é mais/ do que uma pedra que grita”. 

Em verdade, tudo é matéria de poesia e ganha o sentido que valha à hora e ao lugar do leitor. Basta ter olhos de enxergar linguagens. Por isso, não importa o que me vem à mente, até porque a minha cabeça é cheia de vadiagens. Além disso, você certamente terá outra impressão ao ler Ana Marques, diferente de mim e de Marcos, e recomendo que o faça urgentemente. Eu o farei.



Enquanto não me chega às mãos o livro, acode-me a pedra que deita e rola na poesia. Drummond botou uma pedra no meio do caminho, diante das “retinas tão fatigadas” de todos nós. Em João Cabral, a pedra é palavra, “A educação pela pedra”, o idioma em que se expressa o sertanejo. No cancioneiro de Jobim, está nas Águas de Março. Eu mesmo, cronista menor, poeta de meia pataca, já tratei do romance entre a pedra e o mar.

Espere! Acaba de me ocorrer uma memória prosaica que, embora fuja ao sentido deste conjunto mal-amanhado de palavras, conto para não desperdiçar a lembrança. Coisa da infância. É que essa conversa toda sobre pedra me remete, reflexamente, ao episódio de Charlie Brown em que ele e outras crianças, incluindo a Garotinha Ruiva, amor platônico do personagem, saem para pedir doces no Halloween. Ao final, todos conferem as sacolas e, alegres, dizem o que receberam – bombons, chocolates... –, até chegar a vez de Charlie Brown, que responde desconsolado: “... E eu, uma pedra!”. 

De agora em diante, eu, que já ganhei tantas pedras e pedradas, vindo a receber mais uma ou outra, prometo me vingar matando-a em um poema.


domingo, 1 de dezembro de 2024

O “puta pauzão” do francês


As ditaduras são tão estúpidas quanto as pessoas que, desavisadas, quero crer, suplicam por ditaduras. Não me refiro apenas aos fanáticos da extrema direita, porque a tirania tem vários rótulos e rostos. Portanto, não perca seu precioso tempo me questionando sobre Cuba, Venezuela, China, Coreia do Norte. Sou contra toda e qualquer forma de governo despótico, independentemente do rótulo.

Mas o meu objetivo hoje não é desenvolver raciocínio amplo sobre a temática. Quero apenas contar uma história sobre a censura, esse instrumento comum aos regimes ditatoriais empregado no controle da expressão do pensamento, das artes, das comunicações, a partir de pressupostos morais e ideológicos convenientes aos dominadores no processo de dominação.

A depender da alienação do censor, os critérios podem ser personalíssimos, a exemplo do parâmetro adotado pelo sujeito que vetou a exibição do filme Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos. Soube do curioso episódio ocorrido em 1971, ano do meu nascimento, faz apenas alguns dias. E quem me falou sobre ele foi o professor de História e pesquisador Marcílio Lima Falcão.

O assunto me interessou porque venho há meses estudando a poesia fescenina de Assú/RN e, de repente, já na conclusão da pesquisa, deu-me o estalo de investigar possíveis interferências do regime militar brasileiro em tais obras. Fescenino, vale dizer, é gênero poético que remonta à Antiguidade Clássica, caracterizado pelo uso do escárnio, do maldizer, da ironia e da palavra obscena.



O problema do filme não era o uso de palavrões nem a existência de críticas ao sistema, mas a exploração da nudez, considerando que a trama, baseada no diário do alemão Hans Staden, passa-se em uma aldeia tupinambá. Na verdade, não exatamente a nudez, e sim o detalhe que se revelou a partir dela: o artista que fazia o francês teria o pênis bem maior do que os dos intérpretes dos nossos índios.

O caso está registrado no artigo Censura e ditadura no Brasil, do golpe à transição democrática, 1964-1988, de Marcelo Ridenti, professor de sociologia na Unicamp, na Universidade Columbia, Nova York, e na Universidade de Paris 3. A narrativa é creditada por Ridenti ao cineasta Denoy de Oliveira, que, em meio às tratativas para liberar a exibição da película, ouviu o censor dizer, aos berros:

“É um filme que, porra, deixa a gente, brasileiro, numa posição muito inferior. Aparece aquele francês com um puta pauzão e os índios brasileiros todos com uns pintinhos pequenininhos”.

Engraçado é que a fixação pelo tamanho das coisas é pensamento constante dessa gente. Em 2019, um certo capitão – que não é o Rodrigo – ao posar para foto com um rapaz de aspecto asiático, perguntou “tudo pequenininho aí?”, enquanto simulava a medida do pênis do jovem com o polegar e o indicador ligeiramente afastados.  Dias depois, declarou em coletiva que, no Japão, “tudo é miniatura”.

Se tamanho for mesmo documento, os amantes da ditadura envolvidos na tentativa de golpe de Estado ocorrida em 2022 estão lascados. O relatório da Polícia Federal, que detalha inclusive os planos dos assassinatos de Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Morais, tem surpreendentes 884 páginas, dimensão capaz de humilhar o “puta pauzão” do francês e preservar a reputação nacional.


domingo, 18 de agosto de 2024

Os mortos


Parei de escrever sobre os mortos. Já o fiz muitas vezes, quase como dever íntimo, quando partia alguém querido, admirado, importante, mas jurei – de pés juntos, mãos postas e olhos rútilos – nunca mais fazê-lo. Há mortos que nos consomem palavra por palavra, e talvez eu seja uma vítima da consumação do silêncio.

Aconteceu assim quando minha avó Lourdinha morreu. Fiquei horas contemplando a tela do computador, e nada. Parti para a velha fórmula caneta/papel, que igualmente se revelou inútil. Pressenti a tristeza escalar a garganta e engolir o verbo no goto seco. Meu texto nunca seria digno do amor que devotamos um ao outro.

Dona Lourdes era uma dádiva, a pessoa mais linda, o coração mais puro, a alma mais iluminada. Dizer a respeito dela seria trabalho de ourives cravejando diamantes em frases de ouro e prata. Melhor, de jardineiro transformando o deserto de luto e dor em canteiros nos quais a saudade ganha novos sentidos e perfumes.

Não me sinto ao nível de tal responsabilidade. Por isso, desisti. De toda forma, preciso mencionar algo talvez desconfortável de se ler: os mortos estão mortos, despidos da carne e dos traços narcísicos da personalidade humana. Estão finalmente livres da ambição, do ego, da vaidade, e fora do alcance etéreo do discurso.

Como diz Drummond, “Na ambígua intimidade/ que nos concedem/ podemos andar nus/ diante de seus retratos”. Afinal de contas, eles “não reprovam nem sorriem/ como se neles a nudez fosse maior”. Quando eu morrer, poeta, espero que me permitam desfrutar dessa nudez invisível e do silêncio oblíquo das entrelinhas.

 

sábado, 13 de julho de 2024

O Centro

No Centro, toda cidade é igual. Lojas sedutoras, vendedores nervosos, metas intangíveis, um emaranhado de carros motos carroças bicicletas buzinas freios pedestres gritos pregões... A moça atravessa a rua interrompendo o tráfego e a narrativa. Por vontade ou inveja, todos olham. Eu só observo enquanto faço a ponta do lápis... Tanta gente dividida entre o necessário e o sonho de consumo, entre a pinga no espetinho que oferece carnes duvidosas e o suco com bolo de chocolate na lanchonete grã-fina. Alguns pedem, tantos negam; uns comem e bebem, outros dão o goto em seco. Agora, às 11h16, há multidões vazias na calçada da principal. Mais tarde, silêncios engolirão esquinas e becos, nos quais anoitecem utopias cobertas de trapos e papelões. Que loucura! Tudo começa. E acaba. E recomeça. E recomeça e acaba e começa naquele lugar estranho. Enfim, não trago novidade. Quem vive o Centro, onde me desencontro aqui e acolá, sabe como é viver o paradoxo em si.

sexta-feira, 29 de março de 2024

A IMAGEM EXATA DAS COISAS

 

Caminhava, apesar da preguiça e do enfado. Caminhava assim mesmo, em busca não se sabia de quê. O médico mandou. Parava de vez em quando, não pelo desânimo, mas para analisar sombras. É que fazia sol na perpendicular, deformando corpos opacos ao projetá-los no mosaico desgastado da praça.

As pessoas que arrodeavam o obelisco eram longilíneas, tinham pernas finas e cabeças enormes. Isso, todavia, se observadas no sentido Oeste/Leste. De Leste para Oeste, encolhiam, engordavam, e até se espezinhavam na execução de um ritual masoquista de autoflagelo corporal. De passo a passo.



Os bancos, embora de ferro e madeira, recriavam imagens confusas, ora fixas, ora vacilantes, que oscilavam pela força do mormaço que se levantava cerca de dois palmos do chão e dava de açoite nos olhos. E isso apesar de a tarde já nutrir lascívias pela noite que saciaria seus desejos dentro em breve.

Árvores se aventuravam na paisagem, incluindo quatro carnaubeiras que mal se faziam perceber na sepultura da luz, a não ser pelo arrepio das copas arredondadas; e se dispersavam nos canteiros a chafurdar no barro onde a relva desgrenhada e rala, de algum jeito, também fabricava as próprias résteas.

Prédios derramados pelo asfalto tremiam no vácuo de carros, motos, bicicletas, carroças, transeuntes. Sem saber, cada um deles, até o cachorro que mijava no vulto desnutrido do poste, contribuía para o espetáculo das formas, em que as coisas não são as coisas, são outras coisas. São o que se imaginar.

O casarão da esquina se retraía aos poucos, ensimesmando-se meio de banda. Ia se engolindo. Logo, o bêbado sem-teto adormecido nos alicerces da mansão secular, no usufruto da silhueta disforme em que portas, janelas e traços arquitetônicos coloniais se dissolviam, perderia a posse do singularíssimo bem.

De tanto contemplar sombras como quem observa nuvens quando mudam de forma sem perder a essência, entendeu: a imagem exata das coisas não passa de deformação produzida no inconsciente para enganar os sentidos de quem só enxerga a vida da maneira que deseja, pelo ângulo que mais lhe convém.


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A imagem que ilustra esta crônica foi produzida pelo Copilot.



segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Tudo de velho


A última vez que escrevi algo manifestando otimismo em um ano maravilhoso foi às vésperas de 2020, mas apenas porque adoro o número 20. Veio, então, a nefasta pandemia de Covid-19. De lá para cá, não tenho me arriscado em presságios, coisa que entrego aos discípulos de Mãe Dináh e de Walter Mercado.

Estamos em 2024 faz horas, a Mega-Sena da Virada – 21, 24, 33, 41, 48 e 56 – se foi para o bolso de outro apostador e, não tendo acertado número sequer, já não alimento a esperança de enricar. Parodiando o jornalista Carlos Santos, tornar-me um “liso estável” é tudo o que desejo por enquanto e talvez até o fim da vida.

Nem o horóscopo parece contribuir. A previsão para o signo de escorpião, segundo me disse Túlio Ratto, quase no Ano-Novo, é de um período agitado no campo do amor. Agitado! Agitado? Agitado... Agitado: confusão. Nossa Senhora das Bicicletas, protegei-me dos mares revoltos do desamor. Mantenha-me em paz.

Aliás, deve-se desejar feliz Ano-Novo, Ano Novo ou ano novo? As dúvidas, como se vê, perseguem esta mente inculta e inquieta ao longo do tempo. Aprendi, não sei quando nem onde, em algum esforço de cultura inútil, que Ano-Novo é o réveillon, Ano Novo é o dia 1º e ano novo – puta merda – é o período de 12 meses.

Estando errado, que se dane! Se nem os gramáticos de redes sociais se entendem, quem seria eu para entrar nessa suruba linguística. Vou é tomar um café amargo, daqueles bem fortes que dona Raimunda fazia para Padre Sátiro, no Diocesano, porque o uísque de 2023 ainda pode quebrar qualquer bafômetro.

domingo, 31 de dezembro de 2023

João da Escóssia ou João da Escócia?


O poeta e jornalista Émerson Linhares, boêmio da asa quebrada que nem eu, trafegava pela Estrada do Contorno, ladeado por Ana Ximenes, musa única e derradeira dos seus versos, quando uma placa de trânsito lhe chamou a atenção. Nela estava escrito “Av. João da Escócia”, e o “Escócia” assim, com “c” na terceira sílaba.

O velho amigo, colega dos bons tempos da redação do O Mossoroense, de quando o jornal ainda era impresso, fotografou e me enviou a imagem da placa, por WhatsApp. Logo em seguida, escreveu perguntando se aquilo estava certo e, antes mesmo de que eu lesse, acrescentou a sugestão de uma crônica sobre o assunto.



Émerson Linhares sabe a resposta. Afirmo convicto porque, como disse, militamos juntos no O Mossoroense, antecedidos por João da Escóssia, Augusto da Escóssia, Lauro da Escóssia, Lauro da Escóssia Filho, João da Escóssia Neto, João Newton da Escóssia, Maria Lúcia Escóssia e tantos outros. Eu mesmo sou Cid Escóssia.

Falou mais alto nele o instinto de editor, aguçado nas melhores práticas do jornalismo e que as atuais tarefas burocráticas no Detran não abateram. A foto e a mensagem não eram pergunta, eram pauta que recebo e realizo nestes últimos instantes de 2023. Afinal, muita gente desconhece a curiosa história do tal sobrenome.

O primeiro de nós foi João da Escóssia Nogueira, o da avenida cuja denominação alguém resolveu “corrigir” 150 anos depois, trocando por “Escócia”. Em circunstâncias normais, talvez tivesse recebido sobrenomes do pai ou da mãe, Jeremias da Rocha Nogueira e Izabel Benigna da Cunha Viana. Os tempos, contudo, eram de lutas.

O Escóssia com dois “esses” é fácil explicar. Quando João nasceu, aos 27 de maio de 1873, vivia-se o período pseudoetimológico da língua portuguesa, que foi do século XVI ao início do XX, antes do acordo ortográfico de 1931, no qual se estabeleceram padrões para a escrita de algumas palavras com “ss” ou “c” no idioma pátrio.

As mesmas regras que transformaram Escóssia em Escócia – como o nome do país – atingem Mossoró e Assú, que, a rigor, deveriam ser Moçoró e Açu. O citado acordo de 1931, todavia, consentiu a preservação de topônimos e sobrenomes, mantendo-se, conforme registrados em leis ou cartórios, Assú, Mossoró, Escóssia.

E por que João da Escóssia? Vamos lá! Jeremias, o pai, era jornalista, rábula – advogado sem diploma – e membro do Partido Liberal. Meses antes do nascimento do filho, fundou o jornal O Mossoroense, aos 17 de outubro de 1872, para fazer oposição ao Partido Conservador, sigla liderada pelo jesuíta Antônio Joaquim Rodrigues.

O vigário deitava falação no púlpito contra os liberais, enquanto estes, especialmente Jeremias, Ricardo Vieira do Couto e José Damião de Souza Mello, colegas de redação, retribuíam no periódico, que chegou a usar, no seu cabeçalho, uma inscrição em que se declarava “Semanário, político, comercial, noticioso e antijesuítico”.

Para piorar, o jornalista incendiário que anunciava o fim do poder dos papas era da Loja Maçônica 24 de Junho, inaugurada em 1873, na data que nomeia a instituição. Assim, alegando que Igreja e Maçonaria não combinavam, o vigário se recusou a batizar o rebento, a não ser que pai e também padrinho deixassem a Ordem.

Jeremias promoveu então um batismo simbólico na 24 de Junho, acrescendo o Escóssia ao nome do filho, em homenagem a São João da Escóssia, considerado patrono do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria. Tal santo, reverenciado pelos maçons brasileiros durante longo tempo, não existe, mas esse tema fica para depois.

Existem outros “Escóssias” por aí, sem ligação com os de Mossoró, além de “Escócias” e “Escócios”. O João da avenida, jornalista, artista plástico, cenarista de teatro, publicitário, xilógrafo, desenhista e caricaturista falecido aos 14 de dezembro de 1919, é Escóssia, de modo que a placa está mesmo errada. Podem mandar ajeitar.