domingo, 18 de agosto de 2024

Os mortos


Parei de escrever sobre os mortos. Já o fiz muitas vezes, quase como dever íntimo, quando partia alguém querido, admirado, importante, mas jurei – de pés juntos, mãos postas e olhos rútilos – nunca mais fazê-lo. Há mortos que nos consomem palavra por palavra, e talvez eu seja uma vítima da consumação do silêncio.

Aconteceu assim quando minha avó Lourdinha morreu. Fiquei horas contemplando a tela do computador, e nada. Parti para a velha fórmula caneta/papel, que igualmente se revelou inútil. Pressenti a tristeza escalar a garganta e engolir o verbo no goto seco. Meu texto nunca seria digno do amor que devotamos um ao outro.

Dona Lourdes era uma dádiva, a pessoa mais linda, o coração mais puro, a alma mais iluminada. Dizer a respeito dela seria trabalho de ourives cravejando diamantes em frases de ouro e prata. Melhor, de jardineiro transformando o deserto de luto e dor em canteiros nos quais a saudade ganha novos sentidos e perfumes.

Não me sinto ao nível de tal responsabilidade. Por isso, desisti. De toda forma, preciso mencionar algo talvez desconfortável de se ler: os mortos estão mortos, despidos da carne e dos traços narcísicos da personalidade humana. Estão finalmente livres da ambição, do ego, da vaidade, e fora do alcance etéreo do discurso.

Como diz Drummond, “Na ambígua intimidade/ que nos concedem/ podemos andar nus/ diante de seus retratos”. Afinal de contas, eles “não reprovam nem sorriem/ como se neles a nudez fosse maior”. Quando eu morrer, poeta, espero que me permitam desfrutar dessa nudez invisível e do silêncio oblíquo das entrelinhas.

 

sábado, 13 de julho de 2024

O Centro

No Centro, toda cidade é igual. Lojas sedutoras, vendedores nervosos, metas intangíveis, um emaranhado de carros motos carroças bicicletas buzinas freios pedestres gritos pregões... A moça atravessa a rua interrompendo o tráfego e a narrativa. Por vontade ou inveja, todos olham. Eu só observo enquanto faço a ponta do lápis... Tanta gente dividida entre o necessário e o sonho de consumo, entre a pinga no espetinho que oferece carnes duvidosas e o suco com bolo de chocolate na lanchonete grã-fina. Alguns pedem, tantos negam; uns comem e bebem, outros dão o goto em seco. Agora, às 11h16, há multidões vazias na calçada da principal. Mais tarde, silêncios engolirão esquinas e becos, nos quais anoitecem utopias cobertas de trapos e papelões. Que loucura! Tudo começa. E acaba. E recomeça. E recomeça e acaba e começa naquele lugar estranho. Enfim, não trago novidade. Quem vive o Centro, onde me desencontro aqui e acolá, sabe como é viver o paradoxo em si.

sexta-feira, 29 de março de 2024

A IMAGEM EXATA DAS COISAS

 

Caminhava, apesar da preguiça e do enfado. Caminhava assim mesmo, em busca não se sabia de quê. O médico mandou. Parava de vez em quando, não pelo desânimo, mas para analisar sombras. É que fazia sol na perpendicular, deformando corpos opacos ao projetá-los no mosaico desgastado da praça.

As pessoas que arrodeavam o obelisco eram longilíneas, tinham pernas finas e cabeças enormes. Isso, todavia, se observadas no sentido Oeste/Leste. De Leste para Oeste, encolhiam, engordavam, e até se espezinhavam na execução de um ritual masoquista de autoflagelo corporal. De passo a passo.



Os bancos, embora de ferro e madeira, recriavam imagens confusas, ora fixas, ora vacilantes, que oscilavam pela força do mormaço que se levantava cerca de dois palmos do chão e dava de açoite nos olhos. E isso apesar de a tarde já nutrir lascívias pela noite que saciaria seus desejos dentro em breve.

Árvores se aventuravam na paisagem, incluindo quatro carnaubeiras que mal se faziam perceber na sepultura da luz, a não ser pelo arrepio das copas arredondadas; e se dispersavam nos canteiros a chafurdar no barro onde a relva desgrenhada e rala, de algum jeito, também fabricava as próprias résteas.

Prédios derramados pelo asfalto tremiam no vácuo de carros, motos, bicicletas, carroças, transeuntes. Sem saber, cada um deles, até o cachorro que mijava no vulto desnutrido do poste, contribuía para o espetáculo das formas, em que as coisas não são as coisas, são outras coisas. São o que se imaginar.

O casarão da esquina se retraía aos poucos, ensimesmando-se meio de banda. Ia se engolindo. Logo, o bêbado sem-teto adormecido nos alicerces da mansão secular, no usufruto da silhueta disforme em que portas, janelas e traços arquitetônicos coloniais se dissolviam, perderia a posse do singularíssimo bem.

De tanto contemplar sombras como quem observa nuvens quando mudam de forma sem perder a essência, entendeu: a imagem exata das coisas não passa de deformação produzida no inconsciente para enganar os sentidos de quem só enxerga a vida da maneira que deseja, pelo ângulo que mais lhe convém.


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A imagem que ilustra esta crônica foi produzida pelo Copilot.



segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Tudo de velho


A última vez que escrevi algo manifestando otimismo em um ano maravilhoso foi às vésperas de 2020, mas apenas porque adoro o número 20. Veio, então, a nefasta pandemia de Covid-19. De lá para cá, não tenho me arriscado em presságios, coisa que entrego aos discípulos de Mãe Dináh e de Walter Mercado.

Estamos em 2024 faz horas, a Mega-Sena da Virada – 21, 24, 33, 41, 48 e 56 – se foi para o bolso de outro apostador e, não tendo acertado número sequer, já não alimento a esperança de enricar. Parodiando o jornalista Carlos Santos, tornar-me um “liso estável” é tudo o que desejo por enquanto e talvez até o fim da vida.

Nem o horóscopo parece contribuir. A previsão para o signo de escorpião, segundo me disse Túlio Ratto, quase no Ano-Novo, é de um período agitado no campo do amor. Agitado! Agitado? Agitado... Agitado: confusão. Nossa Senhora das Bicicletas, protegei-me dos mares revoltos do desamor. Mantenha-me em paz.

Aliás, deve-se desejar feliz Ano-Novo, Ano Novo ou ano novo? As dúvidas, como se vê, perseguem esta mente inculta e inquieta ao longo do tempo. Aprendi, não sei quando nem onde, em algum esforço de cultura inútil, que Ano-Novo é o réveillon, Ano Novo é o dia 1º e ano novo – puta merda – é o período de 12 meses.

Estando errado, que se dane! Se nem os gramáticos de redes sociais se entendem, quem seria eu para entrar nessa suruba linguística. Vou é tomar um café amargo, daqueles bem fortes que dona Raimunda fazia para Padre Sátiro, no Diocesano, porque o uísque de 2023 ainda pode quebrar qualquer bafômetro.

domingo, 31 de dezembro de 2023

João da Escóssia ou João da Escócia?


O poeta e jornalista Émerson Linhares, boêmio da asa quebrada que nem eu, trafegava pela Estrada do Contorno, ladeado por Ana Ximenes, musa única e derradeira dos seus versos, quando uma placa de trânsito lhe chamou a atenção. Nela estava escrito “Av. João da Escócia”, e o “Escócia” assim, com “c” na terceira sílaba.

O velho amigo, colega dos bons tempos da redação do O Mossoroense, de quando o jornal ainda era impresso, fotografou e me enviou a imagem da placa, por WhatsApp. Logo em seguida, escreveu perguntando se aquilo estava certo e, antes mesmo de que eu lesse, acrescentou a sugestão de uma crônica sobre o assunto.



Émerson Linhares sabe a resposta. Afirmo convicto porque, como disse, militamos juntos no O Mossoroense, antecedidos por João da Escóssia, Augusto da Escóssia, Lauro da Escóssia, Lauro da Escóssia Filho, João da Escóssia Neto, João Newton da Escóssia, Maria Lúcia Escóssia e tantos outros. Eu mesmo sou Cid Escóssia.

Falou mais alto nele o instinto de editor, aguçado nas melhores práticas do jornalismo e que as atuais tarefas burocráticas no Detran não abateram. A foto e a mensagem não eram pergunta, eram pauta que recebo e realizo nestes últimos instantes de 2023. Afinal, muita gente desconhece a curiosa história do tal sobrenome.

O primeiro de nós foi João da Escóssia Nogueira, o da avenida cuja denominação alguém resolveu “corrigir” 150 anos depois, trocando por “Escócia”. Em circunstâncias normais, talvez tivesse recebido sobrenomes do pai ou da mãe, Jeremias da Rocha Nogueira e Izabel Benigna da Cunha Viana. Os tempos, contudo, eram de lutas.

O Escóssia com dois “esses” é fácil explicar. Quando João nasceu, aos 27 de maio de 1873, vivia-se o período pseudoetimológico da língua portuguesa, que foi do século XVI ao início do XX, antes do acordo ortográfico de 1931, no qual se estabeleceram padrões para a escrita de algumas palavras com “ss” ou “c” no idioma pátrio.

As mesmas regras que transformaram Escóssia em Escócia – como o nome do país – atingem Mossoró e Assú, que, a rigor, deveriam ser Moçoró e Açu. O citado acordo de 1931, todavia, consentiu a preservação de topônimos e sobrenomes, mantendo-se, conforme registrados em leis ou cartórios, Assú, Mossoró, Escóssia.

E por que João da Escóssia? Vamos lá! Jeremias, o pai, era jornalista, rábula – advogado sem diploma – e membro do Partido Liberal. Meses antes do nascimento do filho, fundou o jornal O Mossoroense, aos 17 de outubro de 1872, para fazer oposição ao Partido Conservador, sigla liderada pelo jesuíta Antônio Joaquim Rodrigues.

O vigário deitava falação no púlpito contra os liberais, enquanto estes, especialmente Jeremias, Ricardo Vieira do Couto e José Damião de Souza Mello, colegas de redação, retribuíam no periódico, que chegou a usar, no seu cabeçalho, uma inscrição em que se declarava “Semanário, político, comercial, noticioso e antijesuítico”.

Para piorar, o jornalista incendiário que anunciava o fim do poder dos papas era da Loja Maçônica 24 de Junho, inaugurada em 1873, na data que nomeia a instituição. Assim, alegando que Igreja e Maçonaria não combinavam, o vigário se recusou a batizar o rebento, a não ser que pai e também padrinho deixassem a Ordem.

Jeremias promoveu então um batismo simbólico na 24 de Junho, acrescendo o Escóssia ao nome do filho, em homenagem a São João da Escóssia, considerado patrono do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria. Tal santo, reverenciado pelos maçons brasileiros durante longo tempo, não existe, mas esse tema fica para depois.

Existem outros “Escóssias” por aí, sem ligação com os de Mossoró, além de “Escócias” e “Escócios”. O João da avenida, jornalista, artista plástico, cenarista de teatro, publicitário, xilógrafo, desenhista e caricaturista falecido aos 14 de dezembro de 1919, é Escóssia, de modo que a placa está mesmo errada. Podem mandar ajeitar.



domingo, 24 de dezembro de 2023

O Espelho

Para Laete Rosado, que me inspirou a desafiar o espelho. 


Desconheço estes rostos que o meu rosto,

Contemplando o semblante da loucura,

Me apresenta no plano contraposto

Do espelho estilhaçado na moldura.


Não sei, daqueles quantos, quem eu sou

Nem quais deles revelam quem sou eu.

Talvez nenhum reflita como estou, 

E até cada reflexo seja o meu.


Queria olhar na cara e estar sozinho,

Sem tropeçar em mim no descaminho

Ou encontrar estranhos de repente.


Mas há tantos de nós na imensidão,

Tantos rostos no espelho à minha frente, 

Que chego a me perder na multidão.




sábado, 26 de agosto de 2023

SILÊNCIOS

Até me esforço, 

mas ainda não consigo

ler silêncios.

Nunca entendo

quando riem,

quando choram.

Confundo se me desprezam

ou se me querem.

Se lutam contra o nada

ou se esfolam a garganta no vazio,

quem cai no vácuo sou eu.

Alguns deles

talvez nem passem 

de silêncios bobos

e devam ser ignorados.

Sei lá, um dia aprendo

e escrevo um silêncio bem bonito,

enfeitado com o seu nome,

só para ver se você escuta.


domingo, 30 de julho de 2023

MORRO DAS SETE CORES


Não lembro se era tarde ou se era dia,

Mas recordo, a maré estava cheia,

O vento chafurdava pela areia

E as dunas transbordavam de euforia.


Das brenhas do alto-mar, uma jangada

Que parecia azul do continente

Se esfregava de um jeito impertinente

Na água-flor que gemia alucinada.


Vi pássaros na pedra onde a sereia

Devora homens sem alma e sem socorro, 

Toda vez que por lá faz lua-cheia.


O Sol gritava – Luz! – já sem pudores,

E se espalhava nu por sobre o morro

Que suspirava em tons de sete cores.


sábado, 22 de julho de 2023

Resenhando Drummond



Foto: Clarisse Tavares


Escrevi uma resenha para a disciplina Produção Textual II, ministrada pelo grande professor José Carlos Redson. Para quem não sabe, sou aluno de Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Fiz Enem e tudo, já na casa dos 50, a fim de galgar à vaga que ocupo no campus de Assú/RN.

Estudar já velho, com um monte de obrigações e compromissos, é talvez mais complicado do que na média etária dos meus colegas de turma, na faixa dos 20, mas deixo o comentário no campo das probabilidades porque não sei da vida alheia. “Cada um”, como diz Caetano, “sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Para qualquer um, exige tempo que espremo entre o trabalho na advocacia e os instantes dedicados à docência em Direito, na Faculdade Católica do RN, às vezes em detrimento do espaço da família, às vezes sacrificando a porção destinada à boemia que ainda me conduz madrugada a dentro, bar em bar.

Vale a pena, entretanto. Paga qualquer esforço, reler autores frequentados na juventude, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade, com quem acabo de tomar três xícaras de café 100% arábica, colhido na Serra da Canastra/MG, enquanto recordávamos, eu e o poeta, o enredo de “O Jardim em Frente”.

Li esse conto pela primeira vez faz um trem de anos – para lá de 30, sô! –, em edição da antologia 70 Historinhas que ainda compõe o acervo da Rua dos Bobos, nº 0, na Curva do Vento, à beira do Rio dos Monxorós. A que utilizei há pouco veio por WhatsApp, reduzida a bits nas tripas dum arquivo PDF.

O texto de Carlos Drummond de Andrade, de certo modo, tem a ver com essas revoluções promovidas pelo capital, que nos trouxeram coisas impressionantes nas últimas décadas, a exemplo dos smartphones, do WhatsApp, do PDF, para otimizar o trabalho, domesticar as horas, maquinizar o que se diz humano.

Nele, o vate itabirano, imerso em prosaica narrativa, descreve a reunião dos figurões de uma empresa – os “big-shots” –, antecedida pela advertência do presidente para que ninguém, em hipótese alguma, atrapalhasse os debates. Telefonemas também não deveriam ser repassados, nem que fosse ligação do “papa” 

O chefe, na sequência, esquadrinha o tema do debate, minuciosa e cartesianamente, “como quem divide um leitão”, mas é interrompido pelo porteiro que, descumprindo a ordem, bate à porta insistentemente, até ela ser aberta, sob protestos dos executivos, e apresenta uma mulher aflita, que mora ali, na redondeza.

O gesto só não provocou a demissão do serviçal pelo receio dos maiorais de a dispensa infringir a lei trabalhista, sem dizer da surpresa diante da senhora transtornada, que pedia algo inusitado: autorização para sepultar o cadáver do canário da família no jardim da firma, por lhe parecer um “lugar bom para ele descansar”. 

A casa onde gorjeava o bichinho é grande, com árvores no quintal, mas não oferece intimidade para o descanso eterno. O enterro é autorizado e os “big-shots” suspendem os afazeres para render homenagens à memória da ave cujo corpo é depositado no solo em “uma caixinha forrada de veludo azul-claro”, solenemente.

Drummond, como se sabe, era modernista, daí características do movimento brotarem no conto, a começar pelo uso do inglês para designar os chefões corporativos, rompendo a pureza do português parnasiano. A linguagem, em verdade, é coloquial e beira a oralidade, com frases curtas que nos inundam de imagens.

O cotidiano, aspecto também inerente aos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922, ganha vulto no choque entre o capitalismo frio e cartesiano, encarnado no comportamento dos dirigentes empresariais; e a vida de pessoas comuns – as telefonistas, o porteiro, a dona do canário – prenhes de subjetividades. 

São os dois últimos, a propósito, o porteiro que desobedece à ordem do chefe, mesmo correndo risco de demissão; e a dona do passarinho morto, com tocante sensibilidade, que desafiam a frieza do universo corporativo com gestos de elevada empatia cada vez mais raros no dia a dia, no corre-corre das cidades grandes. 

E o ritmo da escrita? Quanto engenho! Os detalhes, as intercalações, os períodos curtos, a pontuação, paralisam, dão nos nervos, como o “bater com esse lápis” e o “toc, toc, toc, na mesa”, a ponto de o leitor, do lado de cá dos acontecimentos, perceber e sentir a chatice, a demora, o marasmo daquele evento.

A narrativa se expande, contudo, para descrever a dimensão humana da pausa nos afazeres empresariais em homenagem à dor da mulher anônima, que sobrepõe o luto prosaico pela morte de um pássaro aos elevados e urgentes interesses do capitalismo. É, na prática, a poesia que sempre se faz prosa em Drummond.

Penso que não havia canário na “caixinha forrada de veludo azul-claro”. Havia a sensibilidade assassinada por você e por mim, que ressuscita de vez em quando nos terceiros dias, voltando a morrer diante de nós neste ciclo sem fim, da agonia, tentando nos seduzir para a beleza das coisas breves e dos pequenos gestos.

sábado, 8 de julho de 2023

O piano

Não toco nem tambor. Quando jogava capoeira pelas praças de Mossoró, final dos anos 1980, início dos 90, sequer batia palmas para não tirar berimbaus e atabaques do ritmo. Fase boa, apesar do perigo de ser preso, visto que algumas autoridades, infectadas pelo racismo estrutural, confundiam o esporte com a vadiagem.

Por contradição, ironia ou castigo cósmico, sempre fui apaixonado por música. Um ouvinte chatíssimo, igual a torcedor que só conhece, no futebol, as faces quadradas da bola, mas que esculhamba técnico, jogadores, árbitro, bandeirinhas e até gandula, no auge da disputa. Menos, menos. Exagero! Eu não sou tanto.

Exatamente agora, rascunhando no bloco de notas do celular este texto que se pretende crônica, assisto a apresentações de pianistas de várias partes do mundo, graças ao YouTube e ao bom gosto de papai. Polônia, Japão, Brasil, EUA, a linguagem da harmonia é universal e não conhece a barreira semântica da palavra.

No ramo, contudo, não passo de apologista. Apologista razoável, dado ao privilégio de ouvir, ao longo de quase 52 anos, Laíre Rosado ao piano Schumann em que também praticaram o pai e os irmãos dele. Foi adquirido no Rio de Janeiro, transportado em barco até Areia Branca, onde se contratou um caminhão de frete.

Até tentei ser pianista recebendo aulas do magistral Ari Duarte, na casa que dava de ombros com o prédio da Gazeta do Oeste, depois incorporada pelo jornal de Canindé Queiroz e Maria Emília. A mente inquieta, todavia, não me permitiu o domínio da arte. Nem piano, nem violão, nem flauta, nem gaita. Nem nada.

Por isso, fico aqui esfolando verbos, adjetivos, substantivos, arrancando-lhes tripas e tendões, na ilusão de construir uma lira milagrosa para cantar, na disritmia da prosa, a alegria de ouvir música com papai, que só não está tocando porque se recupera de uma cirurgia. “Esforço zero!”, ordenaram os médicos do médico.

Em complemento, amplio o registro de memórias e o repertório de histórias. Perguntei-lhe, por exemplo, sobre os pianos da Mossoró nos idos de 1960, lembrando-me de Brasília Carlos Ferreira, do Sindicato do Garrancho. Diz ela, havia uns 100 na cidade, no início do século XX, em demonstração de “cosmopolitismo”.

Doutor Laíre respondeu contando que Delfino Freire, comerciante rico, primeiro a viajar em carro motorizado de Mossoró a Tibau, levava o piano para a casa de veraneio todo ano, de carroça. No rastro, alguém contratado a peso de ouro para ajustar o bichinho, que, pelo transporte, chegava desafinado à esquina do mar.



A narrativa me faz lembrar Dulce Escóssia, filha de João da Escóssia, que, à época de Delfino, dividia-se entre os ofícios de costureira e de pianista. Dulce executava a trilha sonora dos filmes exibidos no Glória, no glorioso tempo do cinema mudo, segundo me contaram as suas três meninas, Lucinha, Corália e Honorina.

Trocadilho mais idiota, minha Nossa Senhora das Bicicletas: “Glória, glorioso”! Sinal de que desafino até no texto e de que o ponto final se aproxima cobrando-me respeito e silêncio. Peço desculpas. O único ritmo que me restava, o das teclas da máquina de escrever, foi-se na transição da Olivetti ao microcomputador.

A exemplo desses engenhos datilográficos, aquele piano de madeira, cordas metálicas e martelinhos percutores, com pedais para alongar as notas, parece restrito a escolas, museus, profissionais e saudosistas, sem mencionar o caso dos snobes que mantêm o móvel na sala para impressionar visitas e ilustrar fotografias.

Aqui resiste o Schumann vertical de meu avô, graças à paixão de meu pai pela música; e resiste meu pai, com sua musicalidade discreta, graças ao anel viário que lhe construíram no peito, com quatro pontes mágicas – duas mamárias, duas coronarianas. Que privilégio, esse meu, mesmo sem tocar um instrumento.


quinta-feira, 29 de junho de 2023

DESSAS FLORES

A prosa descarada faz gandaia

Nas linhas sensuais da poesia.

E se ao verso seduz tal fantasia,

A musa tanto goza que desmaia.


Não há tesão em linhas sem estética,

Poesia sem prosa não dá fome,

A prosa só reluz e se consome

Na face sem-vergonha da poética.


Certa vez, por descuido ou desvario,

A prosa lançou rima em meus pudores

E o verso se abriu prosa em pleno cio.


Desde então eu me curvo aos pés das duas

Suplicando os segredos dessas flores

Que em meus sonhos mais puros correm nuas.







domingo, 25 de junho de 2023

Prefeito veste Azul, Lampião veste Rosa

As cores sempre tiveram simbologia especial em Mossoró, notadamente nas disputas político-partidárias. Durante anos, o verde do MDB e o encarnado da Arena dividiram a cidade nos períodos eleitorais. Pelo tom da roupa, deduzia-se em quem votava o sujeito ou a sujeita, a exemplo do que aconteceu em pleitos recentes, com o vermelho petista de um lado e o verde-amarelo bolsonarista de outro.

A coisa, aliás, ia além das vestes. Seu Pedro, conhecido como Homem do Carneiro Verde, segundo narra o cronista Odemirton Filho, no blog do jornalista Carlos Santos, usava tinta xadrez para enverdecer a lã do inocente ovino que arrastava às famosas vigílias do ex-governador Aluízio Alves, o Cigano Feiticeiro. Era a maneira de Seu Pedro não deixar o menor sinal de dúvida sobre sua condição aluizista.

Contam também que, nos anos 1960, o tribunal designou um juiz forasteiro para a comarca. O magistrado era discreto e não dava pistas ideológicas, até que, um dia, alguém o viu sair da farmácia e resolveu buscar indícios no estabelecimento: “O que ele comprou?”, quis saber o curioso. “Escova de dentes”, respondeu o boticário. Aí veio a grande jogada, o xeque-mate: “Verde ou vermelha?”.

Quem se cria no País de Mossoró cresce impregnado por essas simbologias. Quem chega depois, logo se contamina pela semiótica local. Se bem que não é só aqui. Conforme escrevi logo no primeiro parágrafo desta crônica, a nação inteira caiu na gandaia, alguns em delírio coletivo. Até eu, sempre distante das polêmicas do gênero, passei, inopinadamente, a evitar determinadas combinações.

Talvez por ser mossoroense, infectado de nascença pela cisma das cores, eu tenha visto algo estranho na edição 2023 do Chuva de Bala: o prefeito Rodolfo Fernandes, herói e salvador, veste um Azul forte que se destaca no espectro anil proporcionado pelo choque entres luzes e cenário; e Lampião, o facínora, veste Rosa. Coincidência! Ninguém, a não ser um bruxo, criaria fantasia subliminar tão graciosa.


Imagem oficial do evento transmitida pela TCM

Imagem oficial do evento transmitida pela TCM

Psicoses à parte, registro aqui meu reconhecimento aos trabalhadores da cultura responsáveis pela construção desse espetáculo que projeta Mossoró no Brasil e no mundo. Não vou citar nomes, por serem muitos os amigos e amigas a brilhar no adro da capela de São Vicente, tantos, ao longo de tantos anos, que a lista sequer caberia neste Canto de Página. A vocês, os parabéns! Evoé! Merda!

sábado, 10 de junho de 2023

Isaura Amélia, a imortal

Não foi Isaura quem tomou posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Foi a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras quem tomou posse em Isaura. Longe de mim cutucar a imortalidade com lápis curto, até porque muitas pessoas queridas estiveram naquela instituição e outras tantas permanecem nos seus quadros. Desejo apenas enaltecer a grandeza da figura humana que acaba de chegar por lá.

Conheço Isaura Amélia desde sempre, afinal somos primos. Apesar do destroço que a política causou na família, dividindo-nos em três ou quatro bandas, permanecemos – ela, Vingt-un Rosado e eu – unidos pelos laços fraternais da literatura. Aliás, Vingt-un me disse certa vez, com o testemunho dos milhares de autores habitantes da biblioteca dele, uma frase que ficou gravada na memória: “Isaura é gênio da raça”.

De fato, a prima já era imortal muito antes de qualquer láurea, tanto pela produção acadêmica quanto pelo trabalho realizado nas entidades que coordenou. Há marcas indeléveis de sua passagem na Secretária de Cultura de Mossoró, Fundação José Augusto, Fundação de Apoio à Pesquisa e Secretária de Cultura do RN, no incentivo à produção bibliográfica, à música, ao teatro, à história, às artes plásticas, à pesquisa.

Do que me toca especialmente, registro três atos: o convênio com a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para microfilmar o acervo do jornal O Mossoroense, de 1872 a 1950; a ideia, em um desses 14 de março, de pintar versos de poetas locais no asfalto, em diversos cruzamentos do centro de Mossoró; e o esforço que fez da cidade uma das primeiras do País a liberar recursos da Aldir Branc, na pandemia.

Foto sem identificação de autor copiada do portal da Ufersa

Ela é por demais generosa. Dá um cabimento danado a mim, que nem valho a palavra que leio, e até pareço ingrato por não participar das coisas para as quais me convida. De uns tempos para cá, as torres de cristal têm me causado impaciência e vertigem. Esse, contudo, não foi o motivo de eu não ter ido à academia saudá-la com pompa e circunstância. Foi a sala de aula, que limita a vida social do professor.

A ausência não significa que não fiquei feliz, que não vibrei com o reconhecimento a Isaura, sucessora de dois tios na arcádia potiguar: Tércio e Vingt-un, terceiro e vigésimo primeiro dos numerados do velho Jerônimo Rosado; sem dizer do primo Carlos Ernani Rosado Soares. Tércio, conheci em livros e por meio de relatos dos mais velhos. Vingt-un e Ernani, carrego a imensa alegria de haver convivido com ambos.

Ainda sobre minhas faltas, devo, desde 2022, um texto sobre o livro Isaura Amélia: coleção de arte. A obra, harmonia perfeita entre verbo e imagem, talvez seja o registro mais amplo das artes plásticas do Estado. São maravilhas reunidas pela autora ao longo de décadas, de gente famosa e de talentos desconhecidos, que, segundo Iaperi Araújo, no prefácio, foram generosamente dadas à Pinacoteca de Mossoró.

O livro merece crônica à parte, exclusiva. Por enquanto, fica aqui às vistas, sobre a mesa de trabalho, como inspiração para outras expressões. Hoje é dia de parabenizar à Academia de Letras por haver tomado posse em Isaura. Se deixarem, essa mulher vai sacudir a poeira dos fardões e revolucionar o casarão da rua Mipibu, aproximando-o dos interiores, das ruas e dos becos onde nasce, vive e pulsa a arte dos mortais.


domingo, 4 de junho de 2023

Esse aí é seu pai?

 Tipos populares frequentam livros, crônicas e artigos de diversos memorialistas e historiadores do Rio Grande do Norte há muitos anos. Em Mossoró existem páginas célebres de escritores de nomeada sobre figuras curiosas que ilustravam, com suas particularidades, a geografia humana local.

Nem sei se tais registros seriam “politicamente corretos” hoje, em tempos de revisionismo literário. Tais personagens, afinal, destacavam-se por reagirem a apelidos jocosos, por distinções físicas, por manias diversas e até por problemas mentais, a exemplo do rapaz que transava com fuscas.

Quando passei a frequentar Assú com regularidade, descobri que, por aqui, também há narrativas envolvendo personagens curiosas. Roque, imortalizado em mural de Gilvan Lopes, no Centro, é uma delas. Apesar de cego, dizem, informava as horas corretas, sem relógio; e percorria a cidade toda sem ajuda.

Roque, o “Cego da Hora”, morreu bem-antes de eu passar a morar na Terra dos Poetas. Gostaria de tê-lo conhecido e, quem sabe, entrevistado. Aliás, por que não pensamos nisso, meu amigo Lúcio Flávio? De meu tempo, entretanto, tomo a liberdade de fazer dois registros: Cachorra Lascada e Cleonice.


Roque, o Cego da Hora
 
Roque por Gilvan Lopes

Cachorra Lascada é magro, de estatura mediana. Às vezes parece ninja, às vezes encarna Rambo, a depender de como enrola a camisa na cabeça. Diariamente luta artes marciais com inimigos imaginários em via pública. Sempre torço por ele, que, até onde sei, não ofende ninguém de “mermo-mermo”.

Cleonice é uma mulher baixinha, gordinha, que anda do raiar do Sol à alta madrugada catando recicláveis e pedindo dinheiro. Há dias em que nos encontramos em diversos lugares, nos horários mais variados. A cada novo esbarrão, dirige-se a mim como se fosse a primeira vez: “R$ 2,00, moço bunito”.

Se estou acompanhado de Clarisse, minha proprietária, Cleonice vai se chegando com jeito e simpatia: “R$ 2,00, muié bunita e homi bunito”. Se tenho e dou, o elogio é reforçado com algum gracejo, mas, se não compareço, ela olha para Clarisse e dispara: “Tão novinha! Tão linda! Esse aí é seu pai?”.

sábado, 27 de maio de 2023

Segura na mão de Deus

Antes de começar a história, sinto que devo situar o leitor sobre as personagens envolvidas. A primeira sou eu, Cid Augusto, poeta sem talento, cronista de meia pataca, sedentário convicto e militante. Depois vem Clarisse Tavares, minha proprietária e cuidadora, fina e delicada que nem lixa 60, segundo o pai dela. 

Tem ainda Elen Nailla, personal trainer contratada por Clarisse para nos assistir na academia e, por fim, apresento Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira, Luiz da Funerária, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Econômico de Assú, ex-candidato a prefeito e CEO de um dos mais promissores complexos funerários do RN.

Luiz é simpaticíssimo, tão cativante que até pensei em transferir meu plano funeral para a empresa dele. Só não o fiz para não contrariar a promessa feita a Jacson Damasceno, ainda nos tempos da faculdade de jornalismo na UFRN, de ser enterrado em um caixão importado da Funerária Damasceno, da cidade de Catu, Bahia.

Nailla, a personal, é excelente no ofício. Pontual, cuidadosa e carrasca com delicadeza. Ruim de matemática, porém. Quando a gente conta 12 repetições numa máquina assassina, ela insiste que foram apenas oito. Quinta-feira última, quase me mata diante dos olhos de Clarisse, que não esboçou qualquer solidariedade.

É que a moça às vezes carrega nos pesos sem dar crédito às minhas anunciadas fraquezas. Ela superestima o aluno, imaginando que ele pode mais do que afirma. Em verdade, posso muito menos do que alego e não me importo de ser o fracote da academia, “puxando ferro” a menor que os demais frequentadores do local.

Sei que nessa brincadeira de erro de matemática por parte da professora e de excesso de confiança depositada no atleta, saí do treino abraçado a Clarisse para esconder a tremedeira nas pernas. Ainda na portaria, sentindo a alma ateia sair pela boca, comecei a cantar o hino: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar...”.

Quando ergui o braço direito – o outro amparava minhas carnes trêmulas no corpo firme da mulher amada – e gritei a todo pulmão, 1/8 acima, com pausa dramática, “Segura na mão de Deus... E vai!”, surgiu diante de mim, como do nada, de sorriso espaçoso e braços arreganhados, o dono da funerária. Ele mesmo, meu amigo Luiz.



Ter com Luiz da Funerária é sempre motivo de alegria, prenúncio de bom papo, de boas risadas, mas a coincidência intriga – um corpo em petição de miséria, a música lutuosa, aquele encontro. Seria aviso de que a hora chegou? De que exercício mata, como sempre suspeitei? Ou de que devo fazer portabilidade do plano funeral?


sábado, 29 de abril de 2023

O São João mais antigo do mundo

Daqui a pouco chegam os eventos juninos, com Santo Antônio, São João e São Pedro. Quando criança, ficava deveras ansioso pelo período. Pela farra, pela comida, pela fazenda de meu avô, situada entre Mossoró e Felipe Guerra, margeando dos dois lados a BR-405. Na verdade, ele tratava como duas propriedades: a Mororó, do lado direito de quem segue rumo a Apodi; e a Tapuio, na banda esquerda da rodovia.

A ansiedade dizia menos com junho e mais com o gosto pelas coisas do sertão onde nasci e ainda vivo, até porque, ali na Mororó e na Tapuio, sem luz elétrica, as fogueiras eram acontecimentos corriqueiros, de relevante valor social. Ao seu redor, confraternizavam-se familiares, amigos, vaqueiros, caçadores. O seu calor, além de nos aquecer os corpos, servia de combustível para o café, o milho. Para as ideais.

Trago daquele tempo o gosto da culinária sertaneja. Assim, do mesmo modo, pratos como canjica, mucunzá, pamonha, cuscuz, picado, buchada, panelada, coalhada, não eram coisas apenas do meio do ano. Ainda hoje, aliás, quando pretende me encurralar, sem possibilidade de rejeição a convite, minha mãe usa o conhecimento privilegiado a meu respeito e anuncia, sem dó nem piedade: “Tem maxixe!”.

Não desejava falar sobre isso. Digo “falar” – embora escreva –, tentando fazer da escrita uma extensão da fala, para conversar com você. Porque o imagino aqui, diante dos olhos, enquanto as palavras se derramam na tela do computador. Peço desculpas. Minha mente é uma colcha de retalhos multicolores cosidos uns aos outros com a agulha do tempo e qualquer linhazinha vagabunda que a memória empresta.

A intenção era aproveitar o comecinho do sábado, antes das atividades pendentes na advocacia e na docência, para me entregar à crônica, porção que me resta do jornalismo, paixão da vida toda. E na crônica, artesanato da palavra que não se fez notícia, desejava escrever sobre o evento que a prefeitura de Assú realizou ontem – hoje são 29 de abril de 2023 – para receber alunos do colégio Marista, de Natal.

O Marista natalense, cujo padroeiro é Santo Antônio, homenageia uma cidade a cada ano. Assú é o lugar da vez, eleita em votação realizada na Internet, com mais de 20 mil votos. Eis o motivo da visita e da recepção que se fez em prosa e verso, com direito a apreciar painéis do compadre Gilvan Lopes e a arquitetura secular da Igreja Matriz, sem dizer da inenarrável sensação de chafurdar no Buraco do Prefeito.

Pelo que as vistas alcançaram, apesar das lentes arranhadas dos óculos, eram centenas de meninos e meninas, além de professores e professoras, lotando de azul e branco o Cine Teatro Pedro Amorim para ver tradições juninas do jeito que só o interior preserva. A plateia ficou extasiada diante da riqueza imaterial das atrações levadas ao palco, da prosa e do verso, da luz cheia de poesia que salta do olho do artista.

Impossível não recordar meu avô, a fazenda, o povo, os costumes. Não tem metrópole que afaste o sertanejo de mim. Igualmente inevitável lembrar do Santo Antônio Marista, onde estudamos meu pai, eu e um dos meus filhos. Quer dizer, eles estudaram: meu pai e meu filho. Eu apenas frequentei aulas na década de 1980 até ser convidado a me retirar. Fase ruim! Rebeldia sem causa que, aos 51, ainda custa caro.

E já que esta história virou memória, a música tema do São João de Assú, composta por minha amiga highlander Fernanda de Sá Leitão, interpretada por Dayane Martinelli e Priscyla Arrazo, arrancou-me outra reminiscência lá das brenhas cerebrais. Quando ouvi Dayane e Priscyla cantarem “Venha pra cá/ Venha curtir o São João/ É o mais antigo do mundo/ festa de fé e tradição”, variei de novo nas ideias.



Decerto, Assú não realiza o São João mais antigo do mundo. A expressão é, antes de tudo, um ótimo lance de marketing, afinal a tradição tem origem na Europa da Idade Média, na transmudação do louvor aos deuses pagãos da natureza e da fertilidade para o culto a santos católicos. Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra mantêm vivo o legado, inclusive com fogueira, balão, bandeirinha, culinária e tudo o mais.

Contudo, entretanto, todavia, com redundâncias, hipérboles e pleonasmos à parte, o lance de “mais antigo do mundo” fez a mente viajar ao jornal O Mossoroense da década de 1950, até uma crítica ao Mossoró Cidade Junina da época. Para o autor do comentário feito há cerca de 73 anos, o único São João de “mermo-mermo” das bandas do RN, o maior, melhor, mais tradicional, seria o da Atenas Potiguar.

Não entro na peleja nem por cem e uma cocada. Mossoró é minha terra, Assú a de minha proprietária. Ela não perde noite de junho nem que o Buraco do Prefeito esteja acochado igual fiofó de jia. Para mais, sou não de barulho. Sou de balcão. Aprecio beber enquanto converso miolo de pote e escrevo besteira em guardanapos, embora confidencie – não diga a ninguém! – que sufraguei Assú no pleito do Marista. 

***

Postscriptum ou P.S., para os íntimos. Minha doce proprietária, Clarisse Tavares, acaba de ler a crônica encerrada linhas atrás. Por determinação dela, contra a qual não cabe nem recurso, nem choro e nem vela, devo pedir desculpas e me retratar publicamente. Então, leitor amado, que se danem Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra e o resto do planeta. Assú tem o São João mais antigo do mundo. E ponto final!

Olha a cobra! Uh!


domingo, 2 de abril de 2023

Microconto nº 12

No mercado, às 5h00, cada bêbado ostenta sobre a própria mesa, a própria latinha de cachaça, a própria laranja, a própria solidão. Como fossem ilhas em homens, conversam com amigos tão íntimos que somente eles enxergam e ouvem. Quanta inveja, a minha! Queria um tantinho desse lirismo que faz a ponte entre o ébrio e o louco. Chega o poeta concreto, pede a cerveja que anuncia ser a última de um périplo iniciado ontem. O bardo ainda ameaça cometer uns versos de improviso, mas é dissuadido pela senhora de crucifixo de prata, que bebe algo em uma xícara de asa quebrada. O que será? O velho do cão maltês também comparece. “Vai pedir café”, imagino. Pede conhaque. Duplo, ainda por cima. Deu a hora de chegar.

domingo, 12 de março de 2023

Microconto nº 11

Ao contrário do que narram os irmãos Grimm naquele famoso conto de fada, Lobo Mau sobreviveu ao caçador. Hoje, velho e barrigudo, anda por aí, de bar em bar, disfarçado em pele de cordeiro. Chapeuzinho, por sua vez, melhorou com a idade. Noite dessas, reencontraram-se no Chico e Teta. Ela, exibindo o corpinho trabalhado no crossfit, ironizou a forma arredondada do antagonista a quem reconheceu na hora: “Seu Lobo, para que essa barriguinha tão grande?”. E o Lobo, cheio de uísque, respondeu: “Para ficar mais confortável para você”. Não se sabe como a história termina. Nem se termina.

Cid Augusto – 12/3/2023 – Made in Fortaleza/CE.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Microconto nº 10

Necrológio de Augusto Floriano, poeta autodidata: “Teve um coração revolucionário sempre em pé de guerra com as próprias fraquezas armadas. Submeteu-se a quatro governos democraticamente eleitos pontuados por seguidas tentativas de golpe de estado. Morreu como nasceu, sem conhecer a paz. Feliz, entretanto, por haver usufruído o que há de humano na encarnação da poesia”.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Microconto nº 9

Noite ardente, comentada em toda a vizinhança. Horas – tantas horas, mais horas, aquelas horas – de sussurros entrecortados por gemidos fundos e gritos involuntários. De repente, à luz do derradeiro suspiro, o sêmen vermelho da esferográfica sangra na superfície branca, fecundando a folha com o poema inesperado, agora em gestação. Aguardemos.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Breviário da insônia

2h21

A Lua espreita pela fresta da janela

logo hoje que estou cheio de pudores.


2h44

Algum cachorro late na vizinhança.

Um, não! Dois! Três! E estão brigando. Briga feia.


2h45

O forro de gesso estala.

Parece até que alguém caminha no telhado.


3h15

Sirenes gritam nas Quatro Bocas. 

Acidente? Fogo? Tiroteio?












3h28

“Vai dormir, criatura”, diz a mulher.

Fecho os olhos pela milésima vez, sem sucesso.


4h00

A Lua vai se rendendo ao Sol,

mas ainda me dá uma banana no canto da janela.


4h12

Agora danou-se! A cachorrada disparou em uivos. 

Tudo porque gatos já não tão pardos transam no telhado.


4h27

O pensamento se desprende do corpo. E vaga.

Na vida passada, estaria por aí, espreitando amores no varejo da madrugada. 


4h30

Galos roucos anunciam o dia.

Cães ainda ladram, caravanas ainda passam.


4h46

Cozinha. Pão com manteiga, copo de leite morno, comprimidos de sempre.

Quarto. Tenho até 6h00 para levantar como se tivesse acordando de ontem. 


4h58

Reconheço:

sou um fracassado nas artes do sono.


quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O Pálido Olho Azul

Acabo de encontrar O Pálido Olho Azul, na Netflix, estimulado pela informação de que uma das personagens é inspirada no poeta americano Edgar Allan Poe. A trama, “suspense gótico de Scott Cooper, baseado no best-seller de Louis Bayard”, diz a sinopse, envolve assassinatos misteriosos e vingança.


Edgar Allan Poe

Mas a crônica não é sobre isso, é sobre um momento, e é sobre “Nunca mais”.

Menino – menino mesmo, em idade da qual meus três filhos já passaram de sobra –, adorava as histórias de terror contadas em um livro de capa preta, que eu não sabia ler. Nem ele nem outro. Meu pai lia para mim.

Tempos analógicos, distantes da geração dos computadores, da Internet, dos celulares e das redes sociais, quando o entretenimento virtualizado ficava por conta da TV Verdes Mares, de Fortaleza. O sinal da emissora cearense era retransmitido – não até muito tarde – sob os auspícios da prefeitura de Mossoró. 

A primeira vez que assisti à televisão de madrugada, permita-me o registro, foi em Rui Barbosa, Bahia, na casa de um tio, lembrança cujos detalhes reservo para depois. Adianto apenas que, logo na estreia, deitado no chão da sala, com almofadas de apoio, tive o privilégio de ver o épico Gengis Khan. 

Na “rádio cabeça”, só para não dizer que não falei de Chico Buarque, você mais velho talvez esteja ouvindo The Fevers cantar que o sanguinário guerreiro mongol “conquistou a China, o Afeganistão e o Irã”, além de derrotar a tropa russa e se apossar do Império Turco. 

Tá escutando aí, não tá?... 


“Gengis, Gengis, Gengis Khan

Deixa na História uma página de dor

Era o Gengis, Gengis, Gengis Khan

Foi ditador, foi herói, foi bandido

E a todos que encontrava (oh ho ho ho)

Matava e queimava (ah, ha, ha, ha)

Era o mais temido dos mortais”.




Surpreendente. Em Mossoró, acesso a filmes de maior relevância, só no Pax, no Cid e no Caiçara, se a classificação permitisse, porque os comissários de menores marcavam cerrado nas portarias dos cinemas. Lá dentro, a galera aplaudia freneticamente e festejava – Êêêêêêêêêê! – na hora da reação do mocinho contra o bandido. Se a fita do projetor se partisse, o coro troava: “É roubo! É roubo! É roubo!”.

Enfim, com o seu perdão por haver enfiado tantas narrativas no meio do caminho, a quase me perder, verdadeira encheção de linguiça, as tramas de terror que tanto adorava eram lidas em voz alta por papai. Cada dia, um capítulo de Edgar Allan Poe. Eu ficava vidrado em Histórias Extraordinárias, edição que passou a integrar o meu acervo bibliográfico. Herança de gente viva, felizmente.

Talvez o garoto nem compreendesse a complexidade dos contos. Talvez o pai nem falasse exatamente o que estava escrito ali. Imagino que retraduzia e suavizava palavras, frases, orações, transformando o português adulto em português infantil.

É, não sei ao certo, e isso não me aflige. A exatidão é o de menos. Depois dos 50, o importante é a cena imperfeita reconstruída a partir de lampejos que, embora aos trapos, preservam a essência da casa, do quarto, do menino, do homem, da voz grave, calma, pausada, terna.

São alumbramentos que passeiam entre o que havia de fato e o que se projetou por capricho das convulsões cerebrais, um tanto diferentes da percepção de Manuel Bandeira, na Última Canção do Beco. Idêntico, contudo, no critério eternidade.


“Vão demolir esta casa.

Mas meu quarto vai ficar.

Não como forma imperfeita

Neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros,

Intacto, suspenso no ar!


Muitos anos depois das Histórias Extraordinárias, adulto, morando em Natal, contratei Charles Phellan para me dar aulas de inglês. No segundo ou terceiro encontro, o professor, imediatamente convertido em amigo, presenteou-me com uma cópia xerográfica de The Raven – O Corvo – e uma fita K-7 com alguém recitando o dito poema de Edgar Allan Poe, publicado na American Review, de Nova Iorque, em 1845, antes de ganhar fama mundial.

Os primeiros tradutores de The Raven para a língua portuguesa foram ninguém mais ninguém menos que Machado de Assis, em 1883, e Fernando Pessoa, em 1929. Preciso falar mais alguma coisa? Não, mas falo de enxerido: O Corvo é referenciado em músicas, quadrinhos, séries, e conta com várias adaptações cinematográficas. Lembra do nome da escola de Wandinha Addams? Vem dele. Os Simpsons, por sinal, têm sua própria versão, com Homer entoando o eu lírico.



Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico é a voz que sai das entranhas do poema para enunciar sentimentos, sensações. É quem fala no verso, correspondendo ao narrador no território da prosa. É como se o Grilo Falante largasse Pinóquio e se infiltrasse em Cecília Meireles para declamar O Menino Azul aos sentidos do leitor.

O eu lírico de The Raven é o viúvo pesaroso, desesperado “P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais”. O homem alucinado a conversar com um “velho corvo emigrado lá das trevas infernais”, que pousa no busto de Atena, posto nos umbrais da loucura, e se apresenta com o nome de “Nevermore”.

O texto não é leve, não é fácil. Parece ser, de qualquer maneira, uma boa porta de entrada para a obra de Edgar Allan Poe, a mim preciosa, sem demérito à genialidade do autor, pelo exato instante da infância que evoca. Espero aproveitá-lo enquanto fragmento de memória até que a ave “agoureira dos maus tempos ancestrais” se achegue aos meus ouvidos “Com aquele ‘Nunca mais’”.

Microconto nº 8


Razão e Paixão digladiavam-se nas redes antissociais. Razão não empolgava a torcida, enquanto Paixão parecia jogar em casa, em final de campeonato. Hora e meia depois do início do embate, surrada e humilhada, Razão entregou os pontos. Paixão, eufórica, correu pra galera. Razão, senhora de seus limites, sabe que jamais derrotará Paixão, por mais que vença.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Lou

A porta da redação do O Mossoroense se abre e meu amigo Luciano Lelis da Silva, maior repórter fotográfico do Rio Grande do Norte de todos os tempos, anuncia por debaixo dos vastos bigodes: “Visita para você. Doutor Lou, de Assú”. Como eu ainda apurava, redigia e editava notícias policiais, suponho que estávamos no final da década de 1980.

Foi o primeiro de três ou quatro brevíssimos encontros que tive com o lendário João Marcolino de Vasconcelos, o Lou, advogado, poeta, boêmio, escritor, jornalista, político e um dos grandes oradores a que assisti no Tribunal do Júri Popular de Mossoró, embora os processos específicos não me venham à superfície da lembrança.

Como diria Emery Costa, meu mestre e amigo, com quem tanto aprendi, “lá se vão” trinta e tantos anos, de modo que nem me sinto na obrigação de pedir desculpas por não conseguir me debruçar sobre detalhes. O importante, aqui, são os fragmentos preservados do momento, do aperto de mão, das conversas sobre jornalismo e direito penal.

Não precisa ninguém me dizer de sua generosidade intelectual. Eu a conheci. Revirando estas memórias um tanto quanto vagas, revejo aquele homem com seus 60 anos, de cultura vastíssima, conversando com um adolescente burro, rebelde sem causa e com fama de doido, posto a trabalhar no jornal da família por ser um caso perdido.

Talvez a loucura nos aproximasse. A loucura e a sensação de que a sobriedade é um porre, como me leva a crer o ex-prefeito e ex-deputado estadual Ronaldo Soares, ao afirmar que nosso amigo “não pertencia a um mundo chamado normal”, era um “Dom Quixote” a enfrentar moinhos de vento com as armas da prosa e o escudo da poesia. 

Jeová Liberado Júnior, proprietário do LaLua, bar mais astral da cidade, jornalista filho de outro jornalista, Jeová Liberato, que manteve a Tribuna do Vale em circulação por mais de 20 anos, o descreve como “figura simpática, amiga e simples” que “não escondia o inventor, poeta, escritor, radialista, advogado, escoteiro e mais uma centena de coisas”.

O artista plástico Gilvan Lopes, por sua vez, revela que Lou compôs os hinos das cidades de Areia Branca, Carnaubais e Alto do Rodrigues, além de haver atuado no teatro e publicado o livro Pé de Escada, em coautoria com Renato Caldas. Aproveitando a deixa, queria ser dono de um muro no meio do mundo para Gilvan Lopes pintar.



Juntando tudo isso, e depois de ler Crônica que Escrevi para Você, obra póstuma de João Marcolino de Vasconcelos, em exemplar raro pertencente a José Tarcísio de Sá Leitão Soares, só tenho a lamentar a insensibilidade que me impediu de conviver com ele para lá dos esbarrões no O Mossoroense e no Fórum Silveira Martins.

De consolo, réstias de recordações, a convivência com a obra e, pelo que leio, a sensação de que poderíamos ter sido bons amigos, bebido juntos e varado noites no Assú, como, aliás, tenho feito de vez em quando, nas oportunidades em que o bolso permite ou Germário abre o coração e me oferece um vale no botequim.

Evoé, Lou!


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Sobre os atos em Brasília e o crime de terrorismo

Não costumo retrucar comentários feitos em meus perfis de redes sociais. Em regra, apenas curto o que me escrevem, seja elogio ou crítica, concorde ou não concorde com o que está posto. Esse é o meu modo de agradecer pelas participações e de deixar todo mundo bastante à vontade.

Hoje, entretanto, sinto-me na obrigação de fazer alguns esclarecimentos, e começo afirmando que a postagem objeto deste texto não tem, nem de longe, o desejo de minimizar a gravidade dos atos criminosos praticados contra a democracia brasileira nesse domingo.


Postagem que deu origem a este texto.

Os golpistas responsáveis pela depredação dos prédios dos Três Poderes devem ser investigados pela polícia, denunciados após análise do Ministério Público e, se a Justiça assim o entender, condenados. Mas dentro do devido processo legal, com direito a contraditório e ampla defesa, mesmo que esses sejam mecanismos da democracia, regime que os ditos vândalos abominam.

Os rigores da lei devem ser impostos a todo aquele que, de qualquer modo, concorreu para as transgressões apuradas, na medida de sua culpabilidade, como determina o art. 29 do Código Penal (CP). Isso, logicamente, inclui coautores (executores diretos) e partícipes (sujeitos que ajudaram sem aparecer).

Em publicação anterior, enumerei uma série de delitos que podem estar configurados: dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso I e III, do CP), incitação ao crime (art. 286, caput e § 1º, do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).

Se o noticiário estiver correto, alguns baderneiros podem ser responsabilizados, ainda, por porte ilegal de arma de fogo (arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento), furto qualificado (art. 155, parágrafo 4º, inciso I e IV, do CP), lesão corporal (art. 129 do CP), associação criminosa (art. 288) e maus tratos a animais (art. 32 da Lei nº 9.605/1998).

Com o aprofundamento das investigações, quem sabe, as lideranças ocultas arquem com acusações de organização criminosa, nos termos da Lei nº 12.850/2013, vindo a ser constatada a existência de estrutura ordenada e divisão de tarefas, como uma “empresa antidemocrática”, com atuação em bloqueios de estradas, manifestações nos quartéis e atos violentos na capital da República.

O “patriota cagão”, merecedor de destaque especial, por representar a índole do movimento antidemocrático, pode ser responsabilizado por ato obsceno (art. 233 do CP), além dos atos de vandalismo eventualmente apurados contra ele.

O crime de terrorismo, no entanto, não me parece configurado, embora leia na Folha de S.Paulo a manchete “Presidentes dos três Poderes chamam atos de terroristas e pregam união”.

O jornal, a propósito, chegou a divulgar que cerca de 1.200 bolsonaristas que se recusaram a sair do acampamento montado nas imediações do QG do Exército seriam autuados em flagrante por terrorismo e abolição violenta da democracia. A matéria, contudo, parece ter saído do ar. “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, até onde aprendi na faculdade de direito, é desobediência (art. 330 do CP). 

Na perspectiva semântica, tudo bem. Concordo: são terroristas!

Embaso tal afirmação em simples consulta aos dicionários. O Houaiss define terrorista como “pessoa partidária do terrorismo ou que pratica atos de terrorismo”; enquanto o Michaelis registra terrorismo como “atitude de intolerância por parte de indivíduo ou grupo de indivíduos com aqueles que não compartilham suas convicções políticas, artísticas, religiosas etc”.

O problema é que, na perspectiva do art. 2º da Lei Antiterrorismo – Lei nº 13.260/2016 –, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em quem votei duas vezes, “terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

A propósito, o citado art. 2º é o que se chama de norma penal explicativa, espécie que não serve para proibir condutas nem estabelecer penalidades, limitando-se a esclarecer conceitos necessários à aplicação de determinado conteúdo jurídico. Pois bem ou pois mal, a exata interpretação desse dispositivo define se a Lei Antiterrorismo se aplica ou não ao caso concreto. 

Nesse processo analítico, por mais repulsivo que seja o ato criminoso, é inviável extrair uma expressão do contexto da norma. Assim, o substantivo “religião” não pode ser isolado para abarcar o lema fascistóide “Deus, pátria e família” nem mesmo as falações “em línguas” ou as orações ensaiadas entre os destroços.

Para facilitar a compreensão, prometendo fugir do tecnicismo jurídico, separarei o art. 2º da Lei nº 13.260/2016 em quatro partes. Vamos ler juntos? 

“[1] O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, [2] por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, [3] quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, [4] expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

Percebe qual trecho não se enquadra dos atos nefastos praticados pelos radicais bolsonaristas, em Brasília? Se não percebeu eu digo: a [2] “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, que são requisitos causais, motivos ensejadores da prática delituosa.

Não confunda. Uma coisa é a religião estar de algum modo presente nos discursos de vários dos que atacaram os Três Poderes, outra é o ataque ser motivado por discriminação ou preconceito religioso.

Por essas razões, desculpo-me pela interferência no debate e reafirmo: os “patriotas” que depredaram os Três Poderes não são terroristas à luz do direito penal, são golpistas perigosos que devem responder criminalmente pelo que fizeram, nos limites e com as garantias da Lei, em nome da democracia.


domingo, 8 de janeiro de 2023

O VALOR QUE O PEIDO TEM

Aguardava por atendimento diante do balcão da farmácia. Precisava comprar os cachetes que tomo desde os 25 anos de idade para controle da pressão arterial e do colesterol. Herança genética, segundo o cardiologista.

A fila estava parada porque uma senhora elegante, com sinais externos de hipocondria, a considerar as três cestinhas apinhadas de medicamentos, vitaminas, fitoterápicos, monopolizava a única funcionária disponível. Até Emulsão de Scott – eca! – a dondoca separara. Suspeito que este item, em especial, serviria de instrumento de tortura contra algum filho ou neto.

E eu ali, puto da vida, já pensando em mudar de fornecedor de drogas, comecei a ler anúncios colados nas prateleiras na expectativa de abstrair, quando, de repente, encontro o Luftal em promoção pela bagatela de R$ 46,00.

Inevitavelmente me veio à lembrança “O Valor que o peido tem”, de Celso da Silveira, de quem fui quase vizinho quando morei em Natal pela segunda vez, a partir de 1999. O título do livro, na verdade, é “Peido – O traque... O valor que o peido tem”, uma ode à emancipação do pum. Palavras dele:


“O peido de um general 

não pode ser comparado 

com o peido de um soldado

Que em tudo é desigual

Tem gente que peida mal,

há outros que peidam bem

Eu não conheço ninguém

que ainda não tenha peidado

Mas o povo não tem dado,

o valor que o peido tem”.


Com o Luftal em gotas ou comprimidos, de marca ou genérico, por quase 50 contos, eu mesmo já reconheço a grandiosidade da flatulência espontânea. 

Lógico, quem peida bem talvez saia por aí peidando e andando para o semelhante que vive entourido – chique, não é? Entourido! Prefiro o popular “inturido” –. Há, de fato, pessoas sádicas que não se importam com o sofrimento do pobre coitado – nada de Menino Pobrezinho, pela caridade – que sente as dores do parto sem parir, no exato instante em que a bufa resvala do tórax ao vazio, na transversal, sem encontrar a luz no fim do túnel.

Feliz era a musa de uma das mais célebres glosas fesceninas do Rio Grande do Norte, de autoria atribuída a Moyses Lopes Sesyom. De acordo com o poeta, a figura não passava tempo ruim, bastava fastar a perna de lado para fazer a terra balançar que nem os terremotos de João Câmara e Caraúbas. Diz assim:


“MOTE

O peido que a doida deu

Quase não cabe no cu


GLOSA

Isto ontem aconteceu

Debaixo da gameleira,

Foi um tiro de ronqueira

O peido que a doida deu.

A terra toda tremeu,

Abalou todo o Assú,

Ela mexendo um angu,

Puxou a perna de lado

Deu um peido tão danado

Quase não cabe no cu”.


Francisco Augusto Caldas de Amorim, na 3ª edição de “Eu conheci Sesyom”, que me foi presenteada por Fernando Tavares, atesta a autoria dos versos. A inspiradora, conforme Chisquito, foi Bandeira, mulher que habitava à sombra de um pé de gameleira que havia defronte onde veio a ser construído o Cine Pedro Amorim, em Assú/RN, nas décadas iniciais do século XX. O escritor João Ramalho, contudo, acusava Sesyom de plágio. A glosa ou o mote seria de um sujeito de Campo Grande cujo nome não recordo, embora o autor de “O beato da serra de João do Vale” sempre me falasse a respeito.

Debates à parte, e seja lá de quem for o peido da doida, só peço a Deus que me livre e guarde do entourimento – outra vez –, mas também do peido público, principalmente em tons denunciadores, ofensivos, humilhantes, que, confesso, já me pegaram desprevenido. 

Você fala e o bicho escapa semitonando. Exagero? Não! Pergunte a Deltan Dallagnol, que, em mensagem interceptada pela Vaza Jato – não é trocadilho – escreveu a frase “foi o tom do meu último peido”. Na época, a internauta Lívia Prata postou no Twitter que estava em dúvida se Deltan peida em “lá sustenido” ou “dó menor”.

Bom, o cara era procurador da República de Curitiba, renunciou para não ser punido e se elegeu deputado federal mais votado do Paraná, com quase 345 mil votos. Autarquia dessas, arrisco dizer, peida grave e grosso, em mi maior.

Pode parecer implicância. Jamais! Dou maior valor. Ruim é a sensação de querer e não poder peidar livremente. A liberdade precisa ser valorizada, tanto a dos patriotas quanto a dos esquerdistas, como também defende o grande Otacílio Batista:


“O peido é bom toda hora

Sem peido não há quem passe

A criança quando nasce

Tanto peida como chora

Um peido ao romper da aurora

Eu não troco por ninguém

Há noites que eu solto cem

Peidos grandes e pequenos

Já conheço mais ou menos

O valor que o peido tem”


Jurava que esses versos eram de Celso da Silveira. Não vou brigar com o Google, o pai de todos os burros. Ele certamente tem razão, considerando que 90% das minhas memórias são falsas e os outros 10% eu invento. De qualquer maneira, vou checar a informação em livros de “mermo-mermo”, em que a tinta sangra no papel, quando fizer bom tempo e puder entrar no quartinho em que está a minha singela biblioteca. Pode ser que os dois, Celso e Otacílio, tenham se servido do mesmo mote.

Abre parênteses.

Fiquei confuso com algo que escrevi parágrafos antes e que volta ao pensamento provocando a interrogação: bufa é manifestação da esquerda ou da direita? 

Ao alcance da mão, tenho o Houaiss, melhor dicionário da língua portuguesa da atualidade, conforme especialistas. Para ele, peidar significa “disparar peidos involuntários e repetidos”. Ou seja, um ato inconsciente coletivo que ignora a livre iniciativa, a existência e o prazer da porção unitária de gases. 

O peido, assim anunciado, só pode ser comunista, e o preço da simeticona um instrumento de exploração capitalista, mas vamos esquecer as ideologias. Deixa para lá, como diria o professor e advogado Charles Phelan, alter ego de Melissa Hofman, amante psicodélica do jornalista Jacson Damasceno.

Fecha parênteses.

Resumindo a ópera bufa – sem trocadilhos, repito – prefiro morrer entourido – ha, ha, ha, ha... ha... muito engraçado escrever desse jeito – do que pagar R$ 46,00 num frasco de Luftal. Domingo, também conhecido como hoje, amanheci na feira em busca de hortelã-pimenta, cidreira, erva-doce, camomila, louro e boldo. Estoque para dois meses garantido por menos de R$ 10,00.

Vou experimentar agora. Você não está convidado, não apareça. Quem avisa amigo é.



sábado, 7 de janeiro de 2023

Microconto nº 7

Meio quebrantado, mais ou menos capiongo, um tanto quanto bafejado pela Papary, olhou o espelho no fundo dos olhos e filosofou: “Não é fácil explicar o belo a quem só consegue enxergar o feio”.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Microconto nº 6

Deu duro o ano inteiro, com fé, obstinação, perseverança e atributos mais que se exigem da pessoa padrão, incluindo a resiliência, por ser da moda. Da última vez, comeu porco – ou suíno, na liturgia dos espetinhos –, traçou 12 uvas, engoliu um naco de romã, sem mastigar, e, trepado na mesa da sala, encheu o bucho de lentilhas. Vestia branco, é claro, e, depois dos fogos ecologicamente corretos, pulou sete ondas. Fará tudo de novo, por via das dúvidas. Quem sabe um dia...!


segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

MADRUGADA


Era tarde, eu vagava pela rua 
Naquele tempo incerto, irresoluto,
Em que a hora se esvai em um minuto 
E o Sol se reencontra com a Lua.

Buscava o bar, a dose que atenua 
A ilusão que nem quero nem refuto, 
Quando diante de mim – como tributo – 
A jovem madrugada se fez nua.

Por mera displicência ou fantasia,
Trocava, ali, a tez de noite escura
Pelos trajes dourados de outro dia.

Assim, virei boêmio e, sem tabu,
Só desejo que a flor da formosura,
Da próxima, também me faça nu.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Microconto nº 5

Véspera do Natal. Acordou por volta das 6h00 da manhã chuvosa. Mesmo com aquele sem vontade, desvencilhou-se dos lençóis e da cama. Tirou as remelas dos olhos com os indicadores, mijou, cagou, jogou água no corpo, escovou os dentes, penteou os cabelos, perfumou-se, trajou-se de sábado. Saiu de casa rumo a Cheila, no Mercado Central. Em lá chegando, tomou duas talagadas de café preto, comeu uma terrina de cuscuz ensopado em graxa de galinha caipira e foi feliz pelo resto do dia.


Microconto nº 4

Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... a vida sem feriados, sem fins de semana, sem descanso, sem paradas... Trabalhar... Trabalhar... Trabalhar... acautelar-se, pois o tempo devora os próprios filhos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... inadiável lidar com a impaciência dos vencimentos... trabalhar... trabalhar... trabalhar... e mais ainda trabalhar... até que a morte proporcione o merecido descanso.

Microconto nº 2

Enganava-se com dois ou três apagões de breve eternidade. Cada sensação de queda parecia-lhe uma noite inteira profundamente bem dormida. A insônia, fingindo-se de amiga, consolava-o madrugada adentro: “Deita no meu colo, bom rapaz, que te protegerei dos pesadelos”. E o bom rapaz, ingênuo, cedia devotando olheiras sinceras à terrível companheira.

Microconto nº 3

No tempo de eu menino, a cidade cabia nos meus olhos. Um dia, entretanto, ela dobrou a esquina do Rabo da Gata com trejeito de quem pretende comprar cigarro e desembestou no meio do nada. Ninguém sabe aonde foi ou se continua indo. Mesmo à noite, aqui do 19º andar, a visão se desencontra das luzes que desfilam no espinhaço do infinito. Parece que a cidade se perdeu de mim para ganhar o mundo.

Microconto nº 1

 Surgiu do nada, no meio de uma escadaria onde nunca estive. Parecia quase tão vivido quanto eu. O mesmo sorriso e os mesmos olhos, entretanto. Iluminados! Reconheci na hora, a pesar do tempo enorme. Disse que veio por obra e graça da saudade, mas não podia ficar muito. Desapareceu enquanto me abraçava.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

SABOTAGEM

E assim nasce a boemia...

O sujeito sai de casa de manhã rumo ao trabalho, em pleno feriado de Santa Luzia. 

- Espere! Você não está em Assú?

Tem razão, mas carrego Mossoró aonde vou e não perco o costume do 13 de dezembro nem por cem e uma cocada.

- Hunnn! E agora é religioso? 

Bobagem, a virgem de Siracusa é patrimônio imaterial dos mossoroenses, acima dos credos e das descrenças. 

Enfim, como dito, sai para trabalhar. De repente, minha amiga Fernanda Cristina Cosme de Sá Leitão Soares, colega de escritório de advocacia, poetisa tão grande quanto o próprio nome e ainda por cima imortal que nem o compadre Caio César Muniz, anuncia a provável chegada de Grimaldi Zacarias ao número 912 da rua Sinhazinha Wanderley. 

E chegou mesmo, certeiro igual a poesia fescenina de Sávio Tavares, de violão em punho, sabotando por completo o expediente. Aí, meu bom e minha boa, veio Chico Buarque, saiu Belchior, desceu Cartola, Gal caetaneou-se de acordes e Marisa Monte se balançou para entrar no repertório. 

Grimaldi, para constar, é dos grandes violonistas que conheço, honrando a tradição dos “ança” do Vale do Açu – Carlança, Miltança, Belinhança –, do patamar de Antero, que não é de Quental, mas é José e é dos Santos, do naipe de Mirabô Dantas e Lázaro Amaro, cabras de Areia Branca, sem dizer de Genildo e Geová Costa, esse povo maravilhoso de Grossos, e de Jacson Damasceno, baiano que Natal tomou de Catu. 

Pois bem ou pois mal, precisei beber antes de chegar aos 85 quilos. É a dieta! Prometi que só tomaria uísque novamente quando caísse de 87 para 85. Ou seja, Fernanda e Grimaldi me levaram a queimar o expediente em vez de gordura. 

Okay, Okay, Okay, confesso! A culpa é toda minha. Amanheci com o feriado de Mossoró fervilhando no Assú do meu juízo, cutucando-me as costelas, doido pra debandar largando guardanapos no Dom Pedro, em Gemário, no Bode, no La Lua, no Baronesa, na rodoviária e no Mercado do Peixe, tomando as últimas das últimas com Diá e Canarinho.

Só não completei o percurso imaginado porque, lá pelas não sei quantas, ao levantar as vistas tocadas pela pureza do malte das Terras Altas – pasmem! –, a madrugada estava nua diante deste reles mortal que vos atormenta com escrevinhações tolas.




Flagrei-a sem querer no extado instante em que ela trocava o vestido iluminado de Lua pelas vestes douradas de Sol. Completamente nua, a danada, em luz e sombras, do jeitinho que veio ao mundo. 

Acredita? 

Creia ou não, desviei o olhar para não ser indelicado com a dama que se deixou ver por acidente – suspeito inclusive que Renato Caldas fez também assim ao vislumbrar “os seios da lua amamentando uma estrela” –. Contudo, a brevíssima cena percebida sem maldade já estava tatuada em minhas retinas com pigmentos de deslumbre e decepção. 

É que sempre encarno Florbela Espanca no ódio eterno à luz e na revolta incontida contra a claridade, a não ser a dos olhos de Clarisse.

Ah! Se eu conhecesse o segredo das tintas de Rogério Dias, Laércio Eugênio, Airton Cilon, Túlio Ratto e Gilvan Lopes. Se talvez Aluísio Barros, Marcos Ferreira, Antônio Francisco ou Nildo da Pedra Branca me emprestasse um versinho, o mais piquititinho que fosse. 

Tivesse eu algum talento, a madrugada nua ganharia cores, prosa, verso, como se fosse uma noiva de Habner encantada na eternidade digital do retrato. Todavia, nem palavra seduzo mais a esta altura dos acontecimentos etílicos. As que me restam depois da curva do fundo da garrafa tropeçam nos próprios sentidos tentando acompanhar o redator cujas pegadas não encontram sequer os próprios passos.

E assim morre a crônica.



domingo, 26 de junho de 2022

In vino veritas


Falando sobre enjoos com formalidades, discursos, paletós, gravatas, fardas, fardões e camisolas de dormir, minha sensorte, Clarisse Tavares, interrompe:


- Triste do poder que não pode!


- Annhh! Como assim?, pergunto.


E a resposta, outra dúvida:


- Qual a vantagem de ser um imortal que morre?


Tomei logo um gole de uísque, embora, segundo Plínio, o Velho, a verdade esteja no vinho.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Não tenho nexo nem título

 Bárbara,

lembrei-me agora do poeta, cronista, músico e jornalista Antônio Maria, que teve o disparate de compor aquela música horrorosa “ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém de chama/ de meu amor”.

De lascar!

Puta merda!

Valei-me, Nossa Senhora.!

Bangalô três vezes!

Deus é maior!

Se bem que o cara tomou a mulher de Samuel Wainer, dono do Última Hora, jornal importante da época.

Quando me olho no espelho, as banhas rompendo os umbrais da calça, testa sebenta de gordura, só me lembro do velho Maria, meu cronista predileto.

Deveria lembrar de Eneida, sempre nua. Livre!

Tivesse ao menos o talento dele, mas não.

Um troço, uma dor de cotovelo infernal – volto ao debate sobre a música –, mas o cara era sensacional. Leiam “Diário de Antônio Maria” e “Benditas Sejam as Moças” para conferir. Obrigatório.

Dia qualquer, entrevista de emprego nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, seu conterrâneo do Pernambuco, Chatô, o Rei do Brasil, propôs o teste:

- Escreva sobre Jesus Cristo!

Maria, sem tomar fôlego, respondeu interrogativamente:

- Contra ou a favor?

Foi contratado sem a necessidade de escrever linha sequer.

Quem diabos argumentaria contra Jesus Cristo? Nem eu, ateu, graças a Deus, faria isso em circunstâncias cotidianas.

De vez em quando, convenhamos, até o cristão mais devoto pragueja contra a divindade. Faz parte.

Mas a vida – quem sabe a profissão – coloca o sujeito em circunstâncias desconcertantes que desafiam princípios.

Agora, por exemplo, aparece o diabo de um trabalho de faculdade. Tema desagradável, vago – Porra de pandemia!

E a educação nisso?

Permanecerá como antes ou a experiência dramática valeu necas de pitibiriba?

 Saltamos de 2019 para não sei quando ou qualquer dia a gente pousa na realidade?

Vou tomar dois ou três goles uísques para espantar a insônia e mergulhar nas dúvidas.

Respostas nunca me importaram.

Só delírios me conquistam.

Os seus.

"Desesperada e nua", como disse Chico a seu respeito.

domingo, 27 de março de 2022

BREVE EXERCÍCIO SOBRE ARGUMENTAÇÃO

 A argumentação é capacidade inata do ser humano. Ao nascer, instintivamente, a criança dá sinais claros sobre o que precisa, deseja, gosta, detesta, teme. Argumenta, por meio do choro, do riso, de movimentos corporais, que, embora inconscientes, não deixam de ser recursos lógicos capazes não apenas de levar o adulto à compreensão de algo, mas também de o convencer a respeito de alguma coisa.

Inicia-se ali, nas relações mais instintivas da existência, o exercício cotidiano de uma dialética que acompanha o indivíduo até o fim da vida. E mesmo além da morte, como se dá com grandes pensadores, a exemplo de Sócrates, Platão, Karl Marx, Bakhtin, Foucault, cujas ideias sobrevivem aos limites do corpo físico e se mantêm em latente dialogismo, despertando sentidos, geração a geração.

Percebe-se que a argumentação é essencial à vida em sociedade, em caráter indissociável. Naturalmente, ela ganha complexidade com o desenvolvimento das linguagens que integram a pessoa ao meio, com o apuro de marcas e mecanismos retóricos – silogismos, paradoxos, ironias, metáforas –, não sendo exagero afirmar que a experiência comunitária é um ato argumentativo por excelência.

Tudo o que faço ou deixo de fazer direciona-se ao outro, ao convencimento do outro. Eu, na verdade, arremedando Mário de Sá-Carneiro, “sou qualquer coisa de intermédio... que vai de mim para” a multidão de outros que me constituem sujeito. Mesmo na aparente concordância, eu e esses tantos outros – de mim e de além – estamos em luta infinita para estabilizar ou desconstruir enunciados.



Nas práticas acadêmicas, tais operações cognitivas ganham dupla importância: a da argumentação em si, em pleno uso, trabalhado com rigores intelectuais e certo grau de consciência retórica em prol do convencimento da comunidade científica; e a do ato ou efeito de argumentar enquanto objeto de estudo de diversos campos teóricos, como direito, filosofia, linguística, história, comunicação social.

Isso não significa que os letrados detenham a primazia da razão – a maioria, aliás, não chega à sola da apragata do repentista analfabeto –, até porque, nas democracias, em tese, a todos assiste o direito fundamental de se expressar, sem distinção de qualquer natureza, nos limites da lei, como forma de equilibrar as relações de poder. Na falta do argumento livre e plural, proliferam-se as tiranias.


sábado, 12 de março de 2022

QUALQUER PRAÇA TEM QUATRO PAREDES QUANDO O AMOR É URGENTE

Minha solidariedade aos amantes filmados na varanda do Teatro Dix-huit Rosado, em plena e benfazeja antropofagia cultural, e expostos nas redes antissociais. A mulher, dizem, com maior veemência, realçando a evolução da mentalidade do povo que se gaba de haver alistado a primeira eleitora brasileira.

Sem querer defendê-los, suponho que se imaginavam ocultados pelos tapumes que embelezam o Corredor Cultural da Rio Branco, desprovidos da vontade de ultrajar o pudor de quem publicizou a cena, insensível ao amor improrrogável, ao amor de improviso, que não sabe, não faz hora, mas teima acontecer.

Quiçá enredados por Nelson Rodrigues, percebiam-se invisíveis em “uma selva de epilépticos”; ou desejavam aplicar a tese de Jabor segundo a qual “o sexo sonha com proibições”. Para rompê-las, é claro. Talvez tenham se tornado valencianos: “cão vagabundo” e “onça-pintada” gozando metáfora na realidade.



Alguém dirá que esta crônica de meia pataca exorta a imoralidade, o pecado capital da luxúria e até o crime. Não se trata disso, e sim de expressar a sensação de que a imprudência peculiar dos amadores, se ofende alguém, ofende bem menos que a malícia do voyeur que grava e faz circular cenas de tal ordem.

É, “o Grande Irmão está de olho em você”. Há câmeras por todo lado, em todas as mãos, a serviço do público e do privado. George Orwell teria noção de que o seu Big Brother romperia os limites de Oceânia para dominar o mundo? Seria a realidade, depois de 1984, uma refração vulgar de lentes desfocadas?

Na falta de respostas, só posso dizer que transar em tempos de guerra soa como anúncio de paz, não desaforo, apesar do exibicionismo dos enamorados e da psicose dos espectadores. Além disso, qualquer praça tem quatro paredes quando o amor é urgente. E, se for a do teatro, sexo é pura expressão da arte.