Desde o
advento do bolsonarismo, o brasileiro quebra a cabeça com as concepções de “esquerda”
e “direita”, sem descuidar do “centro” com as suas oscilações pendulares, “pra
lá... para cá... pra lá, pra cá, pra lá”, como na musiquinha infantil. A Folha
de S.Paulo até criou um teste on-line prometendo ajudar a resolver
crises ideológicas de identidade. Usei a ferramenta, mas fiquei encafifado com a
resposta. Segundo o jornal, eu seria de “centro-esquerda”: esquerda na pauta de
costumes e liberal em temas econômicos.
Faz algumas
semanas – embora obstinado a comprar apenas livros digitais, para fazer jus ao
investimento no Kindle –, adquiri, em papel, Direita e Esquerda – razões e
significados de uma distinção política, de Noberto Bobbio. Finalizada a
leitura, apaziguei-me. A inquietação tem razão de ser, e eu, que nem entendo do
assunto, estava certo: não existem dois lados definidos, delimitados em bolhas homogêneas.
São várias as direitas e esquerdas, todas flutuantes no tempo e no espaço.
Extrema esquerda,
esquerda moderada, centro-esquerda, liberais socialistas, progressistas,
anarquistas, comunistas, socialistas, esquerda autoritária. Extrema direita,
direita moderada, centro-direita, conservadorismo, teocracia, fascismo, liberalismo,
nazismo, direita democrata. Do mesmo modo, as bandeiras partidárias, muito além
da simples alteração do nome – Arena, PDS, PFL, Democratas, União Brasil –
tremulam ao sabor dos ventos definidores de suas pautas no tabuleiro do jogo do
poder.
Quando pesquisei
sobre o perfil dos proprietários do O Mossoroense, na primeira fase do
periódico – 1871 a 1876 –, observei que eles eram filiados ao Partido Liberal,
considerado vanguardista em oposição ao Partido Conservador. O PL assumia o
papel da esquerda no século XIX, ao defender a abolição da escravatura, as
eleições diretas, as liberdades religiosa, intelectual, política e individual. Agora,
do lado de baixo do Equador, a mesma agremiação é associada ao extremo conservadorismo.
Lembrei-me
agora do meu flerte com o comunismo. Foi por volta dos 11 anos de idade, quando
o Brasil ainda vivia a ditadura iniciada com o golpe de 1964. O general João
Batista Figueiredo presidia a Nação. Havia dois partidos principais, PDS e PMDB,
que, em Mossoró, todavia, desdobravam-se em quatro. De um lado, o PDS 1 de
Tarcísio Maia e o PDS 2 de meu avô Vingt Rosado. Do outro, o PMDB que detestava
os Rosados e o PMDB que, em agradecimento a eles pelo “Voto Camarão”, defendia
o “Voto Cinturão”.
Devo explicar
essa história de “Camarão” e “Cinturão” antes de retornar ao comunismo? Sim? Pois
vamos lá! No pleito de 1982, o voto era vinculado, ou seja, o eleitor só podia
sufragar candidatos do mesmo partido, dispostos assim na chapa eleitoral:
governador, senador, prefeito, deputado federal, deputado estadual e vereador.
Tentando a reeleição a deputado federal, Vingt queria, mas não podia pedir voto
para os candidatos a governador e senador do PMDB, pois a mistura anularia a
cédula.
![]() |
Ilustração gerada pelo Gemini. |
A saída foi pedir o voto em branco para governador e senador. Como tais cargos estavam na cabeça da lista, surgiu o apelido “Voto Camarão”. Para constar, geralmente, arranca-se e não se come a cabeça desse saboroso crustáceo. Figueiredo, inclusive, foi a Mossoró para dizer que comeria camarão com cabeça e tudo. Não dobrou Vingt. Em contrapartida, os peemedebistas agradecidos pediam o “Voto Cinturão”, o sufrágio em branco para prefeito, cargo situado na cintura da cédula eleitoral.
De volta ao
comunismo. Justamente naquela época, contei ao meu pai, Laíre Rosado, que decidira
ser comunista, influenciado sabe-se lá por quem. Com a tranquilidade que lhe é
peculiar, ele se dirigiu à prateleira – estávamos na biblioteca –, arrastou um
livro da estante e me entregou dizendo: “Leia, aprenda o que é comunismo para
ser um comunista consciente”. Não vou fingir costume. Entendi bulhufas! E,
pior: nem me lembro do título. Só sei que era fininho e tinha na capa uma foto
de Karl Marx.
Descobri,
depois, que papai tinha a mania de difundir “obras subversivas”. Chegou a
responder a um Inquérito Policial Militar (IPM) no 16º Batalhão de Infantaria
Motorizado de Natal (16 RI), sob a acusação quase verdadeira de disseminar
literatura de países da Cortina de Ferro no RN. Digo “quase” porque a intimação
do Exército para esclarecer os fatos antecedeu – e frustrou – a chegada de livros
que ele pedira, por carta, a embaixadas de vários países, sem observar se os governos
eram de esquerda ou de direita.
Luiz Alves
Neto, ex-preso político cuja companheira, Anatália Melo Alves, foi “suicidada” no
DOPS do Pernambuco, contou-me que o seu ingresso no comunismo se deu, entre
outros fatores, pela leitura de livros que Laíre lhe doou. As obras proibidas
já não existem. Dona Iracema, uma das irmãs de Lulu, disse-me, em determinada ocasião,
que enterrou tudo no quintal de casa ao receber a notícia de que o irmão
militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) havia sido
capturado.
Não aderi ao
comunismo, apesar do apreço pelas leituras marxistas, incluindo o próprio Marx,
Foucault e Bakhtin. Aliás, nunca desejei filiação partidária, ainda menos agora,
diante da volatilidade do pensamento ideológico ocidental. Desde quando
Bolsonaro reacendeu o orgulho da extrema direita, no Brasil, sufocando as
outras direitas, lançaram-se luzes sobre a fragmentariedade do campo político.
Assim, dizer-se esquerda ou direita soa ingênuo na liquidez da modernidade. Qual
esquerda? Qual direita?
Se eu tivesse
que me autodeclarar, dir-me-ia de esquerda moderada, aquela que admite a
economia de mercado, sem, contudo, descuidar dos direitos dos trabalhadores e
dos consumidores; que promove o bem-estar social por meio de políticas
afirmativas, da defesa do meio ambiente, do provimento das necessidades básicas
do ser humano; que faz justiça fiscal, a partir de políticas tributárias
equitativas; que diverge dentro das leis e disputa o poder pelas vias
democráticas.
A Folha quase acerta. Perdeu o gol por não perceber que, entre as barras laterais da trave existem fatores aquém e além do goleiro. Bem assim, nas páginas da história, não há somente a mancha de impressão entre as margens do papel. Há textos, subtextos, imagens. Gritos! Silêncios... Discursos, interdiscursos. Há subjetividades em trânsito por linhas e entrelinhas capazes de se refletir e se refratar, de convergir e de se opor, de morrer e de renascer – do nada como a onda autoritária que aterroriza o mundo democrático.
---------------------
1) https://www1.folha.uol.com.br/poder/teste-esquerda-direita-centro/
2) https://especiais.gazetadopovo.com.br/quiz-politico-ideologico/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=dinamico&gad_source=1&gad_campaignid=20802200119&gbraid=0AAAAADlVTPeofzII6LYkj2-0wYz5Ono99&gclid=CjwKCAjwobnGBhBNEiwAu2mpFCOHdC3JIZRqir4tes-A2iKXlS-RxWYdE2j4roCIUyiSbciPCr_KXRoCQ6kQAvD_BwE
3) https://infograficos.oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024-esquerda-centro-ou-direita-descubra-seu-perfil-ideologico.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário