Minha personalidade é um tanto
complexa. Mais do que a da maioria dos seres ditos normais, menos do que a de
alguns camaradas. De acordo com Cid Filho, se o sujeito é meu amigo, com
certeza é diferenciado, pervertendo o ditado segundo o qual os opostos se
atraem. “Papai só tem amigo doido. Igual a ele!”, explica. Do quanto sei de
mim, assumo alguns traços que reforçam esse pensamento, como a aversão
instantânea a todo e qualquer modismo ou imposição.
Uma das manifestações desse
transtorno, algo associado a “ser do contra”, conforme Clarisse Tavares, é não ler
best-sellers por iniciativa própria – às vezes somos obrigados –. Se
dizem que certo livro é “leitura obrigatória”, olhar a capa já me dá calafrios.
Não leio e até desvio o olhar da capa, nas livrarias, pelo menos enquanto todo
mundo louva a publicação querendo transparecer intelectualidade, muitos
baseados apenas em resumos encontrados na Internet.
Em razão disso, passei anos
dedicado a publicações do Rio Grande do Norte, em especial poetas e prosadores
não incluídos entre os cânones pelos donos da cultura potiguar. Não vou
declinar nomes temendo transformar esta crônica em uma lista incompleta. Seriam
muitos! Somente da Coleção Mossoroense, uma multidão. Vingt-un Rosado, seu
fundador e editor, conversando comigo nos anos 1990, calculou haver lançado
mais de 400 escritores até aquela década.
Quando a barreira do asco se
quebra – sempre por acidente, nunca para surfar na onda – a experiência pode
ser boa. Semana passada, ao me deitar depois do almoço, na casa de meus pais,
onde me hospedo em Mossoró, vi, através do vidro da prateleira, o volume II dos
Contos Completos, de Liev Tolstói. Dos Russos, havia até então lido
Mikhail Bakhtin, além de alguma coisa de Dostoiévski, justamente para
compreender melhor algumas conclusões daquele sobre este.
A primeira impressão, espanto, por
verificar que Tolstói escreve de forma incrivelmente simples, sem afetações
estilísticas, e aborda temas comuns da sociedade em que vivia, pelo menos na
tradução de Rubens Figueiredo. Intrigado, baixei o volume I da obra, no Kindle,
para começar do começo e investigar por qual motivo algo com passagens até
singelas está entre os clássicos das letras mundiais, tendo em vista o caráter
elitista e excludente da crítica.
Em tempo, eu conhecia textos
esparsos dele, vistos em coletâneas. No Livro das Virtudes, William J.
Bennett apresenta De Quanta Terra um Homem Precisa?; Onde Está Deus,
Está o Amor; Meninas Mais Sábias do que Homens; Iliás; Três
Perguntas e Oque Rege os Homens, para ilustrar valores como honestidade,
disciplina, compaixão, amizade e trabalho. Sabia ainda de uma versão de ARoupa Nova do Rei, com variações no tocante ao conto homônimo de Hans
Christian Andersen.
Muito me agradou, ampliando o
horizonte da leitura, a descoberta de que Tolstói optou pelo conto, por ser essa
a forma ideal para dizer a cultura das ruas, para exprimir a oralidade de povos
sem acesso à escrita. Revisitando a história, vê-se que o gênero foi escolhido –
não por acaso – como mecanismo de resistência à elite Russa, que, no século
XIX, tentava sufocar expressões regionais de minorias e de grupos minorizados, impondo
a cultura europeia como superior.
Nós brasileiros sofremos a mesma
ditadura intelectualóide, de 1500 à contemporaneidade, com o sufocamento e o apagamento
sistemático de usos, práticas, hábitos, costumes, das comunidades originárias. O
mesmo fenômeno atinge a população negra, que supera 50% da demografia nacional,
somados os que se declaram pretos e os que se apresentam como pardos, bem como
os artistas das periferias do País, dos Estados e das cidades.
Esse processo de subalternização,
a propósito, faz parte das tecnologias do racismo e funciona como estratégia de
controle social. Embora não exista, no mundo, instrumento ou técnica capaz de
determinar a superioridade da palavra escrita sobre a oralidade, do erudito
sobre o popular, de uma etnia sobre outra, da região “x” sobre o lugar “y”, do
doutor sobre o iletrado, há quem se enxergue acima dos demais pela origem e
pela “boa formação”.
Nada contra os gringos. Sou fã de
vários deles. Agora mesmo, conforme anunciado, estou encantando por um Russo,
ainda por cima tentando me adaptar ao “papel digital”. Devemos, sim, ler
clássicos de “Oropa, França e Bahia”, mas sem complexo de vira-lata. No Brasil,
de ponta a ponta, existe literatura de qualidade; e, no Estado de Fabião das
Queimadas e de Nildo da Pedra Branca, há vida inteligente além da Reta Tabajara,
das faculdades e das academias.
Tais certezas se fortalecem no
encontro fortuito com Tolstói, graças ao livro que papai deixou na prateleira
antes de sair para trabalhar. Contos Completos prova que o universal nasce
de fragmentos do cotidiano e que o grande escritor é aquele capaz de traduzir a
alma da sua gente e do seu lugar, com sim-pli-ci-da-de, levando-me à
constatação – sem comparativos – de que acertei ao me dedicar a autores que me
contam sobre mim escrevendo sobre nós.
Terminei a última crônica referindo-me brevemente a Pedro Neto, o Netinho, dono do Peter’s Bar, no Centro de Tibau, onde “encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga”. Menos de uma linha, como se percebe, mas o bastante para chamar a atenção de leitores atentos – e curiosos – que não param de me cobrar maiores informações sobre o dito cujo.
Pensando bem, é injusto – e até egoísta – mantê-lo escondido como detalhe de um texto qualquer. Por ser um cara sensacional e pelo tempo que ele, a mulher e os filhos suportam a mim e a outras figuras exóticas que se abancam no seu território para comer, beber e jogar conversa fora durante horas e horas, sem se preocupar com inconveniências etílicas, Netinho merece crônica exclusiva.
Somos amigos há tantos anos que nem me lembro como começou. De nossas conversas, envolvendo interlocutores do naipe de Cadu, o homem da supermemória, e de Caga na Lata, o poliglota, muitas histórias acabaram nas páginas do O Mossoroense. Falando nisso, também não faltam jornalistas no Peter’s, a exemplo de Ciro Ney e Sérgio Oliveira, sem dizer do fotógrafo das estrelas, Ricardo Lopes.
Certa feita, por ironia do destino, esbarraram por lá, o artista plástico, poeta, piloto de parapente e atleta de giroscópio, Laércio Eugênio, e sua musa, empresária e botadora de juízo, Arlete Cavalcante. Estavam cansados depois da longa caminhada de mais de duas horas, de Areias Alvas à Pedra do Ceará e da Pedra do Ceará ao Centro de Tibau, pela subida de doutor Rosado Cantídio.
Quando entraram na Rua do Tubarão, alguns metros depois da igreja, deram de cara com Netinho, que abriu logo o sorriso e, com a simpatia de sempre, puxou as cadeiras a fim de que se sentassem. Laércio e Arlete não o conheciam e, para completar, tinham deixado o dinheiro na casa de João Batista, o psiquiatra de Jesus, que os hospedava. Mesmo assim, Laércio perguntou se podia beber uma cerveja. Fiado.
Uma cerveja que nada! Netinho escancarou as portas do bar, reativou a cozinha. Foi cerveja, água, pizza, refrigerante, do final da tarde até aproximadamente a meia-noite. Como não havia mais táxis, pela proximidade da madrugada, o dono do bar ainda viabilizou – e avalizou – dois mototáxis para levar o casal até Areia Alvas, longe feito a bexiga taboca, onde os psiquiatras se refugiam.
Ao se despedirem, impressionados, Laércio e Arlete, cada qual no seu mototáxi, agradeceram pela confiança naqueles “dois estranhos”, e a resposta veio na bucha: – Desconhecidos, não! Você é Laércio Eugênio, artista plástico, amigo de Cid Augusto. E amigo de Cid é meu amigo. Enfim, a viagem deu certo. Os mototaxistas foram e voltaram da corrida pagos e com o pagamento da pendura.
Netinho é o cara! Gentil, simpático, solidário, amigo dos amigos e dos amigos dos amigos. Não sai do sério por nada neste mundo, nem por cem e uma cocada. Parece o Buda nos jardins de Jetavana. O mundo desaba e ele, impávido, sentado na calçada oposta à do Peter’s, em uma cadeira dobrável virada para trás, para que o encosto sirva de escora para os seus braços longos.
Às vezes, nem chego ao bar, sento-me diretamente na calçada, do outro lado da rua, e a conversa flui sem roteiros, sobre tudo, sobre nada. Ou quase tudo. Ou quase nada. De repente, ele puxa religião, filosofia, literatura, o que der na telha. Só não tratamos de política, a não ser as trivialidades da temática. Pedro é um sujeito culto, virtude que se amplia em sua enorme humildade.
Quem passa pela rua do Brisa, de carro, moto, bicicleta, a pé, acena, grita, cumprimenta com alegria. A resposta é sempre um sorriso sereno e um gesto simpático com as mãos espalmadas para o alto. Conhece as pessoas pelo nome, qualidade que invejo. E eu ali de lado, morrendo de alegria de ser amigo dessa figura. Netinho é, sem dúvida, o melhor de Tibau, o dono da crônica.
Ao fim e ao cabo – chique, não é?... “ao fim e ao cabo”... aprendi com Dorian Jorge Freire –, um apelo do fundo do coração: pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas, não se aproveite destas informações privilegiadas para fazer vale em meu nome no Peter’s Bar. Minha triste condição de “liso estável”, como diria Carlos Santos, não me permite bancar nada além do meu uísque barato.
Todos os anos, do final de dezembro a fevereiro ou março, a depender do Carnaval e do calendário escolar, estávamos aqui, em Tibau, onde Rio Grande do Norte e Ceará se misturam como se fossem o mesmo estado de espírito e de coisas. Para ser sincero, não gostava, vinha à força. Nada específico contra o lugarejo abençoado pela natureza que vi se transformar em cidade, embora lavar as lentes dos óculos de 30 em 30 minutos, por causa da maresia, sucedesse como fator relevante. O problema, a bem da verdade, é que, além da preferência por sertão, as noites longas e escuras do litoral me provocavam medo.
Contribuía para o assombro do menino frouxo, o cenário da casa dos avós, imóvel rústico de taipa rebocada com cal, que não mais existe, a não ser na memória, em fragmentos remendados pela imaginação. De qualquer maneira, vejo agora, em flashs, o alpendre voltado para o Atlântico, as portas e janelas amarelas, a sala em “T”, o banheiro, os quartos, o pátio espremido entre a saída dos fundos e o paredão úmido enlodado pelas águas das vertentes que jorravam sem parar. Sucumbiu em 1985, devastada pelas areias coloridas que desabaram em razão das chuvas torrenciais daquele ano.
Como se percebe, ficávamos entre o morro e o mar, o que já dava sensação de isolamento, e isso nas imediações da Pedra da Sereia, formação argilosa dotada de uma gruta esculpida pela maré e pela maré destruída ao longo do tempo. Reza a lenda que nela coabitavam duas criaturas míticas: uma jovem lindíssima que, em noites de lua cheia, seduzia homens e os arrastava até lá; e uma fera acorrentada que devorava os tais incautos. Nunca tive o privilégio de esbarrar com a moça nem o desprazer de encarar o monstro. Aliás, os dois eram um só nos meus pesadelos seriados, dignos de produção da Netflix.
À noite, o som revolto das ondas, o balé contemporâneo das dunas, a sombra vacilante dos coqueiros, a penumbra contemplativa e os assobios fantasmagóricos do vento nutriam-me os pavores, sem dizer do repertório de lendas contadas por Ananias e Tidó, pescadores de outras eras. Acrescento às histórias deles, as narrativas de Mazinha, funcionária de minha avó, excêntrica a ponto de convidar a mim, um menino com menos de 10 anos, para ser padrinho do filho dela. É da autoria da comadre, com a melhor intenção de nos aquietar, a fábula da sapa gigante que morava no quintal e se alimentava de crianças traquinas.
Medroso, mas curioso, não me furtava, junto a outros meninos e meninas, de frequentar sessões mediúnicas clandestinas promovidas por uma senhora que trabalhava em um lar próximo. Sentávamos em círculo, no chão frio de cimento queimado, enquanto ela abria os trabalhos rezando o Salve Rainha. As almas chegavam e, cordialmente, respondiam às perguntas formuladas, movendo um copo de vidro posto no solo com a boca para baixo. Certa feita, agora em nosso alpendre, esteve uma vidente que revelou a presença iluminada de Cid Augusto, tio materno falecido na infância, que me empresta o nome.
Não poderia faltar neste repertório, o “grito” da Fazenda Trevas, propriedade rural situada na região do cemitério e do campo de pouso, à época pertencente a Iogo Rosado, primo de saudosa memória a quem eu chamava de tio, por força do afeto. Pai de Ioguinho, amigo que não vejo há tempos, embora o tenha sempre à vista pelos olhos do bem-querer, Iogão costumava levar-nos até a propriedade para caçadas e para testemunhar, auditivamente, o “grito” sinistro que rasgava as madrugadas silenciosas. Especula-se que o fenômeno era humano, produzido pelo destemido vaqueiro Sansão.
Nestes 50 e poucos anos, Tibau mudou, perdeu morros, vertentes, personagens. A julgar pela ausência das jangadas e dos pescadores, o mar não está mais para peixe. Talvez seja o preço da urbanização, do progresso. Eu também mudei. Hoje só tenho medo de gente viva e percebo que os pesadelos da infância eram de certo modo confortáveis diante das ameaças reais da vida adulta. Volto pouco aqui, especialmente na alta estação, época barulhenta, de trânsito caótico, de pessoas nervosas, na qual só encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga, no Peter’s Bar, do meu bom e velho camarada Netinho.
Nem sei por onde começar. Terminar, muito menos. É quase sempre desse jeito.
Às vezes surge de repente, pronto e acabado. Na maioria, contudo, revela-se pouco a pouco, depois de horas, horas... e mais tantas horas em que vou pensando, pensando... e mais pensando na mesmíssima coisa, obsessivamente, até que ela se fragmente.
Não diria em pontos, como nas retículas aplicadas – antes da informática – nas fotografias a serem impressas nos jornais e nas revistas de papel, mas em lascas, em pedacinhos disformes com elementos imperceptíveis a olho nu, sem as lentes aguçadas dos sentidos.
A depender da luz e do ângulo, aliás, e a partir de estilhaços de matéria qualquer, é possível ouvir o som das cores, sentir a textura dos alumbramentos, descrever a anatomia dos cheiros, conhecer o sabor dos substantivos e enxergar o mundo a partir de evidências ordinárias do vazio.
O que me interessa, por assim dizer, não é a revelação de universos, é a extraordinária simplicidade do detalhe, morada dos deuses e dos diabos.
Não é também a metáfora da árvore frondosa, completa, com o aconchego da sombra e a delícia dos frutos. O que me inspira é a farpa debaixo da unha, é o desconforto daquela dorzinha tesuda de se sentir que estimula o sujeito a cutucar o minúsculo ferimento a fim de extrair dele o corpo estranho. E para que doa!
Imagem gerada pelo ChatGPT
Esse corpo estranho, incômodo, ambíguo, é o objeto da minha relação íntima com a palavra. Então, que outros se encarreguem de explicar, de construir narrativas orgânicas, bem-procedidas, com introdução, desenvolvimento e conclusão, porque eu, por mania ou de preguiça, ignoro paralelismos, desprezo purismos e, sem nenhum pudor, trepo com fonemas roucos, sílabas esmigalhadas e expressões simplórias, troços encontrados na linguagem das ruas que não servem à ao redator erudito.
Além de bizarrices tais, arrisco-me em traços que nunca deveriam ser postos no papel, fazendo-o a partir de um tempo e de um lugar aos quais me transporto, sem aviso prévio de mim mesmo e sem óculos especiais, pelo simples fato de que a nitidez me aborrece.
Gosto de imaginar um quê de beleza nas curvas desajeitadas de entrelinhas opacas, de me confundir com o leito do rio de águas barrentas do vernáculo, de me perceber na imperfeição das criaturas, dos atos, dos ditos, dos escritos, dos silenciamentos, acrescentando-lhes, por acidente ou a propósito, pigmentos estéticos que me interpretem.
E dessa maneira irresponsável, um tanto quanto torta, um tanto quanto livre, leve e solta, rebelada contra os falares suntuosos e as escritas magnânimas do Grande Intelectual – o Peido de Todos os Cus –, é que me dou ao luxo de desafiar a paciência do leitor com banalidades, brincando de dizer tudo divagando sobre nada.
A arte imita a vida ou a vida
imita arte? Dúvida antiga, sem resposta definitiva, talvez pelo fato de as duas
perspectivas estarem corretas. Desconfio que a arte imita a vida porque, em
maior ou menor proporção, é da realidade que o artista alimenta a obra; e que a
vida imita arte porque a obra influencia dinâmicas pessoais e sociais.
Ocorre que a arte também imita a
arte. A Netflix, por exemplo, acaba de lançar a série Cem Anos de Solidão,
inspirada no romance homônimo de Gabriel Garcia Márquez. Há algumas semanas,
assisti ao filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, inspirado
no livro em que Marcelo Rubens Paiva conta o drama vivido por sua família na
Ditadura Militar de 1964, que prendeu e matou o pai dele, ex-deputado Rubens
Paiva.
Lembrei-me também de obras, como
diria o professor Pasquale Cipro Neto, que parecem escritas amanhã, a começar
por 1984, de George Orwell. Nessa distopia, de 1948, o autor britânico
disseca e descreve relações de poder que se repetem – e se reinventam – ao
longo da história, antecipando o debate sobre vigilância em massa e manipulação
da realidade, chamada por muitos de pós-verdade.
Falando em pós-verdade, quem
poderia esquecer Matrix? Lançado em 1999 pela Warner Bros, sob direção
dos irmãos Wachowski – agora irmãs Wachowski –, o filme constrói dois cenários:
o da realidade física, sobre a qual apenas revolucionários têm conhecimento; e
o da realidade virtual, em que humanos são fontes energéticas “cultivadas” por
máquinas computacionais, vivendo na ilusão dos algoritmos.
Há muito vivemos 1984,
ultravigiados e megamonitorados por satélites, câmeras, torres, celulares,
relógios, anéis, óculos. Para desvendar alguém, nos íntimos e ínfimos detalhes,
não precisa consultar Walter Mercado nem Mãe Diná, a cartomante de Machado de
Assis ou o Oráculo de Delfos, basta apropriar-se do smartphone dessa
pessoa, por míseros minutos. As big techs, a propósito, conhecem-nos bem mais
que nós mesmos pensamos nos conhecer.
Agora, as redes sociais digitais e
a inteligência artificial nos arrastam para o centro de Matrix, onde nos conservam
anestesiados, catatônicos. Simultaneamente, criaturas cibernéticas nos
alimentam de dopamina enquanto sugam o nosso foco e nos convertem em algarismos
binários. Digitalizados, podemos ser o que quisermos – bonitos, inteligentes, talentosos,
bem-sucedidos, felizes –, graças a filtros, editores e mecanismos de arquitetura
de aprendizado profundo, da linha do ChatGPT.
Nessa onda, desavisados e deslumbrados
acabam se transformando em arremedos grosseiros do “eu” que gostariam de ser, que
jamais seriam no mundo físico. Ouço até falar de gente que virou avatar e não
consegue se desvirar em gente. É Matrix, o caminho irreversível da desumanidade.
Por isso, cuidado até com o que lê agora, pois já não sei se quem escreve para
você sou eu ou alguém inventado de mim.
Pedra é poesia... poesia é pedra... pedra, matéria de poesia... pedra... poema... poesia à flor da pedra.... A pedra deita e rola na imaginação dos poetas. Tal percepção me chega em meio à leitura da monografia do meu amigo e colega de curso de Letras, Marcos Fernandes, muito bem orientada pelo professor Gustavo Tanus.
O trabalho de Marcos, A pedra que vive e grita: considerações literárias sobre a poesia de Ana Martins Marques em “risque esta palavra”, analisa, como se percebe, poemas de um dos livros dessa poeta – ou poetisa, como queira – de Belo Horizonte/MG, vencedora do Prêmio Jabuti de 2016 e finalista de 2024.
Os versos inaugurais do livro da autora mineira não têm exatamente um título, têm um vocativo. Começa com “Meu amigo,” e prossegue:
quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
[...]
Incrível, a segunda estrofe, composta por duas metáforas sensacionais enfileiradas em dois versos bem curtinhos. Quem já viu “morrer uma pedra” ou “um cachorro enforcar-se/ numa nesga de sol”? Nunca vi, e digo isso não com desconfiança das imagens. É inveja, mesmo, de quem consegue alcançar tamanho alumbramento.
Interessante a percepção da poesia, o que a torna mágica, especial para cada um, a seu modo. Marcos interpretou, na pedra, o “mundo sólido, externo, através das palavras”. Na minha leitura, a pedra é a poeta, talvez diante do espelho, e até o poema que se anima e desfalece, como lá na frente ela própria declara: “um poema não é mais/ do que uma pedra que grita”.
Em verdade, tudo é matéria de poesia e ganha o sentido que valha à hora e ao lugar do leitor. Basta ter olhos de enxergar linguagens. Por isso, não importa o que me vem à mente, até porque a minha cabeça é cheia de vadiagens. Além disso, você certamente terá outra impressão ao ler Ana Marques, diferente de mim e de Marcos, e recomendo que o faça urgentemente. Eu o farei.
Enquanto não me chega às mãos o livro, acode-me a pedra que deita e rola na poesia. Drummond botou uma pedra no meio do caminho, diante das “retinas tão fatigadas” de todos nós. Em João Cabral, a pedra é palavra, “A educação pela pedra”, o idioma em que se expressa o sertanejo. No cancioneiro de Jobim, está nas Águas de Março. Eu mesmo, cronista menor, poeta de meia pataca, já tratei do romance entre a pedra e o mar.
Espere! Acaba de me ocorrer uma memória prosaica que, embora fuja ao sentido deste conjunto mal-amanhado de palavras, conto para não desperdiçar a lembrança. Coisa da infância. É que essa conversa toda sobre pedra me remete, reflexamente, ao episódio de Charlie Brown em que ele e outras crianças, incluindo a Garotinha Ruiva, amor platônico do personagem, saem para pedir doces no Halloween. Ao final, todos conferem as sacolas e, alegres, dizem o que receberam – bombons, chocolates... –, até chegar a vez de Charlie Brown, que responde desconsolado: “... E eu, uma pedra!”.
De agora em diante, eu, que já ganhei tantas pedras e pedradas, vindo a receber mais uma ou outra, prometo me vingar matando-a em um poema.
As ditaduras são tão estúpidas
quanto as pessoas que, desavisadas, quero crer, suplicam por ditaduras. Não me
refiro apenas aos fanáticos da extrema direita, porque a tirania tem vários rótulos
e rostos. Portanto, não perca seu precioso tempo me questionando sobre Cuba,
Venezuela, China, Coreia do Norte. Sou contra toda e qualquer forma de governo
despótico, independentemente do rótulo.
Mas o meu objetivo hoje não é
desenvolver raciocínio amplo sobre a temática. Quero apenas contar uma história
sobre a censura, esse instrumento comum aos regimes ditatoriais empregado no
controle da expressão do pensamento, das artes, das comunicações, a partir de
pressupostos morais e ideológicos convenientes aos dominadores no processo de
dominação.
A depender da alienação do
censor, os critérios podem ser personalíssimos, a exemplo do parâmetro adotado pelo
sujeito que vetou a exibição do filme Como
era gostoso o meu francês, de Nelson
Pereira dos Santos. Soube do curioso episódio ocorrido em 1971, ano do meu
nascimento, faz apenas alguns dias. E quem me falou sobre ele foi o professor de
História e pesquisador Marcílio Lima Falcão.
O assunto me interessou porque venho há meses estudando a poesia
fescenina de Assú/RN e, de repente, já na conclusão da pesquisa, deu-me o estalo
de investigar possíveis interferências do regime militar brasileiro em tais
obras. Fescenino, vale dizer, é gênero poético que remonta à Antiguidade
Clássica, caracterizado pelo uso do escárnio, do maldizer, da ironia e da palavra
obscena.
O problema do filme não era o uso de palavrões nem a existência de
críticas ao sistema, mas a exploração da nudez, considerando que a trama,
baseada no diário do alemão Hans Staden, passa-se em uma aldeia tupinambá. Na
verdade, não exatamente a nudez, e sim o detalhe que se revelou a partir dela:
o artista que fazia o francês teria o pênis bem maior do que os dos intérpretes
dos nossos índios.
O caso está registrado no artigo Censura
e ditadura no Brasil, do golpe à transição democrática, 1964-1988, de
Marcelo Ridenti, professor de sociologia na Unicamp, na Universidade Columbia,
Nova York, e na Universidade de Paris 3. A narrativa é creditada por Ridenti ao
cineasta Denoy de Oliveira, que, em meio às tratativas para liberar a exibição
da película, ouviu o censor dizer, aos berros:
“É um filme que, porra, deixa a
gente, brasileiro, numa posição muito inferior. Aparece aquele francês com um
puta pauzão e os índios brasileiros todos com uns pintinhos pequenininhos”.
Engraçado é que a fixação pelo
tamanho das coisas é pensamento constante dessa gente. Em 2019, um certo
capitão – que não é o Rodrigo – ao posar para foto com um rapaz de aspecto
asiático, perguntou “tudo pequenininho aí?”, enquanto simulava a medida do
pênis do jovem com o polegar e o indicador ligeiramente afastados. Dias depois, declarou em coletiva que, no
Japão, “tudo é miniatura”.
Se tamanho for mesmo documento,
os amantes da ditadura envolvidos na tentativa de golpe de Estado ocorrida em
2022 estão lascados. O relatório da Polícia Federal, que detalha inclusive os
planos dos assassinatos de Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Morais, tem surpreendentes
884 páginas, dimensão capaz de humilhar o “puta pauzão” do francês e preservar
a reputação nacional.
Parei de
escrever sobre os mortos. Já o fiz muitas vezes, quase como dever íntimo,
quando partia alguém querido, admirado, importante, mas jurei – de pés juntos,
mãos postas e olhos rútilos – nunca mais fazê-lo. Há mortos que nos consomem
palavra por palavra, e talvez eu seja uma vítima da consumação do silêncio.
Aconteceu assim
quando minha avó Lourdinha morreu. Fiquei horas contemplando a tela do
computador, e nada. Parti para a velha fórmula caneta/papel, que igualmente se
revelou inútil. Pressenti a tristeza escalar a garganta e engolir o verbo no
goto seco. Meu texto nunca seria digno do amor que devotamos um ao outro.
Dona
Lourdes era uma dádiva, a pessoa mais linda, o coração mais puro, a alma mais
iluminada. Dizer a respeito dela seria trabalho de ourives cravejando diamantes
em frases de ouro e prata. Melhor, de jardineiro transformando o deserto de
luto e dor em canteiros nos quais a saudade ganha novos sentidos e perfumes.
Não me
sinto ao nível de tal responsabilidade. Por isso, desisti. De toda forma, preciso
mencionar algo talvez desconfortável de se ler: os mortos estão mortos,
despidos da carne e dos traços narcísicos da personalidade humana. Estão
finalmente livres da ambição, do ego, da vaidade, e fora do alcance etéreo do discurso.
Como diz
Drummond, “Na ambígua intimidade/ que nos concedem/ podemos andar nus/ diante
de seus retratos”. Afinal de contas, eles “não reprovam nem sorriem/ como se
neles a nudez fosse maior”. Quando eu morrer, poeta, espero que me permitam
desfrutar dessa nudez invisível e do silêncio oblíquo das entrelinhas.
No Centro, toda cidade é igual.
Lojas sedutoras, vendedores nervosos, metas intangíveis, um emaranhado de
carros motos carroças bicicletas buzinas freios pedestres gritos pregões... A
moça atravessa a rua interrompendo o tráfego e a narrativa. Por vontade ou inveja,
todos olham. Eu só observo enquanto faço a ponta do lápis... Tanta gente
dividida entre o necessário e o sonho de consumo, entre a pinga no espetinho que
oferece carnes duvidosas e o suco com bolo de chocolate na lanchonete grã-fina.
Alguns pedem, tantos negam; uns comem e bebem, outros dão o goto em seco.
Agora, às 11h16, há multidões vazias na calçada da principal. Mais tarde, silêncios
engolirão esquinas e becos, nos quais anoitecem utopias cobertas de trapos e
papelões. Que loucura! Tudo começa. E acaba. E recomeça. E recomeça e acaba e
começa naquele lugar estranho. Enfim, não trago novidade. Quem vive o Centro,
onde me desencontro aqui e acolá, sabe como é viver o paradoxo em si.
Caminhava,
apesar da preguiça e do enfado. Caminhava assim mesmo, em busca não se sabia de
quê. O médico mandou. Parava de vez em quando, não pelo desânimo, mas para
analisar sombras. É que fazia sol na perpendicular, deformando corpos opacos ao
projetá-los no mosaico desgastado da praça.
As
pessoas que arrodeavam o obelisco eram longilíneas, tinham pernas finas e
cabeças enormes. Isso, todavia, se observadas no sentido Oeste/Leste. De Leste
para Oeste, encolhiam, engordavam, e até se espezinhavam na execução de um
ritual masoquista de autoflagelo corporal. De passo a passo.
Os
bancos, embora de ferro e madeira, recriavam imagens confusas, ora fixas, ora
vacilantes, que oscilavam pela força do mormaço que se levantava cerca de dois
palmos do chão e dava de açoite nos olhos. E isso apesar de a tarde já nutrir lascívias
pela noite que saciaria seus desejos dentro em breve.
Árvores
se aventuravam na paisagem, incluindo quatro carnaubeiras que mal se faziam perceber
na sepultura da luz, a não ser pelo arrepio das copas arredondadas; e se dispersavam
nos canteiros a chafurdar no barro onde a relva desgrenhada e rala, de algum
jeito, também fabricava as próprias résteas.
Prédios
derramados pelo asfalto tremiam no vácuo de carros, motos, bicicletas,
carroças, transeuntes. Sem saber, cada um deles, até o cachorro que mijava no vulto
desnutrido do poste, contribuía para o espetáculo das formas, em que as coisas
não são as coisas, são outras coisas. São o que se imaginar.
O
casarão da esquina se retraía aos poucos, ensimesmando-se meio de banda. Ia se
engolindo. Logo, o bêbado sem-teto adormecido nos alicerces da mansão secular,
no usufruto da silhueta disforme em que portas, janelas e traços arquitetônicos
coloniais se dissolviam, perderia a posse do singularíssimo bem.
De
tanto contemplar sombras como quem observa nuvens quando mudam de forma sem perder
a essência, entendeu: a imagem exata das coisas não passa de deformação produzida
no inconsciente para enganar os sentidos de quem só enxerga a vida da maneira
que deseja, pelo ângulo que mais lhe convém.
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A imagem que ilustra esta crônica foi produzida pelo Copilot.
A última vez que escrevi algo manifestando otimismo em um ano maravilhoso foi às vésperas de 2020, mas apenas porque adoro o número 20. Veio, então, a nefasta pandemia de Covid-19. De lá para cá, não tenho me arriscado em presságios, coisa que entrego aos discípulos de Mãe Dináh e de Walter Mercado.
Estamos em 2024 faz horas, a Mega-Sena da Virada – 21, 24, 33, 41, 48 e 56 – se foi para o bolso de outro apostador e, não tendo acertado número sequer, já não alimento a esperança de enricar. Parodiando o jornalista Carlos Santos, tornar-me um “liso estável” é tudo o que desejo por enquanto e talvez até o fim da vida.
Nem o horóscopo parece contribuir. A previsão para o signo de escorpião, segundo me disse Túlio Ratto, quase no Ano-Novo, é de um período agitado no campo do amor. Agitado! Agitado? Agitado... Agitado: confusão. Nossa Senhora das Bicicletas, protegei-me dos mares revoltos do desamor. Mantenha-me em paz.
Aliás, deve-se desejar feliz Ano-Novo, Ano Novo ou ano novo? As dúvidas, como se vê, perseguem esta mente inculta e inquieta ao longo do tempo. Aprendi, não sei quando nem onde, em algum esforço de cultura inútil, que Ano-Novo é o réveillon, Ano Novo é o dia 1º e ano novo – puta merda – é o período de 12 meses.
Estando errado, que se dane! Se nem os gramáticos de redes sociais se entendem, quem seria eu para entrar nessa suruba linguística. Vou é tomar um café amargo, daqueles bem fortes que dona Raimunda fazia para Padre Sátiro, no Diocesano, porque o uísque de 2023 ainda pode quebrar qualquer bafômetro.
O poeta e jornalista Émerson Linhares, boêmio da asa quebrada que nem eu, trafegava pela Estrada do Contorno, ladeado por Ana Ximenes, musa única e derradeira dos seus versos, quando uma placa de trânsito lhe chamou a atenção. Nela estava escrito “Av. João da Escócia”, e o “Escócia” assim, com “c” na terceira sílaba.
O velho amigo, colega dos bons tempos da redação do O Mossoroense, de quando o jornal ainda era impresso, fotografou e me enviou a imagem da placa, por WhatsApp. Logo em seguida, escreveu perguntando se aquilo estava certo e, antes mesmo de que eu lesse, acrescentou a sugestão de uma crônica sobre o assunto.
Émerson Linhares sabe a resposta. Afirmo convicto porque, como disse, militamos juntos no O Mossoroense, antecedidos por João da Escóssia, Augusto da Escóssia, Lauro da Escóssia, Lauro da Escóssia Filho, João da Escóssia Neto, João Newton da Escóssia, Maria Lúcia Escóssia e tantos outros. Eu mesmo sou Cid Escóssia.
Falou mais alto nele o instinto de editor, aguçado nas melhores práticas do jornalismo e que as atuais tarefas burocráticas no Detran não abateram. A foto e a mensagem não eram pergunta, eram pauta que recebo e realizo nestes últimos instantes de 2023. Afinal, muita gente desconhece a curiosa história do tal sobrenome.
O primeiro de nós foi João da Escóssia Nogueira, o da avenida cuja denominação alguém resolveu “corrigir” 150 anos depois, trocando por “Escócia”. Em circunstâncias normais, talvez tivesse recebido sobrenomes do pai ou da mãe, Jeremias da Rocha Nogueira e Izabel Benigna da Cunha Viana. Os tempos, contudo, eram de lutas.
O Escóssia com dois “esses” é fácil explicar. Quando João nasceu, aos 27 de maio de 1873, vivia-se o período pseudoetimológico da língua portuguesa, que foi do século XVI ao início do XX, antes do acordo ortográfico de 1931, no qual se estabeleceram padrões para a escrita de algumas palavras com “ss” ou “c” no idioma pátrio.
As mesmas regras que transformaram Escóssia em Escócia – como o nome do país – atingem Mossoró e Assú, que, a rigor, deveriam ser Moçoró e Açu. O citado acordo de 1931, todavia, consentiu a preservação de topônimos e sobrenomes, mantendo-se, conforme registrados em leis ou cartórios, Assú, Mossoró, Escóssia.
E por que João da Escóssia? Vamos lá! Jeremias, o pai, era jornalista, rábula – advogado sem diploma – e membro do Partido Liberal. Meses antes do nascimento do filho, fundou o jornal O Mossoroense, aos 17 de outubro de 1872, para fazer oposição ao Partido Conservador, sigla liderada pelo jesuíta Antônio Joaquim Rodrigues.
O vigário deitava falação no púlpito contra os liberais, enquanto estes, especialmente Jeremias, Ricardo Vieira do Couto e José Damião de Souza Mello, colegas de redação, retribuíam no periódico, que chegou a usar, no seu cabeçalho, uma inscrição em que se declarava “Semanário, político, comercial, noticioso e antijesuítico”.
Para piorar, o jornalista incendiário que anunciava o fim do poder dos papas era da Loja Maçônica 24 de Junho, inaugurada em 1873, na data que nomeia a instituição. Assim, alegando que Igreja e Maçonaria não combinavam, o vigário se recusou a batizar o rebento, a não ser que pai e também padrinho deixassem a Ordem.
Jeremias promoveu então um batismo simbólico na 24 de Junho, acrescendo o Escóssia ao nome do filho, em homenagem a São João da Escóssia, considerado patrono do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria. Tal santo, reverenciado pelos maçons brasileiros durante longo tempo, não existe, mas esse tema fica para depois.
Existem outros “Escóssias” por aí, sem ligação com os de Mossoró, além de “Escócias” e “Escócios”. O João da avenida, jornalista, artista plástico, cenarista de teatro, publicitário, xilógrafo, desenhista e caricaturista falecido aos 14 de dezembro de 1919, é Escóssia, de modo que a placa está mesmo errada. Podem mandar ajeitar.
Escrevi uma resenha para a disciplina Produção Textual II, ministrada pelo grande professor José Carlos Redson. Para quem não sabe, sou aluno de Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Fiz Enem e tudo, já na casa dos 50, a fim de galgar à vaga que ocupo no campus de Assú/RN.
Estudar já velho, com um monte de obrigações e compromissos, é talvez mais complicado do que na média etária dos meus colegas de turma, na faixa dos 20, mas deixo o comentário no campo das probabilidades porque não sei da vida alheia. “Cada um”, como diz Caetano, “sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Para qualquer um, exige tempo que espremo entre o trabalho na advocacia e os instantes dedicados à docência em Direito, na Faculdade Católica do RN, às vezes em detrimento do espaço da família, às vezes sacrificando a porção destinada à boemia que ainda me conduz madrugada a dentro, bar em bar.
Vale a pena, entretanto. Paga qualquer esforço, reler autores frequentados na juventude, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade, com quem acabo de tomar três xícaras de café 100% arábica, colhido na Serra da Canastra/MG, enquanto recordávamos, eu e o poeta, o enredo de “O Jardim em Frente”.
Li esse conto pela primeira vez faz um trem de anos – para lá de 30, sô! –, em edição da antologia 70 Historinhas que ainda compõe o acervo da Rua dos Bobos, nº 0, na Curva do Vento, à beira do Rio dos Monxorós. A que utilizei há pouco veio por WhatsApp, reduzida a bits nas tripas dum arquivo PDF.
O texto de Carlos Drummond de Andrade, de certo modo, tem a ver com essas revoluções promovidas pelo capital, que nos trouxeram coisas impressionantes nas últimas décadas, a exemplo dos smartphones, do WhatsApp, do PDF, para otimizar o trabalho, domesticar as horas, maquinizar o que se diz humano.
Nele, o vate itabirano, imerso em prosaica narrativa, descreve a reunião dos figurões de uma empresa – os “big-shots” –, antecedida pela advertência do presidente para que ninguém, em hipótese alguma, atrapalhasse os debates. Telefonemas também não deveriam ser repassados, nem que fosse ligação do “papa”
O chefe, na sequência, esquadrinha o tema do debate, minuciosa e cartesianamente, “como quem divide um leitão”, mas é interrompido pelo porteiro que, descumprindo a ordem, bate à porta insistentemente, até ela ser aberta, sob protestos dos executivos, e apresenta uma mulher aflita, que mora ali, na redondeza.
O gesto só não provocou a demissão do serviçal pelo receio dos maiorais de a dispensa infringir a lei trabalhista, sem dizer da surpresa diante da senhora transtornada, que pedia algo inusitado: autorização para sepultar o cadáver do canário da família no jardim da firma, por lhe parecer um “lugar bom para ele descansar”.
A casa onde gorjeava o bichinho é grande, com árvores no quintal, mas não oferece intimidade para o descanso eterno. O enterro é autorizado e os “big-shots” suspendem os afazeres para render homenagens à memória da ave cujo corpo é depositado no solo em “uma caixinha forrada de veludo azul-claro”, solenemente.
Drummond, como se sabe, era modernista, daí características do movimento brotarem no conto, a começar pelo uso do inglês para designar os chefões corporativos, rompendo a pureza do português parnasiano. A linguagem, em verdade, é coloquial e beira a oralidade, com frases curtas que nos inundam de imagens.
O cotidiano, aspecto também inerente aos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922, ganha vulto no choque entre o capitalismo frio e cartesiano, encarnado no comportamento dos dirigentes empresariais; e a vida de pessoas comuns – as telefonistas, o porteiro, a dona do canário – prenhes de subjetividades.
São os dois últimos, a propósito, o porteiro que desobedece à ordem do chefe, mesmo correndo risco de demissão; e a dona do passarinho morto, com tocante sensibilidade, que desafiam a frieza do universo corporativo com gestos de elevada empatia cada vez mais raros no dia a dia, no corre-corre das cidades grandes.
E o ritmo da escrita? Quanto engenho! Os detalhes, as intercalações, os períodos curtos, a pontuação, paralisam, dão nos nervos, como o “bater com esse lápis” e o “toc, toc, toc, na mesa”, a ponto de o leitor, do lado de cá dos acontecimentos, perceber e sentir a chatice, a demora, o marasmo daquele evento.
A narrativa se expande, contudo, para descrever a dimensão humana da pausa nos afazeres empresariais em homenagem à dor da mulher anônima, que sobrepõe o luto prosaico pela morte de um pássaro aos elevados e urgentes interesses do capitalismo. É, na prática, a poesia que sempre se faz prosa em Drummond.
Penso que não havia canário na “caixinha forrada de veludo azul-claro”. Havia a sensibilidade assassinada por você e por mim, que ressuscita de vez em quando nos terceiros dias, voltando a morrer diante de nós neste ciclo sem fim, da agonia, tentando nos seduzir para a beleza das coisas breves e dos pequenos gestos.
Não toco nem tambor. Quando jogava capoeira pelas praças de Mossoró, final dos anos 1980, início dos 90, sequer batia palmas para não tirar berimbaus e atabaques do ritmo. Fase boa, apesar do perigo de ser preso, visto que algumas autoridades, infectadas pelo racismo estrutural, confundiam o esporte com a vadiagem.
Por contradição, ironia ou castigo cósmico, sempre fui apaixonado por música. Um ouvinte chatíssimo, igual a torcedor que só conhece, no futebol, as faces quadradas da bola, mas que esculhamba técnico, jogadores, árbitro, bandeirinhas e até gandula, no auge da disputa. Menos, menos. Exagero! Eu não sou tanto.
Exatamente agora, rascunhando no bloco de notas do celular este texto que se pretende crônica, assisto a apresentações de pianistas de várias partes do mundo, graças ao YouTube e ao bom gosto de papai. Polônia, Japão, Brasil, EUA, a linguagem da harmonia é universal e não conhece a barreira semântica da palavra.
No ramo, contudo, não passo de apologista. Apologista razoável, dado ao privilégio de ouvir, ao longo de quase 52 anos, Laíre Rosado ao piano Schumann em que também praticaram o pai e os irmãos dele. Foi adquirido no Rio de Janeiro, transportado em barco até Areia Branca, onde se contratou um caminhão de frete.
Até tentei ser pianista recebendo aulas do magistral Ari Duarte, na casa que dava de ombros com o prédio da Gazeta do Oeste, depois incorporada pelo jornal de Canindé Queiroz e Maria Emília. A mente inquieta, todavia, não me permitiu o domínio da arte. Nem piano, nem violão, nem flauta, nem gaita. Nem nada.
Por isso, fico aqui esfolando verbos, adjetivos, substantivos, arrancando-lhes tripas e tendões, na ilusão de construir uma lira milagrosa para cantar, na disritmia da prosa, a alegria de ouvir música com papai, que só não está tocando porque se recupera de uma cirurgia. “Esforço zero!”, ordenaram os médicos do médico.
Em complemento, amplio o registro de memórias e o repertório de histórias. Perguntei-lhe, por exemplo, sobre os pianos da Mossoró nos idos de 1960, lembrando-me de Brasília Carlos Ferreira, do Sindicato do Garrancho. Diz ela, havia uns 100 na cidade, no início do século XX, em demonstração de “cosmopolitismo”.
Doutor Laíre respondeu contando que Delfino Freire, comerciante rico, primeiro a viajar em carro motorizado de Mossoró a Tibau, levava o piano para a casa de veraneio todo ano, de carroça. No rastro, alguém contratado a peso de ouro para ajustar o bichinho, que, pelo transporte, chegava desafinado à esquina do mar.
A narrativa me faz lembrar Dulce Escóssia, filha de João da Escóssia, que, à época de Delfino, dividia-se entre os ofícios de costureira e de pianista. Dulce executava a trilha sonora dos filmes exibidos no Glória, no glorioso tempo do cinema mudo, segundo me contaram as suas três meninas, Lucinha, Corália e Honorina.
Trocadilho mais idiota, minha Nossa Senhora das Bicicletas: “Glória, glorioso”! Sinal de que desafino até no texto e de que o ponto final se aproxima cobrando-me respeito e silêncio. Peço desculpas. O único ritmo que me restava, o das teclas da máquina de escrever, foi-se na transição da Olivetti ao microcomputador.
A exemplo desses engenhos datilográficos, aquele piano de madeira, cordas metálicas e martelinhos percutores, com pedais para alongar as notas, parece restrito a escolas, museus, profissionais e saudosistas, sem mencionar o caso dos snobes que mantêm o móvel na sala para impressionar visitas e ilustrar fotografias.
Aqui resiste o Schumann vertical de meu avô, graças à paixão de meu pai pela música; e resiste meu pai, com sua musicalidade discreta, graças ao anel viário que lhe construíram no peito, com quatro pontes mágicas – duas mamárias, duas coronarianas. Que privilégio, esse meu, mesmo sem tocar um instrumento.
As cores sempre tiveram simbologia especial em Mossoró, notadamente nas disputas político-partidárias. Durante anos, o verde do MDB e o encarnado da Arena dividiram a cidade nos períodos eleitorais. Pelo tom da roupa, deduzia-se em quem votava o sujeito ou a sujeita, a exemplo do que aconteceu em pleitos recentes, com o vermelho petista de um lado e o verde-amarelo bolsonarista de outro.
A coisa, aliás, ia além das vestes. Seu Pedro, conhecido como Homem do Carneiro Verde, segundo narra o cronista Odemirton Filho, no blog do jornalista Carlos Santos, usava tinta xadrez para enverdecer a lã do inocente ovino que arrastava às famosas vigílias do ex-governador Aluízio Alves, o Cigano Feiticeiro. Era a maneira de Seu Pedro não deixar o menor sinal de dúvida sobre sua condição aluizista.
Contam também que, nos anos 1960, o tribunal designou um juiz forasteiro para a comarca. O magistrado era discreto e não dava pistas ideológicas, até que, um dia, alguém o viu sair da farmácia e resolveu buscar indícios no estabelecimento: “O que ele comprou?”, quis saber o curioso. “Escova de dentes”, respondeu o boticário. Aí veio a grande jogada, o xeque-mate: “Verde ou vermelha?”.
Quem se cria no País de Mossoró cresce impregnado por essas simbologias. Quem chega depois, logo se contamina pela semiótica local. Se bem que não é só aqui. Conforme escrevi logo no primeiro parágrafo desta crônica, a nação inteira caiu na gandaia, alguns em delírio coletivo. Até eu, sempre distante das polêmicas do gênero, passei, inopinadamente, a evitar determinadas combinações.
Talvez por ser mossoroense, infectado de nascença pela cisma das cores, eu tenha visto algo estranho na edição 2023 do Chuva de Bala: o prefeito Rodolfo Fernandes, herói e salvador, veste um Azul forte que se destaca no espectro anil proporcionado pelo choque entres luzes e cenário; e Lampião, o facínora, veste Rosa. Coincidência! Ninguém, a não ser um bruxo, criaria fantasia subliminar tão graciosa.
Imagem oficial do evento transmitida pela TCM
Imagem oficial do evento transmitida pela TCM
Psicoses à parte, registro aqui meu reconhecimento aos trabalhadores da cultura responsáveis pela construção desse espetáculo que projeta Mossoró no Brasil e no mundo. Não vou citar nomes, por serem muitos os amigos e amigas a brilhar no adro da capela de São Vicente, tantos, ao longo de tantos anos, que a lista sequer caberia neste Canto de Página. A vocês, os parabéns! Evoé! Merda!
Não foi Isaura quem tomou posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Foi a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras quem tomou posse em Isaura. Longe de mim cutucar a imortalidade com lápis curto, até porque muitas pessoas queridas estiveram naquela instituição e outras tantas permanecem nos seus quadros. Desejo apenas enaltecer a grandeza da figura humana que acaba de chegar por lá.
Conheço Isaura Amélia desde sempre, afinal somos primos. Apesar do destroço que a política causou na família, dividindo-nos em três ou quatro bandas, permanecemos – ela, Vingt-un Rosado e eu – unidos pelos laços fraternais da literatura. Aliás, Vingt-un me disse certa vez, com o testemunho dos milhares de autores habitantes da biblioteca dele, uma frase que ficou gravada na memória: “Isaura é gênio da raça”.
De fato, a prima já era imortal muito antes de qualquer láurea, tanto pela produção acadêmica quanto pelo trabalho realizado nas entidades que coordenou. Há marcas indeléveis de sua passagem na Secretária de Cultura de Mossoró, Fundação José Augusto, Fundação de Apoio à Pesquisa e Secretária de Cultura do RN, no incentivo à produção bibliográfica, à música, ao teatro, à história, às artes plásticas, à pesquisa.
Do que me toca especialmente, registro três atos: o convênio com a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para microfilmar o acervo do jornal O Mossoroense, de 1872 a 1950; a ideia, em um desses 14 de março, de pintar versos de poetas locais no asfalto, em diversos cruzamentos do centro de Mossoró; e o esforço que fez da cidade uma das primeiras do País a liberar recursos da Aldir Branc, na pandemia.
Foto sem identificação de autor copiada do portal da Ufersa
Ela é por demais generosa. Dá um cabimento danado a mim, que nem valho a palavra que leio, e até pareço ingrato por não participar das coisas para as quais me convida. De uns tempos para cá, as torres de cristal têm me causado impaciência e vertigem. Esse, contudo, não foi o motivo de eu não ter ido à academia saudá-la com pompa e circunstância. Foi a sala de aula, que limita a vida social do professor.
A ausência não significa que não fiquei feliz, que não vibrei com o reconhecimento a Isaura, sucessora de dois tios na arcádia potiguar: Tércio e Vingt-un, terceiro e vigésimo primeiro dos numerados do velho Jerônimo Rosado; sem dizer do primo Carlos Ernani Rosado Soares. Tércio, conheci em livros e por meio de relatos dos mais velhos. Vingt-un e Ernani, carrego a imensa alegria de haver convivido com ambos.
Ainda sobre minhas faltas, devo, desde 2022, um texto sobre o livro Isaura Amélia: coleção de arte. A obra, harmonia perfeita entre verbo e imagem, talvez seja o registro mais amplo das artes plásticas do Estado. São maravilhas reunidas pela autora ao longo de décadas, de gente famosa e de talentos desconhecidos, que, segundo Iaperi Araújo, no prefácio, foram generosamente dadas à Pinacoteca de Mossoró.
O livro merece crônica à parte, exclusiva. Por enquanto, fica aqui às vistas, sobre a mesa de trabalho, como inspiração para outras expressões. Hoje é dia de parabenizar à Academia de Letras por haver tomado posse em Isaura. Se deixarem, essa mulher vai sacudir a poeira dos fardões e revolucionar o casarão da rua Mipibu, aproximando-o dos interiores, das ruas e dos becos onde nasce, vive e pulsa a arte dos mortais.
Tipos populares frequentam livros, crônicas e artigos de diversos
memorialistas e historiadores do Rio Grande do Norte há muitos anos. Em Mossoró
existem páginas célebres de escritores de nomeada sobre figuras curiosas que
ilustravam, com suas particularidades, a geografia humana local.
Nem sei se tais registros seriam “politicamente corretos” hoje,
em tempos de revisionismo literário. Tais personagens, afinal, destacavam-se
por reagirem a apelidos jocosos, por distinções físicas, por manias diversas e até
por problemas mentais, a exemplo do rapaz que transava com fuscas.
Quando passei a frequentar Assú com regularidade, descobri
que, por aqui, também há narrativas envolvendo personagens curiosas. Roque,
imortalizado em mural de Gilvan Lopes, no Centro, é uma delas. Apesar de cego, dizem,
informava as horas corretas, sem relógio; e percorria a cidade toda sem ajuda.
Roque, o “Cego da Hora”, morreu bem-antes de eu passar a
morar na Terra dos Poetas. Gostaria de tê-lo conhecido e, quem sabe,
entrevistado. Aliás, por que não pensamos nisso, meu amigo Lúcio Flávio? De meu
tempo, entretanto, tomo a liberdade de fazer dois registros: Cachorra Lascada e
Cleonice.
Roque, o Cego da Hora
Roque por Gilvan Lopes
Cachorra Lascada é magro, de estatura mediana. Às vezes
parece ninja, às vezes encarna Rambo, a depender de como enrola a camisa na
cabeça. Diariamente luta artes marciais com inimigos imaginários em via pública.
Sempre torço por ele, que, até onde sei, não ofende ninguém de “mermo-mermo”.
Cleonice é uma mulher baixinha, gordinha, que anda do raiar
do Sol à alta madrugada catando recicláveis e pedindo dinheiro. Há dias em que nos
encontramos em diversos lugares, nos horários mais variados. A cada novo
esbarrão, dirige-se a mim como se fosse a primeira vez: “R$ 2,00, moço bunito”.
Se estou acompanhado de Clarisse, minha proprietária, Cleonice
vai se chegando com jeito e simpatia: “R$ 2,00, muié bunita e homi bunito”. Se
tenho e dou, o elogio é reforçado com algum gracejo, mas, se não compareço, ela
olha para Clarisse e dispara: “Tão novinha! Tão linda! Esse aí é seu pai?”.
Antes de começar a história, sinto que devo situar o leitor sobre as personagens envolvidas. A primeira sou eu, Cid Augusto, poeta sem talento, cronista de meia pataca, sedentário convicto e militante. Depois vem Clarisse Tavares, minha proprietária e cuidadora, fina e delicada que nem lixa 60, segundo o pai dela.
Tem ainda Elen Nailla, personal trainer contratada por Clarisse para nos assistir na academia e, por fim, apresento Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira, Luiz da Funerária, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Econômico de Assú, ex-candidato a prefeito e CEO de um dos mais promissores complexos funerários do RN.
Luiz é simpaticíssimo, tão cativante que até pensei em transferir meu plano funeral para a empresa dele. Só não o fiz para não contrariar a promessa feita a Jacson Damasceno, ainda nos tempos da faculdade de jornalismo na UFRN, de ser enterrado em um caixão importado da Funerária Damasceno, da cidade de Catu, Bahia.
Nailla, a personal, é excelente no ofício. Pontual, cuidadosa e carrasca com delicadeza. Ruim de matemática, porém. Quando a gente conta 12 repetições numa máquina assassina, ela insiste que foram apenas oito. Quinta-feira última, quase me mata diante dos olhos de Clarisse, que não esboçou qualquer solidariedade.
É que a moça às vezes carrega nos pesos sem dar crédito às minhas anunciadas fraquezas. Ela superestima o aluno, imaginando que ele pode mais do que afirma. Em verdade, posso muito menos do que alego e não me importo de ser o fracote da academia, “puxando ferro” a menor que os demais frequentadores do local.
Sei que nessa brincadeira de erro de matemática por parte da professora e de excesso de confiança depositada no atleta, saí do treino abraçado a Clarisse para esconder a tremedeira nas pernas. Ainda na portaria, sentindo a alma ateia sair pela boca, comecei a cantar o hino: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar...”.
Quando ergui o braço direito – o outro amparava minhas carnes trêmulas no corpo firme da mulher amada – e gritei a todo pulmão, 1/8 acima, com pausa dramática, “Segura na mão de Deus... E vai!”, surgiu diante de mim, como do nada, de sorriso espaçoso e braços arreganhados, o dono da funerária. Ele mesmo, meu amigo Luiz.
Ter com Luiz da Funerária é sempre motivo de alegria, prenúncio de bom papo, de boas risadas, mas a coincidência intriga – um corpo em petição de miséria, a música lutuosa, aquele encontro. Seria aviso de que a hora chegou? De que exercício mata, como sempre suspeitei? Ou de que devo fazer portabilidade do plano funeral?
Daqui a pouco chegam os eventos juninos, com Santo Antônio, São João e São Pedro. Quando criança, ficava deveras ansioso pelo período. Pela farra, pela comida, pela fazenda de meu avô, situada entre Mossoró e Felipe Guerra, margeando dos dois lados a BR-405. Na verdade, ele tratava como duas propriedades: a Mororó, do lado direito de quem segue rumo a Apodi; e a Tapuio, na banda esquerda da rodovia.
A ansiedade dizia menos com junho e mais com o gosto pelas coisas do sertão onde nasci e ainda vivo, até porque, ali na Mororó e na Tapuio, sem luz elétrica, as fogueiras eram acontecimentos corriqueiros, de relevante valor social. Ao seu redor, confraternizavam-se familiares, amigos, vaqueiros, caçadores. O seu calor, além de nos aquecer os corpos, servia de combustível para o café, o milho. Para as ideais.
Trago daquele tempo o gosto da culinária sertaneja. Assim, do mesmo modo, pratos como canjica, mucunzá, pamonha, cuscuz, picado, buchada, panelada, coalhada, não eram coisas apenas do meio do ano. Ainda hoje, aliás, quando pretende me encurralar, sem possibilidade de rejeição a convite, minha mãe usa o conhecimento privilegiado a meu respeito e anuncia, sem dó nem piedade: “Tem maxixe!”.
Não desejava falar sobre isso. Digo “falar” – embora escreva –, tentando fazer da escrita uma extensão da fala, para conversar com você. Porque o imagino aqui, diante dos olhos, enquanto as palavras se derramam na tela do computador. Peço desculpas. Minha mente é uma colcha de retalhos multicolores cosidos uns aos outros com a agulha do tempo e qualquer linhazinha vagabunda que a memória empresta.
A intenção era aproveitar o comecinho do sábado, antes das atividades pendentes na advocacia e na docência, para me entregar à crônica, porção que me resta do jornalismo, paixão da vida toda. E na crônica, artesanato da palavra que não se fez notícia, desejava escrever sobre o evento que a prefeitura de Assú realizou ontem – hoje são 29 de abril de 2023 – para receber alunos do colégio Marista, de Natal.
O Marista natalense, cujo padroeiro é Santo Antônio, homenageia uma cidade a cada ano. Assú é o lugar da vez, eleita em votação realizada na Internet, com mais de 20 mil votos. Eis o motivo da visita e da recepção que se fez em prosa e verso, com direito a apreciar painéis do compadre Gilvan Lopes e a arquitetura secular da Igreja Matriz, sem dizer da inenarrável sensação de chafurdar no Buraco do Prefeito.
Pelo que as vistas alcançaram, apesar das lentes arranhadas dos óculos, eram centenas de meninos e meninas, além de professores e professoras, lotando de azul e branco o Cine Teatro Pedro Amorim para ver tradições juninas do jeito que só o interior preserva. A plateia ficou extasiada diante da riqueza imaterial das atrações levadas ao palco, da prosa e do verso, da luz cheia de poesia que salta do olho do artista.
Impossível não recordar meu avô, a fazenda, o povo, os costumes. Não tem metrópole que afaste o sertanejo de mim. Igualmente inevitável lembrar do Santo Antônio Marista, onde estudamos meu pai, eu e um dos meus filhos. Quer dizer, eles estudaram: meu pai e meu filho. Eu apenas frequentei aulas na década de 1980 até ser convidado a me retirar. Fase ruim! Rebeldia sem causa que, aos 51, ainda custa caro.
E já que esta história virou memória, a música tema do São João de Assú, composta por minha amiga highlander Fernanda de Sá Leitão, interpretada por Dayane Martinelli e Priscyla Arrazo, arrancou-me outra reminiscência lá das brenhas cerebrais. Quando ouvi Dayane e Priscyla cantarem “Venha pra cá/ Venha curtir o São João/ É o mais antigo do mundo/ festa de fé e tradição”, variei de novo nas ideias.
Decerto, Assú não realiza o São João mais antigo do mundo. A expressão é, antes de tudo, um ótimo lance de marketing, afinal a tradição tem origem na Europa da Idade Média, na transmudação do louvor aos deuses pagãos da natureza e da fertilidade para o culto a santos católicos. Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra mantêm vivo o legado, inclusive com fogueira, balão, bandeirinha, culinária e tudo o mais.
Contudo, entretanto, todavia, com redundâncias, hipérboles e pleonasmos à parte, o lance de “mais antigo do mundo” fez a mente viajar ao jornal O Mossoroense da década de 1950, até uma crítica ao Mossoró Cidade Junina da época. Para o autor do comentário feito há cerca de 73 anos, o único São João de “mermo-mermo” das bandas do RN, o maior, melhor, mais tradicional, seria o da Atenas Potiguar.
Não entro na peleja nem por cem e uma cocada. Mossoró é minha terra, Assú a de minha proprietária. Ela não perde noite de junho nem que o Buraco do Prefeito esteja acochado igual fiofó de jia. Para mais, sou não de barulho. Sou de balcão. Aprecio beber enquanto converso miolo de pote e escrevo besteira em guardanapos, embora confidencie – não diga a ninguém! – que sufraguei Assú no pleito do Marista.
***
Postscriptum ou P.S., para os íntimos. Minha doce proprietária, Clarisse Tavares, acaba de ler a crônica encerrada linhas atrás. Por determinação dela, contra a qual não cabe nem recurso, nem choro e nem vela, devo pedir desculpas e me retratar publicamente. Então, leitor amado, que se danem Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra e o resto do planeta. Assú tem o São João mais antigo do mundo. E ponto final!
No mercado, às 5h00, cada bêbado ostenta sobre a própria mesa, a própria latinha de cachaça, a própria laranja, a própria solidão. Como fossem ilhas em homens, conversam com amigos tão íntimos que somente eles enxergam e ouvem. Quanta inveja, a minha! Queria um tantinho desse lirismo que faz a ponte entre o ébrio e o louco. Chega o poeta concreto, pede a cerveja que anuncia ser a última de um périplo iniciado ontem. O bardo ainda ameaça cometer uns versos de improviso, mas é dissuadido pela senhora de crucifixo de prata, que bebe algo em uma xícara de asa quebrada. O que será? O velho do cão maltês também comparece. “Vai pedir café”, imagino. Pede conhaque. Duplo, ainda por cima. Deu a hora de chegar.
Ao contrário do que narram os irmãos Grimm naquele famoso conto de fada, Lobo Mau sobreviveu ao caçador. Hoje, velho e barrigudo, anda por aí, de bar em bar, disfarçado em pele de cordeiro. Chapeuzinho, por sua vez, melhorou com a idade. Noite dessas, reencontraram-se no Chico e Teta. Ela, exibindo o corpinho trabalhado no crossfit, ironizou a forma arredondada do antagonista a quem reconheceu na hora: “Seu Lobo, para que essa barriguinha tão grande?”. E o Lobo, cheio de uísque, respondeu: “Para ficar mais confortável para você”. Não se sabe como a história termina. Nem se termina.
Necrológio de Augusto Floriano, poeta autodidata: “Teve um coração revolucionário sempre em pé de guerra com as próprias fraquezas armadas. Submeteu-se a quatro governos democraticamente eleitos pontuados por seguidas tentativas de golpe de estado. Morreu como nasceu, sem conhecer a paz. Feliz, entretanto, por haver usufruído o que há de humano na encarnação da poesia”.
Noite ardente, comentada em toda a vizinhança. Horas – tantas horas, mais horas, aquelas horas – de sussurros entrecortados por gemidos fundos e gritos involuntários. De repente, à luz do derradeiro suspiro, o sêmen vermelho da esferográfica sangra na superfície branca, fecundando a folha com o poema inesperado, agora em gestação. Aguardemos.
Acabo de encontrar O Pálido Olho Azul, na Netflix, estimulado pela informação de que uma das personagens é inspirada no poeta americano Edgar Allan Poe. A trama, “suspense gótico de Scott Cooper, baseado no best-seller de Louis Bayard”, diz a sinopse, envolve assassinatos misteriosos e vingança.
Edgar Allan Poe
Mas a crônica não é sobre isso, é sobre um momento, e é sobre “Nunca mais”.
Menino – menino mesmo, em idade da qual meus três filhos já passaram de sobra –, adorava as histórias de terror contadas em um livro de capa preta, que eu não sabia ler. Nem ele nem outro. Meu pai lia para mim.
Tempos analógicos, distantes da geração dos computadores, da Internet, dos celulares e das redes sociais, quando o entretenimento virtualizado ficava por conta da TV Verdes Mares, de Fortaleza. O sinal da emissora cearense era retransmitido – não até muito tarde – sob os auspícios da prefeitura de Mossoró.
A primeira vez que assisti à televisão de madrugada, permita-me o registro, foi em Rui Barbosa, Bahia, na casa de um tio, lembrança cujos detalhes reservo para depois. Adianto apenas que, logo na estreia, deitado no chão da sala, com almofadas de apoio, tive o privilégio de ver o épico Gengis Khan.
Na “rádio cabeça”, só para não dizer que não falei de Chico Buarque, você mais velho talvez esteja ouvindo The Fevers cantar que o sanguinário guerreiro mongol “conquistou a China, o Afeganistão e o Irã”, além de derrotar a tropa russa e se apossar do Império Turco.
Tá escutando aí, não tá?...
“Gengis, Gengis, Gengis Khan
Deixa na História uma página de dor
Era o Gengis, Gengis, Gengis Khan
Foi ditador, foi herói, foi bandido
E a todos que encontrava (oh ho ho ho)
Matava e queimava (ah, ha, ha, ha)
Era o mais temido dos mortais”.
Surpreendente. Em Mossoró, acesso a filmes de maior relevância, só no Pax, no Cid e no Caiçara, se a classificação permitisse, porque os comissários de menores marcavam cerrado nas portarias dos cinemas. Lá dentro, a galera aplaudia freneticamente e festejava – Êêêêêêêêêê! – na hora da reação do mocinho contra o bandido. Se a fita do projetor se partisse, o coro troava: “É roubo! É roubo! É roubo!”.
Enfim, com o seu perdão por haver enfiado tantas narrativas no meio do caminho, a quase me perder, verdadeira encheção de linguiça, as tramas de terror que tanto adorava eram lidas em voz alta por papai. Cada dia, um capítulo de Edgar Allan Poe. Eu ficava vidrado em Histórias Extraordinárias, edição que passou a integrar o meu acervo bibliográfico. Herança de gente viva, felizmente.
Talvez o garoto nem compreendesse a complexidade dos contos. Talvez o pai nem falasse exatamente o que estava escrito ali. Imagino que retraduzia e suavizava palavras, frases, orações, transformando o português adulto em português infantil.
É, não sei ao certo, e isso não me aflige. A exatidão é o de menos. Depois dos 50, o importante é a cena imperfeita reconstruída a partir de lampejos que, embora aos trapos, preservam a essência da casa, do quarto, do menino, do homem, da voz grave, calma, pausada, terna.
São alumbramentos que passeiam entre o que havia de fato e o que se projetou por capricho das convulsões cerebrais, um tanto diferentes da percepção de Manuel Bandeira, na Última Canção do Beco. Idêntico, contudo, no critério eternidade.
“Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar.
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Muitos anos depois das Histórias Extraordinárias, adulto, morando em Natal, contratei Charles Phellan para me dar aulas de inglês. No segundo ou terceiro encontro, o professor, imediatamente convertido em amigo, presenteou-me com uma cópia xerográfica de The Raven – O Corvo – e uma fita K-7 com alguém recitando o dito poema de Edgar Allan Poe, publicado na American Review, de Nova Iorque, em 1845, antes de ganhar fama mundial.
Os primeiros tradutores de The Raven para a língua portuguesa foram ninguém mais ninguém menos que Machado de Assis, em 1883, e Fernando Pessoa, em 1929. Preciso falar mais alguma coisa? Não, mas falo de enxerido: O Corvo é referenciado em músicas, quadrinhos, séries, e conta com várias adaptações cinematográficas. Lembra do nome da escola de Wandinha Addams? Vem dele. Os Simpsons, por sinal, têm sua própria versão, com Homer entoando o eu lírico.
Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico é a voz que sai das entranhas do poema para enunciar sentimentos, sensações. É quem fala no verso, correspondendo ao narrador no território da prosa. É como se o Grilo Falante largasse Pinóquio e se infiltrasse em Cecília Meireles para declamar O Menino Azul aos sentidos do leitor.
O eu lírico de The Raven é o viúvo pesaroso, desesperado “P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais”. O homem alucinado a conversar com um “velho corvo emigrado lá das trevas infernais”, que pousa no busto de Atena, posto nos umbrais da loucura, e se apresenta com o nome de “Nevermore”.
O texto não é leve, não é fácil. Parece ser, de qualquer maneira, uma boa porta de entrada para a obra de Edgar Allan Poe, a mim preciosa, sem demérito à genialidade do autor, pelo exato instante da infância que evoca. Espero aproveitá-lo enquanto fragmento de memória até que a ave “agoureira dos maus tempos ancestrais” se achegue aos meus ouvidos “Com aquele ‘Nunca mais’”.