lembrei-me
agora do poeta, cronista, músico e jornalista Antônio Maria, que teve o
disparate de compor aquela música horrorosa “ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém
de chama/ de meu amor”.
De lascar!
Puta merda!
Valei-me,
Nossa Senhora.!
Bangalô três
vezes!
Deus é maior!
Se bem que o
cara tomou a mulher de Samuel Wainer, dono do Última Hora, jornal importante da
época.
Quando me
olho no espelho, as banhas rompendo os umbrais da calça, testa sebenta de
gordura, só me lembro do velho Maria, meu cronista predileto.
Deveria
lembrar de Eneida, sempre nua. Livre!
Tivesse ao
menos o talento dele, mas não.
Um troço, uma
dor de cotovelo infernal – volto ao debate sobre a música –, mas o cara era sensacional.
Leiam “Diário de Antônio Maria” e “Benditas Sejam as Moças” para conferir.
Obrigatório.
Dia qualquer,
entrevista de emprego nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, seu
conterrâneo do Pernambuco, Chatô, o Rei do Brasil, propôs o teste:
- Escreva
sobre Jesus Cristo!
Maria, sem
tomar fôlego, respondeu interrogativamente:
- Contra ou
a favor?
Foi
contratado sem a necessidade de escrever linha sequer.
Quem diabos
argumentaria contra Jesus Cristo? Nem eu, ateu, graças a Deus, faria isso em
circunstâncias cotidianas.
De vez em
quando, convenhamos, até o cristão mais devoto pragueja contra a divindade. Faz
parte.
Mas a vida –
quem sabe a profissão – coloca o sujeito em circunstâncias desconcertantes que
desafiam princípios.
Agora, por
exemplo, aparece o diabo de um trabalho de faculdade. Tema desagradável, vago –
Porra de pandemia!
E a educação
nisso?
Permanecerá
como antes ou a experiência dramática valeu necas de pitibiriba?
Saltamos de 2019 para não sei quando ou qualquer
dia a gente pousa na realidade?
Vou tomar
dois ou três goles uísques para espantar a insônia e mergulhar nas dúvidas.
A argumentação é capacidade inata do ser humano. Ao nascer, instintivamente, a criança dá sinais claros sobre o que precisa, deseja, gosta, detesta, teme. Argumenta, por meio do choro, do riso, de movimentos corporais, que, embora inconscientes, não deixam de ser recursos lógicos capazes não apenas de levar o adulto à compreensão de algo, mas também de o convencer a respeito de alguma coisa.
Inicia-se ali, nas relações mais instintivas da existência, o exercício cotidiano de uma dialética que acompanha o indivíduo até o fim da vida. E mesmo além da morte, como se dá com grandes pensadores, a exemplo de Sócrates, Platão, Karl Marx, Bakhtin, Foucault, cujas ideias sobrevivem aos limites do corpo físico e se mantêm em latente dialogismo, despertando sentidos, geração a geração.
Percebe-se que a argumentação é essencial à vida em sociedade, em caráter indissociável. Naturalmente, ela ganha complexidade com o desenvolvimento das linguagens que integram a pessoa ao meio, com o apuro de marcas e mecanismos retóricos – silogismos, paradoxos, ironias, metáforas –, não sendo exagero afirmar que a experiência comunitária é um ato argumentativo por excelência.
Tudo o que faço ou deixo de fazer direciona-se ao outro, ao convencimento do outro. Eu, na verdade, arremedando Mário de Sá-Carneiro, “sou qualquer coisa de intermédio... que vai de mim para” a multidão de outros que me constituem sujeito. Mesmo na aparente concordância, eu e esses tantos outros – de mim e de além – estamos em luta infinita para estabilizar ou desconstruir enunciados.
Nas práticas acadêmicas, tais operações cognitivas ganham dupla importância: a da argumentação em si, em pleno uso, trabalhado com rigores intelectuais e certo grau de consciência retórica em prol do convencimento da comunidade científica; e a do ato ou efeito de argumentar enquanto objeto de estudo de diversos campos teóricos, como direito, filosofia, linguística, história, comunicação social.
Isso não significa que os letrados detenham a primazia da razão – a maioria, aliás, não chega à sola da apragata do repentista analfabeto –, até porque, nas democracias, em tese, a todos assiste o direito fundamental de se expressar, sem distinção de qualquer natureza, nos limites da lei, como forma de equilibrar as relações de poder. Na falta do argumento livre e plural, proliferam-se as tiranias.
Minha solidariedade aos amantes filmados na varanda do
Teatro Dix-huit Rosado, em plena e benfazeja antropofagia cultural, e expostos
nas redes antissociais. A mulher, dizem, com maior veemência, realçando a
evolução da mentalidade do povo que se gaba de haver alistado a primeira
eleitora brasileira.
Sem querer defendê-los, suponho que se imaginavam ocultados
pelos tapumes que embelezam o Corredor Cultural da Rio Branco, desprovidos da vontade
de ultrajar o pudor de quem publicizou a cena, insensível ao amor
improrrogável, ao amor de improviso, que não sabe, não faz hora, mas teima acontecer.
Quiçá enredados por Nelson Rodrigues, percebiam-se
invisíveis em “uma selva de epilépticos”; ou desejavam aplicar a tese de Jabor
segundo a qual “o sexo sonha com proibições”. Para rompê-las, é claro. Talvez
tenham se tornado valencianos: “cão vagabundo” e “onça-pintada” gozando
metáfora na realidade.
Alguém dirá que esta crônica de meia pataca exorta a
imoralidade, o pecado capital da luxúria e até o crime. Não se trata disso, e
sim de expressar a sensação de que a imprudência peculiar dos amadores, se
ofende alguém, ofende bem menos que a malícia do voyeur que grava e faz
circular cenas de tal ordem.
É, “o Grande Irmão está de olho em você”. Há câmeras por
todo lado, em todas as mãos, a serviço do público e do privado. George Orwell
teria noção de que o seu Big Brother romperia os limites de Oceânia para
dominar o mundo? Seria a realidade, depois de 1984, uma refração vulgar de
lentes desfocadas?
Na falta de respostas, só posso dizer que transar em tempos
de guerra soa como anúncio de paz, não desaforo, apesar do exibicionismo dos
enamorados e da psicose dos espectadores. Além disso, qualquer praça tem quatro
paredes quando o amor é urgente. E, se for a do teatro, sexo é pura expressão da
arte.
Meu compadre Caio César Muniz, poeta que Iracema deu de mão beijada a Mossoró, desabafa no Facebook contra aparente gesto de insensibilidade literária. Ao abrir o exemplar de certo livro da autoria dele, descoberto via Google e adquirido com vistas à recomposição do próprio acervo, percebeu que o danadinho estava autografado para uma amiga. A desalmada, embora o tenha recebido de graça, pelos Correios, trocou o presente por alguns tostões.
É, Muniz, isso acontece. Tenho aqui para contar a história, a obra Assu – Gente Natureza e História, do saudoso amigo Celso da Silveira, que adquiri aos 31 de julho de 1999, em Natal. Só não lembro se no Sebo Balalaica, de Ramos; no Sebo vermelho, de Abimael Silva; ou no Sebo Lisboa, de Lisboa. Aos sábados, quando residia na capital, gostava de garimpar rarezas nas livrarias de usados antes de me abancar lá em Nazaré, no Beco da Lama.
A dedicatória enobrece o livro porque o individualiza. Aquele “Assu” destinava-se a Beltrano, “companheiro de outras jornadas”, com “o abraço do admirador” Celso. Pensei em não mostrar ao autor, com receio de parecer enredo, mas, que droga, eu também queria um oferecimento para chamar de meu. Ficou assim: “Ao grande amigo e poeta maior, Cid Augusto, com um forte abraço, agradecendo o resgate, finalmente em boas mãos”. Generoso e meio.
Outra vez, agora com certeza no Sebo Lisboa, quando ainda funcionava na Praça Padre João Maria, encontrei uma plaqueta dedicada ao mestre Raimundo Soares de Brito, na prateleira de escritores do Rio Grande do Norte. Achado surreal, pois Raibrito – quem o conheceu sabe – não se desfazia dessas coisas. Por isso, adquiri o livreto desgarrado e, dias depois, ao pisar em solo mossoroense, cuidei de reconduzi-lo são e salvo à rua Henry Koster, 23.
Não recrimino o desapego aos livros, afinal eles foram feitos para correr de mão em mão e, quanto mais correm, mais cumprem o objetivo de semear palavras, mais fazem “o povo pensar”, como o “germe – que faz a palma” de Castro Alves. Conheço pessoas assim, que, logo após a leitura, doam ou vendem o exemplar. Carlos Drummond de Andrade, se não me fraqueja a memória, fazia isso, com a delicadeza de tirar e guardar a folha de autógrafo.
Havia na Espanha, o Libera Libros, projeto de fomento à circulação de escritos. Seus adeptos consumiam e depois deixavam os volumes em lugares públicos. Antes, porém, colavam etiquetas fornecidas pelo site do grupo nas contracapas, com código de monitoramento, como anilhas em aves migratórias, e instruções a quem os encontrasse. Os felizardos eram impelidos, no tal rótulo, a informar onde os localizou e a deixar que seguissem o fluxo.
Então, não se ofenda com o desprendimento da moça, “Poet! My Poet!” – roubo a expressão de Charles Phelan, advogado, bardo e professor, que costuma me cumprimentar assim, brincando com o “O Captain! My Captain!”, de Walt Whitman. Ela, decerto, quis compartilhar o deslumbre de seus versos. Faça o mesmo, devolva ao seu livro as rédeas do destino. Ele ainda tem muitos olhos para ler e muitas almas para encantar pelo meio do mundo.
Frequento redes sociais desde o começo delas no Brasil. Tive
IRC, Orkut e circulava pelos bate-papos do UOL. Muito antes, ouvia conversas no
145, o “disque-amizade”, fui PX e radioamador. Aprendi até a telegrafar com o
professor Eugênio Silva Filho, no QRV Clube, ao lado de dois gênios daquela
arte, Xavier Júnior e Emerson Azevedo Júnior. Sempre gostei de confabular, e alguns
mecanismos facilitavam a vida do menino tímido.
A contar dos primórdios, especialmente depois que a Internet
superou o grito, o tambor, a fumaça e o satélite, nunca invadi o espaço das
pessoas ligadas a mim por esses elos invisíveis para falar ou escrever algo que
não fosse edificante. Se discordo, não avanço o território alheio dizendo desaforos
ou tentando impor meu modo de enxergar as pessoas, a religião, a política. No
máximo, ofereço elementos para um debate saudável.
Minhas idiossincrasias nascem e morrem em ambiente próprio. Quem
chega ao que produzo por estas bandas, vem de livre e espontânea vontade,
suponho, porque gosta do que escrevo ou me tem por gente boa – Entre os tipos
de jornalistas, segundo andei lendo por aí, há bons repórteres que são
redatores sofríveis, ótimos redatores que são péssimos repórteres, os privilegiados
que dominam as duas artes e os que são só gente boa.
Nunca temi críticas nem me ofendem pontos de vista
discordantes. Do contrário, parodiando Drummond, não me contaria de peito
aberto como quem grita, como quem despe a alma em praça pública. Alegro-me
quando o leitor reage e fico triste, à moda Manuel Bandeira, se não tem “motivo
nenhum de pranto”, de riso, de reflexão, de indignação. A única coisa exigida,
em um ambiente civilizado, é a cordialidade no debate.
Em regra, não discuto comentários. Limito-me a “curti-los”
em reverente agradecimento, sejam positivos ou negativos. Deixo para cada
leitor a tarefa de garimpar as ideias em debate e formar sua opinião. Nunca, em
hipótese alguma, vou a redes sociais de terceiros destilar impropérios. Quando
surgem temas polêmicos sobre os quais desejo me posicionar, faço isso por aqui,
com o zelo de não entrar na esfera pessoal de ninguém.
Mesmo assim, tenho me deparado com indivíduos que rompem as
fronteiras imaginárias da Web e, embora sem vinculação às minhas mídias
sociais, alguns escondidos por trás de identidades falsas, tentam me
constranger com indelicadezas. Certa feita, vi-me obrigado a “privatizar” o Instagram
e o Facebook, pois, além de agressões gratuitas, robôs passaram a disparar contra
mim e meus amigos, a ponto de fazer eu me sentir na Matrix.
Estranho. Freudiano, talvez. Se fulano ou beltrana não gosta
de quem sou, do sobrenome que tenho, da minha descrença ou ideologia, do que
penso, da prosa e do verso que entorno pelos bares, da coragem de quebrar tabus
e da louca paixão pela liberdade, por que cargas d’água perde tempo comigo?
Crie tenência, criatura, tome o rumo da venta, porque a única resposta que terá
de mim será a eloquente explosão do silêncio.
Não devo reclamar da vida. Afinal, se passo por dificuldades
financeiras, isso se deve a incompetência de minha parte, por nunca haver me
preocupado com cargos, bens e valores. Desde que resolvi caminhar com as
próprias pernas, lá pelos 17 anos, raros foram os períodos de tranquilidade financeira.
Também, com as minhas inconstâncias matrimoniais e suas repercussões
econômicas, como diabos alguém prosperaria?
O fato é que estou aqui, às 4h02min, segundo me diz o
relógio do computador, sem conseguir dormir, apavorado com as contas do início
do mês, o vencimento do cartão de crédito e o estouro do cheque especial. A
solução talvez fosse vender alguns livros e discos. Não, Cascudo, Florbela,
Manoel de Barros, Dante, Foucault não têm nada a ver com isso. E os Beatles?
Chico Buarque muito menos, no vinil que ainda toca com açúcar e com afeto.
Podia ter tomado uns tragos para entorpecer as ideais. Ontem
foi segunda-feira e creio haver um restinho de Ypioca prata no congelador. Não
deu. Acabo de sair da covid-19, após 13 dias de molho, completados hoje, e,
apesar de já assintomático, optei por protelar o retorno às atividades etílicas
até o final de semana. Além disso, não pareceu que cachaça cairia bem, porque é
só pensar na garrafa para a saliva descer gritando “u-ís-que”!
A grana por enquanto não dá para o uísque, cuja idade
diminui a cada ano. Privilegiemos a Cosern, que mensalmente nos assalta com
suas bandeiras amarelas e vermelhas, que chegam a aproximadamente 20% do valor
da fatura. Ah, nem vou dizer da gasolina, que não demora vai bater os R$ 8,00 –
oito contos, como afirmaria Abimael do Sebo Vermelho. O carro está na garagem e
só circula em momentos necessários ou especiais.
Quando concluí o curso de direito e superei o Exame da OAB,
pensei que os tempos incertos do jornalismo transformar-se-iam em lembranças
engraçadas – fiz até essa mesóclise para intercalar a saudade que sinto dos
salários atrasados do O Mossoroense –. A advocacia é uma gangorra para
quem não tem clientes fixos nem desenvolveu o espírito empreendedor, a exemplo deste
indivíduo que vos escreve, ainda insone, já às 5h00min.
Tudo bem. Não me queixo. Ainda jovem, no verdor da
adolescência, li Francisco Otaviano e decidi não passar pela vida em branca
nuvem.Se me faltam tostões a esta
altura do campeonato, sobram-me lembranças de amores e madrugadas, patrimônios
imateriais da boemia, sem dizer do talento para cultivar ilusões no terreno seco
dos desenganos. Espera! Deixa abrir a janela. É, o Sol nasceu pálido, mas os
pássaros garantem a claridade.
Testemunhei certa vez, logo que me transferi para morar um tempo em Natal, no fim da década de 1990, início dos anos 2000, o debate acalorado entre os poetas Pedro Grilo Neto e Celso da Silveira, ambos meus amigos queridos, sobre a grafia de “Assu”, na visão deste; e de “Açu”, na perspectiva daquele.
Grilo continua lúcido, ostentando seu elegante sombreiro mexicano, produzindo e esbanjando poesia aos 85 anos de idade. Dia desses, passando pela escadaria de Mãe Luiza, desejei subir até a rua Guanabara para abraçá-lo. Recuei, entretanto, para não o colocar em risco. Tempos de pandemia.
Celso morreu em 2005, no comecinho de janeiro, período no qual deixava sua residência, na Alexandrino de Alencar, e tomava o rumo de Tibau, o “de Mossoró” ou “do Norte”, como dizem para distinguir de Tibau do Sul. A casa de veraneio ficava no Centro e tinha uma piscina que mal o cabia dentro.
Voltando ao diálogo dos vates, Pedro Grilo defendia a grafia Açu, a exemplo de muita gente boa e devota da Irmã Lindalva, centrado em fatores gramaticais. Celso da Silveira, assuense – ou açuense – da gema, recorria à lei de criação do município, carinhosamente emoldurada e pregada na parede.
Pedro Grilo Neto (Fonte: Facebook)
Deífilo Gurgel e Celso da Silveira (Foto: Alex Gurgel)
Detalhe interessante: nos seus livros, Celso grafa Assu, com dois esses, sem acento agudo na letra “u”, enquanto a Lei nº 24, de 16 de outubro de 1845, a da parede, eleva “à categoria de Cidade a Vila Nova de Princeza, com a denominação de Cidade do Assú”, redigido desse jeito, com “ú” acentuado.
Fórmula idêntica pode ser observada na Lei nº 13, de 11 de março de 1835, aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte e sancionada pelo presidente da província, o pernambucano Basilio Quaresma Torreão. Por meio dela, criou-se a “Comarca do Assú” há quase 187 anos.
Já a Lei Orgânica Municipal, promulgada aos 30 de março de 1990, no rasto da Constituição Federal de 1988, tentou oficializar Assu, por meio de emenda proposta por Domicito Soares Filgueira, presidente da Câmara de Vereadores, seguindo a sugestão de ninguém menos que Celso da Silveira.
O debate me remete à teoria de um antigo colega de trabalho, dos bons tempos do jornal O Mossoroense. O rapaz afirmava ter aprendido na aula de Português que a aposição de acento circunflexo em Antônio dependeria da idade do sujeito. Abaixo dos 30 anos seria Antonio e, depois disso, Antônio.
Brincadeiras à parte, a polêmica pode ser fruto do acordo ortográfico celebrado entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, em 1931. Levanto a hipótese porque tal deliberação também suscitou questionamentos sobre Mossoró com “ss” ou Moçoró “simplificado” com “ç”.
Talvez remonte há um pouco antes, 1911, ano em que a Academia de Ciências de Lisboa fez a primeira reforma ortográfica da língua portuguesa visando normalizar o idioma. Apesar de unilateral, o documento serviu de base para todas as convenções do gênero que se seguiram na comunidade lusófona.
“Como regra geral”, diz a proposta portuguesa, “ce, ci, -ç- correspondem a ce, ci, ti latinos, a ce, ci, za, zo, zu do castelhano actual, a ss arábicos, ou pertencem a vocábulos de origem americana indígena, transcritos pelos autores peninsulares”, formalismo reconhecido e utilizado até a atualidade.
Sem querer me alongar nesse aspecto, parece de bom alvitre esclarecer que o acordo ortográfico de 1931 – com perdão do trocadilho – resultou em desacordo, considerando que Portugal em 1940 e Brasil em 1943 tiraram dele interpretações divergentes que só vieram a ser unificadas em 1945.
Segundo as regras de padronização
e simplificação estabelecidas pelo acordo de 1931, consolidado para nós no
formulário ortográfico de 1943, realmente teríamos de escrever Moçoró, como
chegaram a fazer expoentes do jornalismo e da cultura norte-rio-grandenses, nas
décadas de 1960 e 1970.
Situação intrigante envolve o
título de um conto do poeta Carlos Drummond de Andrade, que aparece como “Lavadeiras de Mossoró” na edição de 17 de julho de 1979, do Jornal do Brasil, do
Rio de Janeiro; e se transforma em “Lavadeiras de Moçoró” no livro Contos
Plausíveis, datado de 1981.
O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou o conto as “Lavadeiras
de Moçoró” na edição de 17 de julho de 1979 do Jornal do Brasil, do Rio de
Janeiro. O texto foi reproduzido no livro Contos Plausíveis, de 1981, em que aparece também o “Lavadeiras de Moçoró – II”.
Ocorre que, segundo a versão tupiniquim, “topônimos de tradição histórica secular não sofrem alteração alguma na sua grafia, quando já esteja consagrada pelo consenso diuturno dos brasileiros”. O termo “secular”, por sinal, não remete a período de 100 anos, e sim a coisa bastante antiga.
Desse modo, venceu Mossoró pela mesma razão do Assú. Este, dizem, após consulta do então prefeito Ronaldo Soares a Luís da Câmara Cascudo, nos anos 1980. Para o historiador oficial do Natal, a escrita correta seria aquela contida na lei de criação da cidade, por ser a certidão de nascimento do lugar.
Na falta de intimidade para perguntar a Ronaldo, e sem poder sair de casa por estar com covid-19, pedi ajuda ao jornalista, historiador e poeta Ivan Pinheiro, o Oráculo do Assú. Sem demora, ele me respondeu por WhatsApp que o alcaide submeteu de fato a dúvida a alguém, só não sabe se a Cascudo.
Indaguei ainda se havia emenda à Lei Orgânica acrescentando o acento no “ú”, posto que o texto de 1990 oficializava a escrita Assu. Na ótica de Ivan, esse dispositivo específico da legislação municipal é inválido, considerando que nomes de municípios somente assembleias legislativas podem modificar.
E tem razão. Basta lembrar o processo por meio do qual Augusto Severo voltou a ser Campo Grande. A Assembleia do RN pediu ao TRE que realizasse plebiscito e, pelo desejo de 95,75% do eleitorado local, aprovou a Lei Ordinária nº 10.501, sancionada em abril de 2019 pela governadora Fátima Bezerra.
De toda sorte, a lição atribuída a Cascudo aplica-se igualmente a nomes e sobrenomes. Os Escóssias, por exemplo, mantêm os dois esses desde o século XIX, obedientes ao registro de João da Escóssia, o primeiro de nós, assim como “Sid” ou “Cid” será definido pela grafia averbada em cartório.
Livro de minha autoria sobre a família Escóssia
Abre parêntese. Aproveito a citação a meu nome, tirada de um exemplo de Ivan Pinheiro, nas críticas aos originais deste artigo que se pretendia crônica, para dizer que, na dicção escorreita do acordo de 1945, “o d é sempre pronunciado” no “antropónimo Cid”. Chique, não? Fecha o parêntese.
Em Mossoró não se fez tanto barulho a favor do “ç”, apesar do registro da Wikipedia de que que, pelas “atuais regras de ortografia da língua portuguesa, a grafia correta é Moçoró, pois prescreve-se o uso da letra ‘ç’ para palavras de origem tupi”. Na verdade, para as palavras indígenas, de modo geral.
Em Assú, a peleja continua. O município fechou questão com “ss” e acento no “ú”, a despeito de os adeptos do cê-cedilha terem apoio de outros órgãos públicos, entre os quais o poderoso Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que registra o topônimo “Açu” e indica “açuense” como gentílico.
O Houaiss, meu dicionário predileto, a exemplo do Aulete Digital, define “açuense” como “relativo a Açu RN”. Por outro lado, ao ocupar-se da etimologia, esclarece haver anotações da forma histórica “assuense” desde o longínquo 1845, ao passo que o primeiro registro de “açuense” só aparece em 1948.
Há quem diga não se tratar de mero capricho linguístico, e sim de respeitar a melhor tradição, uma vez que, antes mesmo da Vila Nova da Princesa, o lugar era chamado pelos índios, seus primeiros habitantes, de “taba-açu”, que muitos se aventuram a traduzir, com amparo no tupi, como “aldeia grande”.
Dicionário Houaiss
Vejo com descrença qualquer esforço de tradução dos topônimos do sertão do RN com base nas línguas dos troncos tupi e guarani, inerentes a indígenas do litoral, porque aqui viviam tribos tapuias. O verbete “tapuia”, a propósito, é tupi e era usado por seus falantes para se referir a “índios bárbaros”.
Também não tenho certeza se os ditos “autores peninsulares” referidos nas normas traçadas para o português de Portugal em 1910, a maioria com atuação no século XVII, grafavam “taba-açu”, “taba-assú”, “taba-assu”, e se tinham por base o tupi, porquanto “língua geral”, ou algum idioma exclusivo.
O fato é que as várias práticas linguageiras dos povos do interior, com repertório, gramática e fonologia próprios, não foram preservados. Conforme o mestre Olavo de Medeiros Filho, apenas alguns lexemas foram catalogados, de modo esparso. Mossoró e Assú, infelizmente, não integram esse rol.
A título de curiosidade, ainda de acordo com Olavo, nosso maior historiador na concepção do professor Vingt-un Rosado, “o acampamento principal do rei Janduí ficava localizado no rio Otschunogh (Açu), cujo vale recebia o nome de Kuniangeya”. A lagoa do Piató, por sua vez, era chamada Bayatagh.
Não devia tomar partido, mas, com as licenças de Grilo e de Celso, fico com Assú, pela “certidão de nascimento”. E o faço sem remorso, pois, com “ç” ou “ss”, com ou sem acento no “u”, Sinhazinha tem razão: “Assú é bom, eu posso afirmar!”. E viva a Terra dos Poetas!... Epa, não seria a Terra da Poesia?
Sabiá da Costa é um talentoso percussionista mossoroense, lá
do Rabo da Gata, que vive há anos na Alemanha.
Sempre em dezembro, pousa por aqui para participar dos
festejos de Santa Luzia. No dia 13, vai à procissão da padroeira tangendo o
cortejo de meninos e meninas aos quais ensina carinhosamente sua arte, como
forma de inclusão social.
Certa vez, sabedor de que estava por Mossoró, fui abraçá-lo.
Sai da casa dele maravilhado com os sons, os ritmos, as sensações, as imagens,
e escrevi um poeminha em homenagem ao velho amigo, retratando nosso reencontro.
O SABIÁ
vi o Sabiá
da Costa
do Mar
do Norte
pousar no Rabo da Gata
um trem
de tambores
de apitos
de caxixis
reger baobás
no meio
do mundo
tanger os moleques
pra Santa Luzia
plantar vendavais
na Praça “Pedão”
colher oceanos
em ondas gigantes
do chão sertanejo
do velho quintal
de dona Teresinha.
De repente, logo depois da publicação no Facebook, entrou em
cena outro grande músico, Geová Costa, que deu melodia àquelas letrinhas
acanhadas.
Já estava bastante satisfeito com o resultado, mas, há
pouco, recebi de Geová um vídeo em que ele e Sabiá tocam e cantam juntos os
ditos versos.
Agora, além de feliz, estou emocionado e divido com você
este momento.
O professor José Ricardo da Silveira esteve sexta-feira no meu escritório. Papo vai, papo vem, lembramos de Raimundo Nonato da Silva, talvez o maior escritor do nosso Estado. Nonato nasceu em Martins, mudou-se para Mossoró ainda menino, na condição de retirante da seca, e viveu muitos anos no Rio de Janeiro, mas sem nunca perder o liame telúrico com o sertão potiguar.
Vinha habitualmente à Terra de Santa Luzia para os festejos do 30 de Setembro, em homenagem à libertação dos escravos cinco anos antes da Lei Áurea, resultante dos eventos de 1873. A redação do O Mossoroense era pouso obrigatório, sempre na companhia do mestre Raimundo Soares de Brito. Os dois foram colaboradores do secular jornal de Jeremias da Rocha Nogueira.
Guardo com carinho o retrato em preto e branco feito pelo amigo Luciano Lellys, no qual aparecemos os três no sofá da sala da editoria. Da esquerda para a direita, Raibrito, Nonato e eu, que ainda usava barbicha, um bigodinho cafona e óculos de psicopata americano. Quanto às roupas, continuo a me vestir do mesmíssimo jeito, de calças jeans, camiseta sem detalhes e tênis.
No dia da foto, conversamos a manhã toda. Pouco antes das 12h00min, saímos a pé, atravessamos o beco da casa de Seu Elizeu, pai de Emery Costa, ali por trás da agência central dos Correios; contornamos a Praça Vigário Antônio Joaquim pela calçada da Livraria Independência, da Rádio Rural, da Banca de Zé Maria, do Oitão, e fomos tomar umas depois do adro da Catedral.
Esqueci o nome do quiosque, um trailer, na verdade, estacionado na Praça Dix-sept Rosado, sem mesas ou cadeiras, exceto os bancos altos juntos ao balcão. Jamais esquecerei, entretanto, do suor frio descendo pelas costas, do pescoço ao mucumbu, em resposta imediata ao copo de pinga entornado goela abaixo, em pé, com o sol do Centro de Mossoró dando de paulada na moleira.
Desconheço a razão de Mário Cesariny haver traduzido como Uma cerveja no inferno, o título do livro Une saison en enfer, de Arthur Rimbaud, visto que saison, ao pé da letra, seria temporada. Aliás, se não divago na memória, li certa vez que a expressão remeteria ao modo de servir cerveja em Charleville, cidade natal do poeta francês que comercializava café e traficava armas de fogo.
Fosse Uma cachaça no inferno, diria que o tradutor lusitano andou bebendo aguardente por aqui, no mesmo lugar e nas mesmas condições climáticas que enfrentei lá pelo final da década de 1980. Depois daquilo, passei a me furtar de aventuras etílicas matinais ou vespertinas e me apaixonei pela noite, que me embriaga sem pressa, com a ternura das estrelas.
Às vezes penso
que o desejo de escrever “já se apagou em mim”, como “a luz do cabaré” no Tango pra Tereza, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Nada do que lembro, vejo ou
sinto parece caber nas palavras, que talvez tenham se esgotado quando me perdi do
jornalismo e caí no silêncio engravatado de um escritório. Sinto falta do
frenesi das redações, do barulho das pessoas e das máquinas, do cheiro único de
quando a tinta sangrava da impressora sobre o papel e o engravidava de ideias.
Por outro lado,
não me enxergo no jornalismo “pei bufo” das redes sociais. Sinal de velhice,
talvez, afinal nasci no século XX, sou membro da Geração X, além de, aos 50
anos, haver me tornado cringe – vergonhoso, para os “Z” e os
“millenials” – por gostar de café, sexo, drogas lícitas e Rock and Roll.
Para completar, estou 15 quilos mais gordo, motivo pelo qual, por maior que
seja a ginástica semântica, os atuais contornos dessas mídias não me abarcariam
a cinturinha sem fustigar a consciência.
Tirando honrosas
e felizes exceções, a notícia ganhou a proporção de um pires de lágrimas, mas com
profundidade suficiente para afogar a verdade, que agora é espancada,
espezinhada, violentada, quando não assassinada a sangue frio e sua morte
repercutida com alarde, ene vezes, com especulações tanto sacanas quanto
escrotas. A velocidade e a extensão disso, só sente quem sofre a danação
eterna. É o fogo do inferno queimando a honra, a alma e os ossos de culpados e
inocentes.
Imagine abrir o
celular após longa noite de sono e se deparar com o relato da própria morte
estampada em perfis de redes sociais e blogs. Mesmo dormindo, as informações
dão conta de que você integrava gangue de perigosos ladrões de banco cujos
integrantes sucumbiram em confronto com a polícia há poucas horas, a
quilômetros de distância de sua cama. Seu papel na associação criminosa era o
de “explosivista”, embora não tenha destreza sequer para soltar chumbinho no
São João.
Para piorar,
vem a descoberta de que vários incautos repostaram a barrigada sem o menor
senso de responsabilidade – barrigada, registra-se, significa erro grosseiro na
linguagem jornalística do século anterior –. A fake news deu cria,
ganhou o mundo. A partir de agora, o tempo todo, você precisará provar duas
coisas a conhecidos e estranhos: que não é criminoso e que o interlocutor,
confuso, não está de conversê com a alma penada do cabra defuntado no bala-vai-bala-vem
com forças estatais.
Fico logo
enjoado. Sorte que Lázaro Amaro arrastou o violão antes de eu começar a dizer
como mentiras midiatizadas podem literalmente matar. Ouço o dedilhado de “Zará
Tempo”, samba que vem por aí; e a onomatopeia do uísque meando a caneca. Lázaro
e eu fazemos uns troços juntos na poesia, na música, na boêmia. Temos ainda o
privilégio de defender o bom jornalismo advogando para profissionais éticos que
buscam a realidade e fazem da crítica uma arte. E assim, a luta continua.
Nunca me
lembro dos aniversários das pessoas, apesar dos avisos do Facebook. E
isso inclui pai, mãe, irmãos, mulher e filhos. Beirando meio século de vida, às
vésperas do exame anual de próstata, até a minha data natalícia tenho feito
questão de esquecer.
Portanto,
não vou mentir dizendo que recordei assim, do nada, como que tomado por uma
epifania. Foi Caio César Muniz quem me escreveu ontem: “Poeta, lembrando: amanhã
101 anos de Vingt-un”.
Todo mundo elege
um “braço direito”. Vingt-un, pela deficiência auditiva acentuada, precisava, na
verdade, de um “ouvido direito”, que era o bom e velho Muniz, versejador inspirado,
jornalista competente, editor, boêmio e mais um monte de coisa.
Tenho o
privilégio de os haver apresentado, um ao outro. Depois conto essa história,
que, de tão maravilhosa, merece espaço próprio.
Jerônimo
Vingt-un Rosado Maia, caçula dos 21 filhos de Jerônimo e Isaura Rosado, foi quem inventou a
expressão “País de Mossoró”, inspirou a criação da Esam – hoje Ufersa –, da Biblioteca
Ney Pontes Duarte, do Museu Lauro da Escóssia e de tantas outras instituições culturais,
sendo a maior delas a Coleção Mossoroense, com milhares de títulos publicados.
Era meu
tio-avô e, apesar da diferença de idade, fomos grandes amigos. Tanto que, certa
vez, mandou deixar um livro para mim, na redação do jornal O Mossoroense,
com uma dedicatória que demorei a decifrar – porque a letra dele, como afirmava
Cascudo, era ruim até escrita à máquina –, mas que dizia: “Quem disse que eram
21? Você é o 22”.
Saudade de você,
meu tio, meu mestre, meu amigo. E meu irmão.
Palavras
são o meu ganha-pão desde os 14 anos, quando passei a trabalhar no jornal O
Mossoroense. Aquele emprego foi o último recurso paterno para tentar salvar
o filho rebelde das trevas da ignorância. Rebelde sem causa, diga-se de
passagem. O importante é que a partir dali a leitura e a escrita passaram a ser
ofício e lazer, desespero e salvação, loucura e terapia.
Não,
eu não gostava de ler. Sendo mais exato: odiava! E esse sentimento, como desabafei
certa vez em uma crônica dominical, decorria do tratamento elitista e esnobe
que se dá ao leitor iniciante nas instituições de ensino, a começar pela
imposição de textos inadequados à idade das pessoas, bruta sacanagem que leva o
indivíduo a pensar que não nasceu para a coisa.
Lá
pelos 10 anos, por exemplo, a escola me obrigou a ler, em letras mínimas, as
635 páginas de Moby Dick, do escritor estadunidense Herman Melville. Para
se ter ideia, a edição original publicada em 1851 tinha o título de A Baleia
e era dividida em três volumes. Perco o fôlego só de lembrar a narrativa de
Ismael sobre a peleja do louco Capitão Ahab com a magistral cachalote.
Depois,
Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo e Olhai os Lírios do Campo,
de Érico Veríssimo. Quase furo a página com os olhos de tanto revisitar o sexo
entre Ana e Pedro – foi dos primeiros alumbramentos da infância, parodiando
Bandeira. Tais obras, embora geniais, não servem para crianças nem adultos iniciantes
na delicada arte de desvelar sentidos latentes além da escrita.
Certa
feita, na aula de português, foi-nos exigida a leitura de Jorge Amado. No
final, tentando agradar a professora com meu falso interesse, perguntei onde
adquirir “Jubiaba”. Ela, mãos na cabeça, testa franzida, olhar fulminante sobre
a armação grossa dos óculos, retrucou: “Jubiaba, não, seu analfabeto! É Jubiabá!”.
E assim embarquei na aventura de Antônio Balduíno.
O
bloqueio em relação aos livros começou a ser superado por volta dos 15 anos.
Lembro que era janeiro, porque estava com a família em Tibau, quando pedi a
Vingt-un Rosado, fundador da Coleção Mossoroense, que me emprestasse uma obra de
história de Mossoró. Queria saber mais sobre a libertação dos escravos, o Motim
das Mulheres, a batalha com os cabras de Lampião.
No
outro dia, ele me deu 50 títulos relacionadas à cidade e ao Nordeste. O velho
mestre, amigo querido de saudosa memória, apresentou-me ao melhor da literatura
potiguar. Diante dos olhos maravilhados do menino burro desfilavam textos de Nonato,
Raibrito, Cascudo, Guerra, Fausto, Milton Pedrosa, Maria Sílvia, Zila, Brasília
Ferreira, Lauro da Escóssia, Jaime Hipólito.
Minha
mãe, testemunha de tudo, aproveitou para dar o empurrão que faltava. Era
necessário ler tudo aquilo com bastante atenção – dizia-me em tom grave –, pois
o doador costumava inquirir as pessoas sobre os exemplares doados. Vingt-un nunca
perguntou patavinas, mas continuou fornecendo livros e eu continuei a lê-los,
linha a linha, até me encontrar no universo da linguagem.
Adiante,
transitando do clássico ao popular, matando a sede em fontes de prosa e verso,
fica difícil dizer das leituras que me tangem o pensamento, que se digladiam no
discurso ilusoriamente meu, que empunham a caneta quando escrevo, que me
constituem sujeito. Assim, sou o que sou, e o que sou é o conjunto disforme de
leituras dos mundos, das pessoas e dos signos.
Tipo
penal é o artigo da lei definidor de um delito e, por consequência, de uma
conduta proibida. Todo ele protege determinado bem jurídico, que pode ser
definido como valor ou interesse do indivíduo ou da sociedade. O art. 121 do
Código Penal (homicídio), por exemplo, resguarda a “vida”, enquanto o art. 216
(estupro) tutela a “liberdade sexual”.
Usada
pelo ministro Alexandre de Moraes (STF) para prender o deputado federal Daniel
Silveira (PSL-RJ) e pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) para pedir
que o youtuber Felipe Neto fosse investigado, a famosa Lei nº
7.170/1983, símbolo da ditadura de 1964, tutela segurança nacional, ordem
política e ordem social.
Felipe
Neto, como se sabe, rotulou Jair Bolsonaro (sem partido), pai de Carlos, de
“genocida” pelo comportamento do presidente da República ante à pandemia de
Covid-19. Tal afirmação, entretanto, não representa qualquer lesão ou ameaça de
dano ao território nacional, à soberania, à federação, à democracia e nem ao
chefe do Poder Executivo.
Além
disso, o art. 26 da Lei de Segurança Nacional, usado contra o youtuber
fora do contexto de seus objetivos, é inaplicável porque a conduta atribuída a
ele não se adequa ao tipo penal. Fala-se ali em “caluniar ou difamar” o chefe
do Executivo, do Senado, da Câmara e do STF, mas o caso, no máximo, poderia ser
enquadrado como injúria.
Calúnia
(art. 138 do CP) é a atribuição de prática de fato definido como crime, sabendo
ser a acusação mentirosa. Difamação (art. 139 do CP) consiste na imputação de ato
que, mesmo não sendo crime, atinge a reputação da vítima. Injúria (art. 139 do
CP) ocorre quando se ofende a dignidade ou o decoro com a atribuição de qualidade
negativa.
Xingar
alguém de “estuprador”, “ladrão”, “estelionatário” é diferente de afirmar que o
dito cujo “estuprou”, “roubou” ou enganou para obter “vantagem ilícita”. Na
primeira sequência, adjetiva-se depreciativamente o sujeito, injuriando-o. Na
segunda hipótese, o ofendido é apontado como autor de ação criminosa e,
portanto, caluniado.
Chamar
Bolsonaro de “genocida”, como se
percebe, é muito diferente de dizer que Bolsonaro submeteu intencionalmente os
brasileiros a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição
física total ou parcial, tanto por se omitir quanto por boicotar medidas de
prevenção à pandemia de Covid-19 sugeridas pela comunidade científica.
Pelas
características da polêmica, vale lembrar a “teoria da proteção débil do homem
público” consagrada pela jurisprudência brasileira, inclusive a do STF, no
sentido de que o ocupante de cargo público, especialmente o político, deve
estar preparado para suportar críticas do povo e da mídia às suas opiniões e
posturas, por severas que pareçam.
Em
resumo, Felipe Neto não cometeu crime. A Justiça, a propósito, suspendeu o
procedimento diante de outra aberração: a abertura por um delegado civil, a
pedido de Carlos Bolsonaro, de investigação que só poderia ser feita pela PF, mediante
requisição do MP, de autoridade militar responsável pela segurança interna ou
do ministro da Justiça.
Lembra-se de Castelo? Aquele
nomeado cônsul do Brasil em Havana depois de engabelar todo mundo fingindo
falar javanês? Enquanto você pensa, corro para esclarecer que javanês nada tem
a ver com a capital da República de Cuba. É o idioma falado na ilha de Java, na
Indonésia; e na Federação da Malásia, no sudeste asiático. Se a informação for equivocada,
cobre as explicações ao Houaiss.
Se nunca ouviu falar, sugiro ler O
Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto. É curto, leva, como diria Gilberto
Gil, o “Tempo que levava Rosa/ Pra aprumar o balaio/ Quando sentia que o balaio
ia escorregar”. Quem preferir, pode ouvir em algum audiolivro e até assistir no
Youtube. Há uma montagem excelente da TV Escola, com Carlos Alberto Riccelli,
Sérgio Mamberti, Sérgio Viotti e Zózimo Bulbul.
Leia, ouça ou assista, tanto faz.
Perceba como é fácil alguém que sabe zero sobre determinado assunto nos enganar
com fanfarronices, arrotos de erudição, becas e anéis de doutor. Basta falar ou
escrever umas palavrinhas inusuais – para ninguém entender – que o sujeito se
torna um grandessíssimo... intelectual, louvado e bajulado. Tenho visto muitos
assim nesta lida de contador de história.
Há cerca de 15 anos, durante
evento com discursos sem fim, recebi do poeta e jornalista Caio César Muniz,
que estava sentado ao lado, um poema dizendo: “Era uma reunião/ de
intelectuais./ Grandes intelectuais!/ E eu só abri a boca duas vezes:/ uma para
bocejar,/ outra para me despedir...”. Cada orador querendo demonstrar maior
domínio do nada e já sonhando se tornar “bacteriologista eminente”.
Eles não me incomodam. São
divertidos, especialmente quando comentam livros que não leram e até que não
existem. Sim, é verdade, posso garantir: eu mesmo inventei o nome da obra e apontei
um colega de trabalho como autor. Os presentes confirmaram a excelência dos
textos do escritor fantasma, só para não passar por ignorantes, sem saber que o
homem jamais rabiscou uma linha sequer.
Em regra, tais criaturas são
inofensivas. Correm apenas o risco de “explodir de vaidade”, como diria o
mestre Deífilo Gurgel, esse, sim, grande na prosa, no verso e na humildade. Droga!
Rimei “vaidade” e “humildade”, e me desculpo pelo mau estilo, mas aproveito
para esclarecer que nem sempre a rima combina e que, embora disfarçado de leão,
segundo a fábula de Esopo, o jumento um dia vai relinchar.
“Há no país uma legenda,/ que
ladrão se mata com tiro”. Esses versos são de Carlos Drummond Andrade e foram
extraídos da primeira estrofe de Morte do Leiteiro, poema integrante do livro A
Rosa do Povo, de 1945, um dos meus prediletos. Vou fazer aqui uma paródia – o
poeta me perdoe, se puder –, mas parece haver no país outra legenda, que
pesquisa se mata com pesquisa.
Algo parecido também com a Lei de
Talião: pesquisa por pesquisa, manipulação por manipulação. De manhã, o
candidato dos Montecchios divulga sondagem afirmando estar 15 pontos na frente,
conforme o respeitável instituto... qual? À tarde, a campanha dos Capuleto
solta os números do... do... do... Ah, deixa para lá, em que supera o
adversário com os mesmíssimos 15 pontos.
Lá vou eu acanalhar mais uma poesia
maravilhosa, com veemente e antecipado pedido de desculpas a Vinícius de Moraes,
para dizer que essa estratégia de confundir, não de explicar, provoca em nós,
eleitores, a estranha sensação de que faz escuro de manhã, entardece de dia,
anoitece de tarde, restando uma noite de ardor nos braços da dúvida, quando até
o este quer ser norte.
O acesso a pesquisas eleitorais
verdadeiras deveria ser encarado como direito fundamental dos cidadãos e
cidadãs. A tentativa de influenciar a vontade da população e de animar ou desanimar
militâncias partidárias com estatísticas distorcidas, conforme os interesses do
contratante, insulta e fragiliza a frágil democracia brasileira, que já tem
inimigos de sobra para enfrentar.
O legislador e a Justiça
Eleitoral precisam refletir sobre o tema. As normas atuais não bastam para impedir
as pesquisas fakes. Resta, então, proibir a divulgação de toda e
qualquer sondagem nos períodos de campanha ou estabelecer critérios mais amplos
de transparência dos dados coletados, além de punições severas para aqueles institutos
que errarem sem querer querendo.
Quanto às de 2020, sabe-se desde
ontem que a maioria mentiu – e mentiu pra cacete! –, conforme os interesses dos
contratantes. E, infelizmente, fica por isso mesmo. Como ninguém será punido,
nem pela opinião pública com a sua memória curta, os mesmos “estatísticos” estarão
aí, em 2022, oferecendo meios para engabelar
os desavisados que apostam na ilusão do voto útil.
Periodicamente, a política impõe
a ditadura das cores. Nos Estados Unidos, o azul de Joe Biden triunfou sobre o vermelho
de Donald Trump, espalhando-se pelo mapa americano como se fosse um tabuleiro
de War, afinal, na definição de Carlos Brickmann, “a política é uma das
mais cruéis modalidades de guerra”.
A situação se complica no
interior do Brasil, pois o ato de se vestir com roupas de determinado matiz
pode parecer declaração de apoio a candidato “A” ou “B”, motivo de simpatias e
hostilidades. Quanto menor o lugar, maior o pega pra capar entre seguidores das
candidaturas que se polarizam lá no topo.
Quem mora em uma cidade e
trabalha em outra precisa ter cautela para evitar ruídos de informação, em
especial se o patrão mistura negócios e militância. Isso porque, diferentemente
do sistema binário dos EUA, a mesma cor pode ser utilizada por segmentos
partidários diferentes em municípios vizinhos.
Contam que no “País de Mossoró”, aqui
no caloroso sertão do Rio Grande do Norte, quando apenas o verde e o encarnado
se engalfinhavam pelo poder, um juiz de fora, de origem familiar e simpatia política
desconhecidas, foi designado para a comarca e, consequentemente, para presidir
as eleições.
Corriam nos anos 1960. Pela
liturgia do cargo, o homem só se vestia de paletó escuro e era discreto, até
por ser recém-chegado no município de pouco mais de 50 mil habitantes. Era, contudo,
observado amiúde pelos partidários da Aliança Renovadora Nacional (Arena) e do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB).
Certa feita, o magistrado entrou rapidamente
em uma farmácia, no Centro. Mal saiu, um olheiro que o seguia bem de perto,
quase pisando no rabo da toga, indagou ao balconista o que diabos ele havia comprado.
“Escova de dentes”, respondeu o funcionário, dando brecha para a pergunta
fatídica: “De qual cor”?
O número 20 é o meu predileto. O da sorte, se acreditasse em
forças cósmicas capazes de alterar o destino de um vivente. A conjunção 20-20,
então, nem se fala, pois, entre os signos que povoam a minha cabeça, representa
a memória afetiva de duas pessoas de nome Vingt, palavra francesa que justamente
significa “20”.
Dessa maneira, quando escrevo 2020, desejo feliz 2020, faço
planos para 2020, preocupo-me com 2020, o inconsciente projeta não uma imagem, não
um ciclo, mas um sentimento. Ou seria o conjunto caótico deles? Não arrisco
traduzir em palavra. Sei apenas que me tomam as memórias de 20, meu avô; e de
20, meu irmão.
De súbito, eu, descrente, ouço vozes de outro mundo. A voz do
meu avô, ensinamentos que ainda hoje tento seguir à risca. A voz de meu irmão,
lições de generosidade tão fortes, tão dele, que, francamente, nunca me senti à
altura. Tudo ao mesmo tempo, como na letra de Antônio Maria, “uma voz, como um
homem só”.
Não menos de repente, o abraço vigoroso, tradução corpórea da
ternura. E do abrigo. Vêm aromas e sabores, aventuras na Mororó, brisa em
Tibau, refúgio na Dionísio Filgueira, meninice no Rabo da Gata. Mulheres. Ah,
meu avô! Ah, meu irmão! Gerações muito distantes, inalcançáveis, homens muito
parecidos em mim.
Bora lá, 2020! Reage logo, criatura! Vê se mostra a cara
antes do Carnaval! E, puta que pariu, faz favor de ser bom do começo ao fim. Nem
precisa ser ótimo, basta honrar a simbologia, porque, acima dos búzios, do tarô,
das bolas de cristal, do zodíaco, da numerologia e de todos os salamaleques, governam
as predições do afeto.
Nada de novo. Nada muda.
Ou seria tudo se repete? Cansado. Na verdade, exausto. Dia a dia, a luta velha
se reapresenta de maquiagem nova, corte de cabelo da moda e roupas do momento,
mas com os cheiros de anteontem. E o que sobra é lutá-la arreganhando os dentes
com o sorriso do primeiro enfrentamento. A despeito do cansaço. Apesar da
impaciência.
Assim, vou à luta, rogando
todo santo dia, e todo dia de cão também, que essa peleja de culpados e
inocentes afaste-se da minha pena e me deixe partir. Na verdade, voltar. A
exemplo de Ulisses, prefiro a ilha primordial, prefiro a inquietação de Ítaca
ao conforto da imortalidade e ao gozo da ninfa de Calipso. Certas ilhas, disse-me
um gauche, “perdem o homem”.
Vem daí a dificuldade de
juntar dois ou três punhados de palavras que não carreguem na alma aquele
complexo de petição, para arremessá-las e vê-las escorregar de unhas cravadas
na tela estática do computador, rasgando entrelinhas abissais inundadas de suor
no dorso de uma crônica indecente capaz de seduzir às profundezas e desemoçar os
sentidos.
Bandeira, Bandeira!
Fartei-me do lirismo estrito do artigo 5º e da erudição asseada dos doutores. Excelência,
para mim, sempre foi a prosa do Beco da Bosta. E viva Dorian, que nunca disse,
mas ensinou, na prática, que a glória do cronista é a indecência do texto nu,
com vergonhas à mostra, despido de todos os salamaleques em direito admitidos
ou exigidos.
O que se escreve e não
liberta, antes angustia. Nem orgulha nem toca. Um tempo, Cid Augusto,
jornalista por amor, advogado por necessidade, tangedor de prosa e poeta quando
bebe, só escreverá o que quiser. Se quiser. Quando quiser. Por hoje,
entretanto, há de sufocar a rebelião entre as penas, porque a musa não bota pão
na mesa nem uísque na xícara.
“Qual a diferença entre orquestra sinfônica e
orquestra filarmônica?” Perguntei sabendo a resposta – falava-se que a
sinfônica era mantida pelo Estado, enquanto a filarmônica subsistia de
investimentos privados –, mas foi a desculpa que me veio à mente, “de chofre”,
como diria o poeta Marcos Ferreira, para abordar Hédimo Jales, o Capitão
Caverna, naquela tarde, no início dos anos 1990.
De tão vivo na memória, até parece ontem. Hédimo Jales
e Caby da Costa Lima conversavam na calçada do jornal O Mossoroense. Tasquei a
pergunta, sem ao menos cumprimento, e Caverna prontamente respondeu aquilo o
que, na verdade, aprendi com ele próprio, dias antes, num “aulão” preparatório
para o vestibular da Uern, à época Urrn – Universidade Regional do Rio Grande
do Norte.
Precisava ser amigo dele. De Caby, já o era, e o
camaradinha nos apresentou com a velha história de que me tirou o cabaço. “No
microfone!”, explicou na sequência, para apaziguar os olhares de espanto. Isso,
porque me fez balbuciar alguma coisa para os ouvintes da Tapuyo, em 1980,
quando, aos nove anos, entrei no estúdio da rádio e dei de cara com aquele
sujeito de tamancos e cabelo black power.
Pois bem, estava decidido a me aproximar do Capitão
desde quando testemunhei o cara recitar poemas de Gregório de Matos Guerra, com
uma paixão contagiante... “A vós correndo vou, braços sagrados,/ Nessa cruz
sacrossanta descobertos/ Que, para receber-me, estais abertos,/ E, por não
castigar-me, estais cravados”... Buscando a Cristo é o título dessa obra da fase
religiosa do “Boca do Inferno”.
Tornamo-nos não apenas “muito bons amigos”, tomando
aqui a expressão de Caby da Costa Lima, pois da amizade, das farras, das
noitadas de prosa e verso tanto no alto quanto no baixo meretrício, surgiu a
admiração recíproca. De repente, não sei se motivo de orgulho ou de desespero, minhas
mal traçadas tornaram-se objeto de análise em turmas de literatura de afamadas escolas
de Natal.
Certa madrugada, toca o telefone. Do outro lado,
Hédimo no fogo dos primeiros meses da separação conjugal, contando estar no
motel com a namorada linda e nua à sua frente. “Preciso de um soneto”, ordenou-me,
“e o título é Deusa Materializada”. Ponderei: “Porra, Capitão, pela caridade, somos
amigos, como vou imaginar sua namorada... ?”. E ele interrompeu: “Não tenho
ciúme de você!” Deu nisto:
DEUSA MATERIALIZADA
Para a deusa ser carne um só momento,
É preciso que o homem seja fera,
Um louco a encontrar a primavera
Nas folhas que o outono lança ao vento.
E vê-la assim em pelo, não se espera,
Nua e crua entre a paz e o movimento,
É ver as faces mil do encantamento,
É gozar nos espasmos da pantera.
Venha a mim, deusa-mãe da tempestade,
Filha do vento, irmã da claridade,
Bendizer essa ardente insensatez.
Venha logo, tangendo a velha chama,
Receber oferendas sobre a cama,
Fazer-se carne ao menos uma vez.
O Captain! my
Captain!, eis-me aqui outra vez, o eterno aluno saudando-o com o verso de Walt
Whitman, pois hoje, 12 de fevereiro de 2018, é seu aniversário e,
independentemente disso, você é digno de todas as homenagens, todos os dias. Desejo-lhe
saúde, saúde... e saúde para que o privilégio de sua amizade e o brilho de sua
inteligência nos guie por mais 59 anos. Pelo menos!