sábado, 29 de novembro de 2008

A musa do meu amigo

Linda, tesuda e, aparentemente, sensível aos apelos da carne. Passa derramando o mar de seus olhos verdes sobre nós, reles criaturas mortais, a ponto de quase nos afogar em terra firme. Todos a amamos, um de meus amigos em especial, na distância platônica que ele mesmo criou e não consegue vencer. Fidelidade! O rapaz é fiel à namorada.

Nunca nos dá o menor cabimento, apenas segue caminho, aprimorando o molejo sobre os saltos, e isso em gesto de pura maldade, para aumentar a fome canina dos olhos da rapaziada. Quando muito, a danada projeta a claridade do sorriso em resposta aos bons-dias. “Meu Deus”, o pessoal grita o verso de Vinícius, “eu quero a mulher que passa!”

Meu amigo, coitado, sofre horrores. Os que desejam a dita cuja, sem deixar de torcer pelo companheiro, sofrem por solidariedade. É deveras triste vê-la grudada ao tórax de sujeito qualquer, invadida por beijos sebosos, atada em abraços repressores, profanada à flor da pele por mãos cheias de dedos e sabe-se lá por que mais, longe dos seus vigias.

Aqui para nós, e no melhor sentido da expressão, a tal musa é uma grandessíssima e maravilhosa safada. Alta noite, bar da praça, violões em sol, enxerguei-a por entre sombras, trocando-se em miúdos com um sujeito atarracado e carrancudo. Nem bem amanheceu, encontrei-a noutro canto, dependurada num almofadinha de paletó e gravata.

O leitor pode imaginar, diante das palavras que acabam de cair no papel, que estou com inveja, como se as musas não pudessem sucumbir a calores humanos, a não ser os meus. Na verdade, estamos, eu e a platéia de babões, com a estranha sensação de cornice indireta, mas tudo isso com o maior respeito ao nosso amigo e à sua paixão platônica.


segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O fantasma, o livro e as flores


O fantasma mirando o rosto eterno
Refletido em retalhos de memória,
Tentando recompor a própria história
Pelos cacos do espelho do inferno.

O livro empoeirado numa estante,
Ornado com as teias das aranhas,
Traz poemas latentes nas entranhas
Do corpo do papel agonizante.

Flores murchas sedentas de perfume
Fadadas a morrer em jardineiras
De túmulos caiados de ciúme.

Todos eles são quem, perdido em medos,
Oprimido por rugas, por olheiras,
Deixa o tempo escapar por entre os dedos.


domingo, 9 de novembro de 2008

Memorial


As circunstâncias levaram-me a evocar memórias. As profissionais, somente essas interessavam para compor um documento rotulado “Memorial”, obrigatório em determinadas oportunidades, a exemplo daquela. Gosto de me contar, é bem verdade, gosto de declarar minhas paixões eternas, em parte vividas, em parte inventadas, sempre com a liberdade homeopática de diluir a realidade em oceanos de fantasia, protegido na licença poética das crônicas.

Aprendi com Drummond que o meu coração é muito menor que o mundo, pois “Nele não cabem nem as minhas dores”. Foi também o poeta de Itabira, ao receber de um anjo torto a missão de “ser gauch na vida”, quem me ensinou que por isso gostamos de nos contar, de nos despir, de nos gritar. “Por isso freqüento os jornais”, diz ele, “me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos”, mas sem me descuidar da trama, das leis do imaginário.

As lembranças expostas à claridade, sem um tiquinho de autonomia criativa, perdem a mobilidade. Já dizia Saramago, n’O Ano de 1993: “Quando o sol se move como acontece fora das pinturas a nitidez é menor e a luz sabe muito menos o seu lugar”. Melhor a inquietude da luz em movimento, ressaltando pontos diferentes de imagens diversas, conforme o estado de espírito do observador, do que a palidez estática da nobre absoluta verdade.

Desenhei-me virtudes, pois o instante exigia tal postura. Não sem antes lançar mão de Neruda para alertar os três leitores da nefasta peça, sobre o fato de que “Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim”. Escapei por pouco de me dizer humano enquanto cumpria a trágica missão de me dizer super-homem, sem as marcas da noite enorme neste corpo e nesta alma pequeninos.

É preferível correr na inconstância do sol em sobressaltos do que fixar o passo nos trilhos da perfeição, qualidade inatingível, ilusão dos soberbos. Ah, meus amigos, que maravilha respirar a liberdade de me reinventar nas palavras, sem preocupação de sofrer constrangimentos acadêmicos. Eu sou a matemática inexata dos signos da irrealidade que me embriaga o sentido, e essa sensação me deixa altamente excitado, porque a sobriedade é um porre.


domingo, 2 de novembro de 2008

Um beijo


Carinho não se nega a um amigo,
Inda mais se ele está embriagado,
Sofrendo feito doido atormentado,
Perdido pelas noites, a perigo.

Sussurrando uma prece neobarroba,
Implorando com fé, consolação,
Estrelinha qualquer destas que estão
Iluminando o céu da sua boca.

Um beijo, minha flor das luas-cheias,
Só unzinho, com língua e com saliva,
Daqueles que se espalham pelas veias.

Desabrocha em meus lábios toda fúria,
Esbanjando o calor da chama viva,
Matando em mim a sede de luxúria.