sábado, 28 de dezembro de 2013

Senhor Alguma Coisa


A arqueologia filosófica de Michel Foucault, um dos grandes pensadores do século XX, destrói o poder como algo onipotente, onisciente, monolítico, exercido do centro para as extremidades por força soberana implacável, única, o senhor frente aos escravos, o governo que domina cidadãos por meio de seus aparelhos repressores e ideológicos.

Segundo ele, as relações de poder são heterogêneas e se realizam em níveis complexos atravessados por outros níveis coletivos e particulares. A imagem que me vem à mente, lendo Michel Foucault, é a de uma teia de aranha, ou melhor, de uma teia social em que todo fio e cada conexão são pontos instáveis de reflexo e refração de vários poderes.

Há, no entanto, quem se deixe iludir pela interpretação errônea do poder absoluto e tente exercê-lo pela força institucional dos cargos, até perceber - se tiver sorte - a ingenuidade da pretensão. O poder é cachaça envelhecida em barril de sândalo, que domina tanto pelo cheiro quanto pelo álcool, e embriaga até os homens que se declaram sóbrios.

Conheço excelentíssimos camaradas de fino trato, equilibrados nas feições, fiéis à palavra de Deus, que, contrariados, encarnam a besta-fera. Os menos tarimbados lançam mão do relho, e batem, e berram, e berram, e batem, enquanto as raposas fustigam sem perder a serenidade, mas com o mesmo objetivo de humilhar demonstrando quem manda.

A propósito, ouvi de Ariano Suassuna, numa aula espetáculo, como é triste a redução do indivíduo à condição de autoridade. Meu avô materno, passado na casca do alho na lida com seres humanos em "estado de cargo", prevenia quem arrotava intimidade com figurões, para ter cuidado com as mudanças que a giroflex promove no espírito do sujeito fraco.

Quando me deparo com um tolo inebriado pelo poder que exerce, estilo Luís XIV, incorporando-o como algo intangível, lembro-me na hora de Pateta. Pateta, aquele cachorro Bloodhound do desenho animado de Walt Disney, no episódio inspirado na obra "Strange Case of Dr. Jekyll & Mr. Hyde", para nós "O Médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson.

Brilhante metáfora das mudanças de comportamento das pessoas, conforme os aparelhos de poder disponíveis, a animação descreve os conflitos morais da personagem central. É a história do Senhor Andante, cidadão honrado, gentil, incapaz de machucar uma mosca, que, ao entrar no carro, vira o Senhor Volante, um monstro infernal, incontrolável.


Igual Pateta na armadura automotiva, muita gente se transforma no Senhor Alguma Coisa no breve e efêmero contato com instrumentos de exercício de poder, até ser consumido e desmoralizado. Aprendi com Foucault que o poder não existe, sendo a figura do plenipotenciário uma falsa percepção da realidade, e aqui digo eu, que embriaga os idiotas.

Diante de criaturas dessa ordem, recomendo a humildade destemida, pois, voltando às lições do meu saudoso avô, por vezes precisamos abrir os braços para não sermos engolidos. Na maior parte do tempo, contudo, basta observá-las piedosamente, enquanto, a exemplo do catoblepas, animal da mitologia etíope, comem os próprios pés. E caem.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O colecionador de imagens


Permanecemos aqui, trinta e tantos anos depois. Eu e minha irmã. Quando não mais estivermos, nem eu nem ela, aquele instante capturado na fotografia – quem a terá feito? – continuará vivo, pulsante, na imaginação de quantos nos virem crianças naquele cenário onde ensaiamos nossos primeiros passos.

Rua Meira e Sá. Portão largo, coqueiros altos, cisterna, choro antigo de menino besta, queda, dentes quebrados, cheiro de sopa, dos pães de Kiko. Nas imediações, Mercado Central, Beco das Frutas, Catedral de Santa Luzia. A casa de doutor Vingt e dona Lourdes... de dona Alice... de dona Treze... Hotel Caraúbas...


Lara nem lembra, nem poderia, e ainda brinca: “Deixe de conversa, Cid Augusto!”. Juro, eu lembro. Em pedaços, mas lembro. Dessas e de outras coisas. Detalhes, apenas flashs, nada completo, somente o bastante para enxergar, com olhos do hoje, a esperança estampada nos olhinhos da eterna criança do ontem.


Há outras fotos. A de um beijo, por exemplo. Não exatamente a do beijo, a da moça do beijo que evoca a trama, a saliva, o desejo. O desencontro. O reencontro. Maravilha de destino! Dorme, a mesma criatura de olhos castanhos, a poucos metros de mim, enquanto a madrugada, devassa, abre as pernas para o Sol.

Quantas lembranças! Coisas do tempo do “Do Bumba” revividas graças a Caby da Costa Lima, nosso Camaradinha, colecionador de amigos que, de tempos para cá, resolveu também juntar imagens. Imagens de amigos e de alguns ilustres desconhecidos, para, por meio delas, contar a História humana de Mossoró.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Viva Madiba!


Corriam os anos 1980, quando ouvi em Salvador um artista de rua entoar no Pelourinho "Libertem Nelson Mandela", espécie de lema internacional contra o apartheid na África do Sul. Para ser sincero, não sabia de quem o sujeito falava, mas fiquei impressionado e comovido.

Busquei respostas na biblioteca de casa, já que não existiam as facilidades da Internet, o "professor" Google, essas coisas todas. E nela estava uma referência a Madiba, a partir da qual passei a ler tudo o que fui encontrando sobre ele, especialmente textos jornalísticos.

Naquele tempo, a "Grande Imprensa" vencia com dificuldade as barreiras geográficas do País e pouco nos chegava. Meu avô, que se revezava entre Brasília e Mossoró, costumava presentear-me quinzenalmente com edições da Folha de S.Paulo e do Correio Braziliense.

Sabedoras dessa admiração, algumas pessoas, sempre que encontram, mandam para mim publicações, souvenirs. Guardo com o maior carinho a camisa com a caricatura e a coletânea com discursos dele, que meus pais compraram e me trouxeram de Joanesburgo.

Livros, tenho por aqui "Os caminhos de Mandela", "Nelson Mandela - conversas que tive comigo" e "Longo Caminho Para a Liberdade", os dois últimos dele próprio e o primeiro de Richard Stengel. O segundo é prefaciado por Barack Obama. O derradeiro já virou filme.

Li que ele gostava de um trecho de "Júlio César", de Shakespeare, sobre a perplexidade frente a morte. Selecionara-o a pedido de um colega de cárcere, na cela onde passou quase os 27 anos de sua prisão política, lugar tão pequeno que o obrigava a dormir curvado.

"Covardes morrem muitas vezes antes de suas mortes.
O bravo sente o gosto da morte uma única vez.
De tudo que vi
O mais estranho é que os homens tenham medo,
Já que a morte, um fim necessário
Vem quando vem".

Recorro então a Shakespeare e garanto que a morte veio, mas não veio para Nelson Mandela, pois nem ela teria o poder de sepultar a memória de quem, na luta contra dominadores brancos e dominadores negros, fez-se história como sinônimo de humanidade. Viva Madiba!