sábado, 8 de novembro de 2014

Palavras tardias



Ela escreve ao “antigo” amigo encurralando o adjetivo entre aspas para evocar o sabor da metáfora. Afirma não resistir à opressão do silêncio. É preciso quebrá-lo para falar das armas, dos golpes e da última ferida. Começa a escrever sobre o ato de escrever. Busca em Clarice Lispector a sentença de que às vezes “É duro quebrar rochas” com palavras, mas não perde a convicção: “Escrever é minha liberdade!”

E livre, prossegue com o texto. Mede cada verbete, esquadrinha frase a frase, encadeia o fluxo dos parágrafos. Talento não lhe falta para o jogo das letras, tanto que os sons e as imagens se entregam de corpo e alma aos caprichos da moça de Marte e de Além-Mar. Nas últimas linhas, avisa sobre o próprio funeral e acusa o poeta imaginário, o tal “antigo” amigo, pelo assassinato das flores no esplendor da primavera.

Apesar de tantas queixas, reconhece no criminoso a sinceridade. Reconhece que o sujeito a avisou inúmeras vezes acerca dos perigos que se escondem entre o sexo e o sabor das uvas fermentadas, principalmente no vácuo onde a arte se confronta com a vida, onde o desejo não é mais que um escravo iludido por falsas promessas de luz e a realidade implacável rouba sem remorso o viço e a poesia das madrugadas.

A doce Charneca em Flor que no mundo anda perdida e navega em navios fantasmas desejando mil coisas sem saber ao certo o que deseja apazigua-se, contendo o ímpeto da Roseira Brava para dizer que a feriram de morte com algo “cortante e afiado, tipo faca, estilete ou punhal” e declara friamente àquele que considera seu algoz: “Parabéns! Dessa vez você usou a arma certa e o sucesso foi imediato e absoluto”.


O poeta imaginário, inimigo do lirismo, recebe a carta. Lê. Relê. E responde: “Para você, Sóror Saudade, escrevo estas palavras tardias, as que prometi faz tanto e tanto, palavras agora tristes, incapazes de curar dores de amor ou surtos de insensatez. Infelizmente, não tenho nada de alegria para oferecer por lenitivo, pois a lâmina torpe que me acusa de ser é quem mais sofre quando rasga o coração de uma flor”.