segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A pesquisa fake e a ilusão do voto útil

 

“Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro”. Esses versos são de Carlos Drummond Andrade e foram extraídos da primeira estrofe de Morte do Leiteiro, poema integrante do livro A Rosa do Povo, de 1945, um dos meus prediletos. Vou fazer aqui uma paródia – o poeta me perdoe, se puder –, mas parece haver no país outra legenda, que pesquisa se mata com pesquisa.

Algo parecido também com a Lei de Talião: pesquisa por pesquisa, manipulação por manipulação. De manhã, o candidato dos Montecchios divulga sondagem afirmando estar 15 pontos na frente, conforme o respeitável instituto... qual? À tarde, a campanha dos Capuleto solta os números do... do... do... Ah, deixa para lá, em que supera o adversário com os mesmíssimos 15 pontos.

Lá vou eu acanalhar mais uma poesia maravilhosa, com veemente e antecipado pedido de desculpas a Vinícius de Moraes, para dizer que essa estratégia de confundir, não de explicar, provoca em nós, eleitores, a estranha sensação de que faz escuro de manhã, entardece de dia, anoitece de tarde, restando uma noite de ardor nos braços da dúvida, quando até o este quer ser norte.

O acesso a pesquisas eleitorais verdadeiras deveria ser encarado como direito fundamental dos cidadãos e cidadãs. A tentativa de influenciar a vontade da população e de animar ou desanimar militâncias partidárias com estatísticas distorcidas, conforme os interesses do contratante, insulta e fragiliza a frágil democracia brasileira, que já tem inimigos de sobra para enfrentar.

O legislador e a Justiça Eleitoral precisam refletir sobre o tema. As normas atuais não bastam para impedir as pesquisas fakes. Resta, então, proibir a divulgação de toda e qualquer sondagem nos períodos de campanha ou estabelecer critérios mais amplos de transparência dos dados coletados, além de punições severas para aqueles institutos que errarem sem querer querendo.

Quanto às de 2020, sabe-se desde ontem que a maioria mentiu – e mentiu pra cacete! –, conforme os interesses dos contratantes. E, infelizmente, fica por isso mesmo. Como ninguém será punido, nem pela opinião pública com a sua memória curta, os mesmos “estatísticos” estarão aí, em 2022,  oferecendo meios para engabelar os desavisados que apostam na ilusão do voto útil.

domingo, 8 de novembro de 2020

De qual cor?

Periodicamente, a política impõe a ditadura das cores. Nos Estados Unidos, o azul de Joe Biden triunfou sobre o vermelho de Donald Trump, espalhando-se pelo mapa americano como se fosse um tabuleiro de War, afinal, na definição de Carlos Brickmann, “a política é uma das mais cruéis modalidades de guerra”.

A situação se complica no interior do Brasil, pois o ato de se vestir com roupas de determinado matiz pode parecer declaração de apoio a candidato “A” ou “B”, motivo de simpatias e hostilidades. Quanto menor o lugar, maior o pega pra capar entre seguidores das candidaturas que se polarizam lá no topo.

Quem mora em uma cidade e trabalha em outra precisa ter cautela para evitar ruídos de informação, em especial se o patrão mistura negócios e militância. Isso porque, diferentemente do sistema binário dos EUA, a mesma cor pode ser utilizada por segmentos partidários diferentes em municípios vizinhos.

Contam que no “País de Mossoró”, aqui no caloroso sertão do Rio Grande do Norte, quando apenas o verde e o encarnado se engalfinhavam pelo poder, um juiz de fora, de origem familiar e simpatia política desconhecidas, foi designado para a comarca e, consequentemente, para presidir as eleições.

Corriam nos anos 1960. Pela liturgia do cargo, o homem só se vestia de paletó escuro e era discreto, até por ser recém-chegado no município de pouco mais de 50 mil habitantes. Era, contudo, observado amiúde pelos partidários da Aliança Renovadora Nacional (Arena) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Certa feita, o magistrado entrou rapidamente em uma farmácia, no Centro. Mal saiu, um olheiro que o seguia bem de perto, quase pisando no rabo da toga, indagou ao balconista o que diabos ele havia comprado. “Escova de dentes”, respondeu o funcionário, dando brecha para a pergunta fatídica: “De qual cor”?