sábado, 23 de março de 2013

O amor das duas



Ainda estou paralisado no entreolhar daquelas duas. Tanto que há cinco noites, o mesmo sonho erótico me invade a cama, instalando-se entre mim e a mulher amada, enquanto ela dorme inocente, sem desconfiar da traição incendiando o próprio leito. Tanto que os meus dedos, rendidos à embriaguez por espasmos hormonais, confessam ao teclado do computador essas lúbricas intimidades.

As duas se cruzando num olhar são faca mirando faca, enquanto a plateia vai ao delírio, delírio contido de voyeur que não deseja nem de longe ser notado, para não interferir no jogo das feras. Belas? De que valem as belas entre as feras? Melhor as feras, o coração das feras, o sexo das feras devorando as belas. Desde menino sei que amor entre feras é mais terra, é mais peixe, é mais planta, é mais humano.

Perdoem-me os ditos puros, mas a carne que me envolve é fraca – muito fraca! – e a liberdade dos meus pensamentos é indevassável, a ponto de eu dizer, sem o confortável recurso da metáfora profunda, que mulheres que gemem na cruz e na espada são o maior tesão, a fantasia mais ou menos secreta de todo cabra macho e de muitas fêmeas no cio, fogo que devora fogo na maciez de uma língua.

Mulheres que gemem na cruz e na espada são a reencarnação da tempestade. O entreolhar daquelas duas me contou. Tempestade capaz de arrasar plantações, de sacudir montanhas, de arrancar telhados, de estremecer o corpo, devorar suspiros e desferir uivos na boca do estômago. Tempestade prenúncio de calmaria, bonança que sucede o gozo, se o orgasmo é mútuo, profundo e se completa.

Abençoa-me, Deusa da Águas Doces, pois o amor das duas é pureza. É mão dupla. É paciência. É miragem. Perdoa-me, Mãe da Natureza, por quando o amor das duas for lábio, língua, peito, quando for tremelique, quando for sacanagem, quando for mais desejo do que agora e eu morrer de tesão e de inveja, contemplando o duelo das coxas que em minhas torpes viagens já escorregam na saliva.

O amor das duas, quem me dera a graça, o pão e o vinho de morrer por um instante na conjunção daqueles seios! Ah, que os ventos me guiem nas estradas da luxúria, pelos campos selvagens do espírito onde a salvação e o pecado não oprimem o ser humano, porque estão bem acima das verdades, onde eu possa ser o mar bebendo as águas de dois rios mágicos e fundos que habitam a mesma foz.

sábado, 16 de março de 2013

Naufrágio



A onda vem, os cascos se erguem palmo e meio. Depois, quando passa, descem nos movimentos ensaiados de um balé. Sonham romper as correntes e partir para o mais do longe, voltar a lugares onde nunca estiveram, pois cada viagem ao infinito é o mesmo déjà-vu.

Incrível ser o mar aquele de há tantos séculos e, ainda assim, causar espanto a quem traz limbo e conchas no leme, marcas do tempo na lida do oceano, das viagens entre a terra e até depois da linha do horizonte, onde as vistas dos homens sem alucinação poética não alcançam.


No continente, sobre dunas imprecisas, velas dobradas, mastros arreados, apenas a maresia consola outros tantos que, infelizmente, não alcançaram a graça de serem embalados nos braços invisíveis de Iemanjá. Estes olham, invejam que nem pessoa, sonham a precisão do navegar.

Nem âncora nem chão. Melhor viver à deriva do que morrer em porto seguro. Ao sabor incontrolável do fluxo e do refluxo das águas, pode-se ao menos tropeçar displicentemente no canto das sereias, afogar-se no ar, embriagar-se no olho do furacão e gozar nas coxas dos maremotos.

Tempos atrás, quando o mundo era quadrado e acalentava um abismo em cada lado do seu fim, todos amavam o perigo, as agitações. Hoje, entretanto, preferem a segurança do estaleiro. É que a maré não está para piaba e qualquer tentação de flutuar só pode resultar naufrágio.


sábado, 2 de março de 2013

SEM SENTIDOS



Vê-se a rua vazia
por retângulos verticais,
deserta e oprimida
entre ombros de calçadas.

Surda, não quer saber
destas palavras
que rompem o silêncio
e o abismo
da mão à caneta.

Muda, de pirraça,
não fala o que já se sabe
e se insiste dessaber.
Medo da eloquência
da língua adormecida
em outros berços.

Ah, o cheiro
que entrelinha os devaneios
faz lembrar a liberdade
que fugiu janela fora.
Era como?
Perfume de madrugada
amanhecida!

Toca com a ponta dos dedos
hesitantes
o aço da solidão
em volta do pescoço,
dos punhos e tornozelos.
No outro lado,
elo após elo,
a alma,
poema concreto,
arrasta o corpo
às profundezas.

E, como se não bastasse,
este gosto de anteontem
que só foi percebido
agora.