sábado, 27 de setembro de 2008

Palestra internacional



O auditório do Hotel Thermas é enorme e linear, arrumado de modo curioso, com cadeiras altas na parte da frente e assentos baixos atrás. A turma do fundão, por causa desses detalhes, não enxergava quase nada do que transcorria na tribuna de honra, onde conferencista, debatedor e presidente da mesa preparavam-se para discorrer sobre o tema La red de mercociudades: globalización, integración regional y desarrollo local.

A localização do astro da noite, o argentino Carlos Nahuel Oddone, ninguém da metade para a retaguarda conseguia dizer com certeza. Tinha-se apenas idéia, graças à única pessoa visível além do mar de cabeças formado ao longo daquela sala enorme de comprida: juiz Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho, que, do alto de seus aproximadamente dois metros, dava pistas a nosotros, lançando olhar diagonal para a esquerda.

O conterrâneo de Jorge Luis Borges, de Ernesto Sabato, de Ricardo Rojas e de minha ex-colega Anica, aluna mais tesuda do Eurocentres de Brighton, começou pedindo desculpas por não falar necas de pitibiriba em português, motivo pelo qual sua conferência seria em espanhol. Aí, o convidado passou a defender a importância de uma ampla reforma político-institucional com o objetivo de incluir os municípios na agenda do Mercosul.

Pouca gente compreendeu. Nem sei o quanto entendi. Só sei que a confusão ampliada pela má qualidade do som, problema solucionado muito depois, deu origem a um terrível burburinho. As pessoas da traseira, sem verem nem ouvirem, muitas não capturando bulhufas do espanhol portenho, começaram a reclamar em voz alta e, em seguida, a abandonar o local. Saíam “em revoada”, como diria o meu saudoso amigo Gomes Filho.

O clima ficou chato, constrangedor. O barulho crescente piorava a audição e o abandono massivo da assistência denotava grosseria para com alguém que, apesar das barreiras lingüísticas, esforçava-se para se comunicar. Lembrei-me então do professor Vingt-un Rosado, mais especificamente da história acerca de uma palestra internacional que ele me contou há muitos anos, com o testemunho das ondas do sagrado mar tibauense.

Pediram a Vingt-un para reunir intelectuais a fim de ouvirem um sujeito da França. No dia e na data marcados, o auditório estava repleto. Pessoas bem vestidas, educadas, ouvindo em elegante silêncio, aplaudindo nas horas certas, rindo quando se era para rir. Ao final da conferência, ministrada em francês, o camarada agradeceu a Vinte-e-Um, sem disfarçar o susto por encontrar tantos falantes da Língua Francesa em Mossoró.

Dando aquela risada gorda que lhe apertava os olhos, o criador da Coleção Mossoroense cochichou, não exatamente assim, embora com o mesmo sentido: “Esses intelectuais são cassacos da fábrica de gesso, aos quais pedi que viessem prestigiar seu amigo”. Analfabetos na maioria, os operários da gipsita não tiraram proveito da falação, mas agiram com a paciência dos sábios, algo que muito dotô do Direito precisa aprender.

sábado, 20 de setembro de 2008

A biblioteca



Comecei por volta dos 15 anos a juntar os livros de minha singela biblioteca, único bem material – ou conjunto deles – amealhado desde quando comecei a trabalhar no O Mossoroense, pouco abaixo dessa idade. Vim querendo sei lá o quê, pois meu sonho era a medicina, seguindo tradições familiares. Mas jornal apaixona e aqui estou desde então.

Cheguei sem escrever um “o” com uma quenga. Também detestava leitura, para desgosto da família. O pouquinho que sei aprendi aqui, graças aos ensinamentos do ofício e a duras rotinas de estudo. Do amor ao jornalismo, veio o amor à literatura e surgiu a coleção livresca que já atravessou dois casamentos, várias mudanças e uma inundação.

Os volumes encontram-se guardados na Rua dos Bobos, nº 0, na casinha branca de janelas e portas amarelas construída por Vingt-un Rosado e duplicada por mim. Fica no ponto mais alto do Sítio Mororó, antigo Canto de Lahyre, lugar exato da morada antiga onde minha bisavó paterna se refugiou, em 1927, para se proteger do ataque de Lampião.

Muitos visitantes, vendo paredes tomadas por aço e papel, perguntam-me quantos livros tenho e se li todos eles. Em relação à primeira dúvida, respondo não saber. Nunca os contei, talvez sejam cinco, seis mil, talvez mais, quem sabe menos. Coisa nanica diante dos acervos registrados pelo poeta Lívio Oliveira. Gigantesca frente à minha estupidez.

A segunda resposta também é negativa. Não, eu não li boa parte dos títulos que possuo nem me sinto obrigado a fazê-lo ou declará-lo para impressionar a platéia. Francamente, às vezes percebo não haver lido sequer os que li, em face do esquecimento e da confusão de vozes. Além disso, como diz Pierre Bayard, o “livro se reinventa a cada leitura”.

Na metafísica de Borges, o mundo é a biblioteca sem fim na qual os homens, mesmo empenhados na busca do conhecimento, jamais conseguirão escalar todas as prateleiras. Na melhor das hipóteses, sobreviverão sem traumas à perspectiva medonha “de que tudo está escrito”, mas que seu acesso se resumirá a quantidades miseráveis de textos.

Extinta a raça humana, a Biblioteca de Babel permanecerá “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”. Espero de igual modo que, extinta minha humanidade, a pequena biblioteca da Rua dos Bobos, edificada livro a livro com tanto zelo, continue e se engrandeça aos olhos dos que virão.

sábado, 13 de setembro de 2008

A espada de Chambord



Minha mãe é pacifista militante. Abomina armas, sejam de fogo ou brancas, sejam de verdade ou de brinquedo. Seus instrumentos de defesa são coragem desmedida, inteligência vibrante e palavra certeira. Jamais entregaria, portanto, qualquer objeto mortífero nas mãos de um filho, constatação que a transformava em grande suspeita dos seguidos desvios da espada imaginária que tio Jório freqüentemente me enviava de Fortaleza.

Eu ficava danado da vida por ser criança pequena do Rabo da Gata sem independência para empunhar a peça rara que, segundo o remetente, pertencera ao saudoso General Sei Lá das Quantas. O drama se repetia cada vez que meus pais iam à capital cearense, na época em que se tinha Mossoró como a maior cidade alencarina em solo potiguar. Nossa TV era a Verdes Mares, nossas ambições mercantis, o Roncy e a Mesbla.

Ocorre que Jório da Escóssia, figura lindíssima, brincalhão inveterado e, o mais importante, irmão de vó Lourdinha, telefonava, avisando-me: "Cidoca, quando sua mãe chegar por aí, cobre a ela a espada que lhe enviei." Nossa Senhora das Bicicletas! O coração ficava em tempo de explodir a cachola do peito, tanta a ansiedade naquela espera sem fim que sempre terminava em frustração, pois o presente nunca foi entregue ao destinatário.

Mamãe, coitada, sofria horrores, tentando convencer-me de que tudo aquilo não passava de brincadeira de "Jorinho", forma pela qual o trata a esposa, tia Maria Teresa, pessoa igualmente querida. Nada, no entanto, aplacava o mau humor do menino besta que se imaginava gente grande e a quem somente importava a famosa espada do saudoso General Sei Lá das Quantas que o tio-avô enviara, em demonstração de carinho e confiança.

A brincadeira integrou-se às tradições familiares. Mesmo vendo meus cabelos brancos, tio Jório ainda pergunta se me deram seu presente e, de certo modo, já posso dizer que sim. Recebi há pouco, das sagradas mãos de minha mãezinha, uma bela espada de brinquedo, com timbre de Chambord. Partindo dela, não seria de aço, mas tem a nobreza de trazer a infância à boca do estômago e de me arrebatar meia dúzia de lágrimas.

sábado, 6 de setembro de 2008

Língua


Minha língua é a foz da velha trama
Da saliva que brota no arrepio,
Quando a boca no peito se derrama
Inaugurando o leito deste rio.

Desce ao sopé florido da montanha,
Sobe noutra, mas antes que se instale,
Seduzida no ardor, já não se acanha,
Desembesta dançando pelo vale.

Vai correndo com lânguida destreza,
Levando em ziguezague a correnteza
De suor, d’água doce e de fissura.

Rodopia sem pressa, segue em frente,
Atravessa a floresta e, de repente,
Penetra o mar que geme de loucura.