sábado, 26 de novembro de 2011

"Me lave"


Em San Marcos, no Texas, Scott Wade criou a “Dirty Car Art”, que ouso traduzir como “Arte de Carro Sujo”. Ele aproveita a atmosfera poeirosa semelhante à de Mossoró para criar obras de arte nos vidros de veículos estacionados em via pública. Do pó, nascem e renascem pessoas, animais, plantas, paisagens, monumentos, criaturas surreais, de tudo.


Meu automóvel, que é preto e só vê água quando chove, não por desleixo, mas pela demanda, daria um painel sertanejo, com vaqueiros trajados à rigor, cavalgando no chão rachado em busca das reses perdidas na caatinga. Muito melhor do que encontrá-lo servindo de quadro negro para piadinhas tão antigas quanto a sagrada posição dos monarcas.


Nada mais cafona do que escrever "Me lave" no vidro ou na lataria de um carro empoeirado. Pior se o carro for o meu, pois, além de tudo, o indigitado corre o sério risco de contrair tétano. Além disso, há de se duvidar dos hábitos de higiene física e mental de quem sente prazer em enfiar o dedo na sujeira para deixar mensagens cheias de “originalidade”.


E não se resume à cafonice. O ato, degrau anterior à coprofagia, reveste-se também da maior cara-de-pau - e o caso é mesmo esse - quando o paladino da limpeza automotiva é famoso pela aversão à água, escovas de dente, desodorantes. Revela a doença que os neofreudianos descrevem, em documentos secretíssimos, como filhadaputismo latente.


É, camarada, vi você ensebando o vidro traseiro do Cid Móvel com seu dedo sujo, no pingo do meio-dia, e tive uma vontade quase irresistível de enfiar-lhe o meu nas suas costas para escrever "Vá tomar banho", "compre pastilha", "passe limão" ou, ao menos, para lhe proporcionar um toque reto sobre colocação pronominal, básico da língua portuguesa.


sábado, 19 de novembro de 2011

Inveja de quem sabe cantar


O que dizer da mulher que traz a constelação de Cygnus inteirinha ajoelhada ao pé esquerdo? Estrelas imortalizadas entre o verde e o azul, destacadas nas incandescências da pele, se não me traíram os sentidos da aquarela naquele instante de alucinação coletiva.


Falar dos olhos que o sorriso aperta, dos lábios pintados em vermelho-coral para uma guerra de paz? Da cachoeira de cabelos negros pelas costas, das carnes fartas? Que tal as linhas sinuosas, o alumbramento, o pingo de ouro derretendo-se na fornalha do colo?


Os trajes sóbrios, impulso de embriagá-los em nudez! E ajoelhar-se ante a santa inspiração deste inocente pecador, clamar justiça às vistas famélicas capazes de cair em tentação num gracejo buarqueano, mesmo se fechados “os ouvidos e as janelas do vestido”.


Deu sede, mas água não passou. Qualquer poeta tem, nessas horas, necessidade de goles a mais de lirismo, do contrário perde as medidas do soneto e se lança à libertinagem surreal das metáforas. E o cronista, sendo também um qualquer, sufoca-se na prosa.


Ah, se eu fosse Manassés! Capaz de desvendar "A Lua, o amor e o mar", de traduzir em letra e acordes a paisagem inquietante que arrebatou linhas e entrelinhas da redação, de estender no "Varal do tempo" rosas em busca de Sol, de andar no rastro da musa.


Quem dera a sorte mineira de Renato Motha! Amanhar versos para Maria Rita colher: “Tens o teu escudo, teu tear/ Tens na mão, querida, a semente/ De uma flor que inspira um beijo ardente/ Um convite para amar". Dias assim, morro de inveja de quem sabe cantar.


sábado, 12 de novembro de 2011

Passaporte diplomático


Viajei bastante, conheço razoavelmente bem o Rio Grande do Norte, quase todos os Estados brasileiros, alguns países. Nas viagens ao exterior, há sempre a preocupação com a entrada. Sei de pessoas que, mesmo atendendo ao rol das chatices burocráticas, foram barradas, humilhadas e obrigadas a voltar, amargando prejuízo econômico e frustrações.


Da última vez que estive nos Estados Unidos, terra de muitos amigos queridos, o agente da imigração foi extremamente grosseiro. Fez comentários hostis, meneava a cabeça a cada pergunta que lhe respondia, avaliava a documentação com desconfiança. Escolheu-me para saco de pancadas ou para externar sua xenofobia idiota contra latino-americanos.


Entrei. Irritado, mas entrei, certo de que aquele é comportamento isolado. Os colegas do indivíduo, nos guichês de atendimento espalhados no imenso salão do Aeroporto Internacional de Miami, atendiam aos visitantes com cordialidade. O mesmo posso dizer dos servidores do Consulado Americano em Recife-PE, aos quais submeti duas solicitações de visto.


Quem já saiu por aí com passaporte pé-duro igual ao meu compreende. Edir Macedo, chefão da Universal e da Rede Record, cansou dos maus tratos, fincou pé e recebeu do Itamaraty, semana passada, um passaporte diplomático. O missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, inquilino da Bandeirantes, obteve o dele muito antes.


O jornalista Lauro Jardim esclarece na coluna Radar on-line, da Veja, que "Os portadores de passaporte diplomático têm tratamento diferenciado nos aeroportos e alfândegas. Além de não pagar pelo documento, a vantagem mais evidente é a dispensa da revista aqui e em vário países. Também não enfrentam filas". Quem me dera nunca entrar em filas!


A própria comunidade evangélica chiou. De outros segmentos, lógico. Houve quem dissesse que as Sagradas Escrituras são o passaporte necessário aos mensageiros da palavra. Nesse caso, acredite: a Bíblia não funciona. E ainda: o comportamento do governo representa um passo na concretização do Estado laico que a Constituição prevê desde 88.


Há muito tempo os cardeais católicos possuem o direito recém-conquistado pelos dois líderes do cristianismo luterano. Penso, e me perdoem a franqueza, que, em vez de ampliar, Brasília deveria cassar o privilégio dos religiosos. Todos. Do contrário, daqui a pouco, Fernandinho Beira-Mar funda a Igreja Internacional do Pó e ganha folga diplomática.


Pela caridade, pelo amor de Nossa Senhora das Bicicletas do Pedal Quebrado, não digam que estou comparando Beira-Mar aos cardeais católicos e ministros protestantes. A questão é outra: se o passaporte diplomático destina-se também a sacerdotes, qualquer deles pode requerê-lo, seja a entidade séria ou picareta, desde que legalmente constituída.


Da parte deste caboclo avesso a salamaleques, restam o estresse das entrevistas de admissão, o risco de voltar de um aeroporto se a mulher do entrevistador tiver dormido de calças jeans na véspera da sabatina. Mas, beleza! Se isso acontecer, viajo a Bilica ou ao La Boquita De La Noche, onde passaporte azul tem potencial superior ao vermelho.


sábado, 5 de novembro de 2011

“QUE SORTE – Escapou mais uma vez”


"Invejo as flores que murchando morrem,
E as aves que desmaiam-se cantando
E expiram sem sofrer..."
Álvares de Azevedo

O desmaio é uma experiência assustadora, espécie de ensaio para a morte. Desmaiei em pleno sábado enquanto escovava os dentes. Acordei minutos depois, nu, deitado no chão com metade do corpo no banheiro e outra no quarto. Tremenda dor na cabeça ferida em três lugares e na coluna cujos reflexos da queda ainda não foram avaliados.

Voltei aos poucos e também aos poucos, enquanto a mulher e os meninos se acalmavam, tomei ciência dos detalhes. A pressão arterial em 10/7, vista no tensiômetro caseiro, era dos pormenores estranhos para quem, desde moço, tenta domar a hipertensão. Recusei-me, logo de início, a preocupar meus pais, irmãos e minha avó. Todos viajando.

A ideia de poupar a família não perdurou. Recebi socorro, fiz exames para avaliar as causas e as consequências do “apagão” e passei a tomar “remédio controlado”. Feitos os testes necessários, incluindo a ressonância magnética, em qual estrutura o sujeito se sente enterrado vivo, confirmei as suspeitas de tantos anos: não tenho nada na cabeça.

O coração parecia inquieto no emaranhado de estalactites e estalagmites do eletrocardiógrafo. O diagnóstico, no entanto, diz estar bem o “Órgão muscular situado na cavidade torácica constituído de duas aurículas e dois ventrículos, e que recebe o sangue e o bombeia por meio dos movimentos ritmados de diástole e de sístole” (copiei do Aurélio).

Na quarta-feira, dirigi-me ao cemitério a fim de homenagear a memória de parentes e amigos mortos. A distância entre nós, ante os efeitos psicológicos do susto, pareceu-me menor do que noutros Dias de Finados, mas, logo na entrada do campo santo, recebi um panfleto evangélico com o seguinte título: “QUE SORTE – Escapou mais uma vez”.

A mensagem, se não exerceu o poder da conversão, abriu-me o sorriso há dias acorrentado pelo medo de perder de vez os sentidos sem dizer adeus, pedir perdão, perdoar. Coincidência? Sopro de Deus na vida de um agnóstico convicto? Por agora, contenta-me saber da palavra em sua essência, conquistando, devolvendo a luz da esperança.