sábado, 25 de outubro de 2008

A enchente*



Faz tempo. Foi em 1985. O rio Mossoró, que ainda não havia sido
tricotomizado (dividido em três cursos d'água) por idéia de Wilson
Rosado, genial autodidata, e obra do prefeito Dix-huit Rosado,
transbordou, inundando vários pontos da cidade. O Centro, por exemplo,
parecia um projeto de Atlântida, a mitológica cidade subaquática.
Havia piabas até no entorno da praça do Pax, nosso querido e extinto
cinema de saudosos vesperais.

O jornal O Mossoroense, coitado, teve enorme prejuízo. Recebemos, eu e
Chico Guerra, a infrutífera missão de proteger a sede da empresa.
Recrutamos Seu João, competente mestre-de-obras, para lacrar as
entradas do edifício. Havia duas – a da recepção e a da lateral, que
dava acesso à escada dos andares superiores. Naquela época, a redação
funcionava no primeiro andar. O segundo, meio que abandonado, servia
de depósito.

Pois bem, Seu João fez o serviço. As paredes ficaram ótimas, mas de
nada adiantaram. A água estourou o piso e subiu mais de metro,
danificando vários equipamentos, a exemplo das impressoras Big Chief
29 e Marinonni, aquela americana, esta francesa, nunca italiana,
conforme equivocadamente escrevi certa vez. O pior foi constatar a
perda quase total dos arquivos. Cem anos de História tragados pela
sede insaciável da enchente.

Naquele instante, já me encontrava alistado da Defesa Civil, que ao
contrário de hoje funcionava de verdade, sem a necessidade de
intermináveis reuniões de "planejamento". Trabalhei voluntariamente
preparando cestas básicas, com víveres doados pela população, por
empresários e pela própria prefeitura, para serem distribuídas como
forma de amenizar as terríveis necessidades pelas quais passavam as
pessoas desabrigadas.

As áreas atingidas, por incrível que pareça, são as mesmas de hoje,
demonstrando a inércia do poder público no tocante a providências
definitivas. Justiça seja feita, Dix-huit fez a parte dele. A
tricotomização é uma das grandes obras realizadas no município. Não
existisse, pessoas estariam, igual a 1985, trafegando de canoa pelas
ruas alagadas e pescando em salas-de-estar, coisa que também
presenciei entre assombrado e curioso.

Houve uma campanha nacional para arrecadar donativos. Vários artistas
emprestaram sua voz para o poema de Patativa: "A sorte do nordestino /
é mesmo de fazer dó / Seca sem chuva é ruim / Mas seca d'água é pior".
Nunca me esqueci, estrofes vez por outra martelam meu juízo, se é que
nalgum tempo tive esse negócio. Ainda devo possuir o compacto, a
bolachinha, 33 r.p.m., guardado em algum dos lugares por onde andei.

A situação era grave, gravíssima, e olhe que inexistiam complicadores
modernos, tipo dengue e risco de transmissão de outras doenças por
causa do lixo urbano e da imundície que a chuva arrasta dos bueiros
infestados de ratos e baratas. O rio pelo menos era limpo naquela
época, embora prestes a se transformar numa enorme fossa a céu aberto,
imundície perigosa e, acima disso, humilhante para quem sente a dor de
Mossoró.

Encerro antes de ceder à tentação de narrar o caso da senhora que
apareceu para uma sessão de fotos em meio à tragédia e pegou o beco
sem resolver patavina, dizendo ser natural o povo sofrer. Acinte
completo. Paro também porque recebi a notícia de que a enchente, por
causa do canal irregular feito no Paredões pela prefeitura, avança
rumo ao sítio onde guardo meus livros, único patrimônio que amealhei
em 22 anos de luta.

* Texto escrito aos 3 de abril de 2008 e "esquecido", até ontem, na
"memória" do computador.

sábado, 18 de outubro de 2008

A professora



Os rapazes iam ao delírio. Corações palpitantes, mãos frias, pernas tremendo, suspiros, pensamentos em voz alta. Tudo isso por causa da professorinha que atravessava o corredor azul-marinho da escola, flutuando em passos macios de generoso gingado, até romper o umbral da sala de aula, distribuindo bons-dias perfumados com o aroma daquela boca pequena, enfeitada em tom delicadamente vermelho.

A turma retribuía o cumprimento - “Bom-dia, fessora!” -, sem sair do transe. Aí, quedava em adoração, enquanto a jovem senhora realizava a chamada, entornando o castanho sem-fim de seus olhos sobre o verde-pálido da folha de freqüência. Nome por nome - “Fulano... Beltrano... Sicrano...” - envolvido num sotaque não se sabe de onde, chiado nos dês e nos esses, circunflexo nos agudos, que maravilha.

As meninas, em floração, fantasiavam ser do mesmo jeito. Inveja benfazeja em relação a uma deusa em carne, osso e sedução. Cochichando em bilhetes libidinosos que, fileira a fileira, alcançavam cada quadrante do ambiente, os meninos exclamavam: “Que lábios! Que voz! Que pele! Que coooorrrpo! Que aula!”. Choque de luz nos sentidos das criaturas, nublados por violentos bombardeios de hormônios.

Errado dia, nas férias, a mestra-escola partiu. Para onde, sabe lá o destino, esse gênio iconoclasta que subjuga até mesmo as divindades, sem a gentileza de explicações quaisquer. Dizem, mudou-se para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Dizem, viram-na num show do Pink Floyd no Camden Tow, Londres. Dizem, voltou para o monte Olimpo, convencida pelos deuses de Homero a ocupar seu lugar de direito.

Penso que ontem, talvez anteontem, possivelmente semana passada. Conversa, isso aconteceu... dia desses. Pronto, combinemos assim, ela voltou dia desses ostentando novo corpo, agora de aparência balzaquiana, dirigido por olhos de Capitu. A voz costurando o velho chiado dos dês e dos esses na antiga circunflexão que perverte os agudos tornou-se levemente rouca, festa para os tímpanos da moçada.

A galera tresvaria em déjà vu, atenta muito mais na boa “tia” do que nas boas lições dela, embora inteligência e beleza incrementem a fórmula do desejo. Será que a dita percebe, como se fosse musa da canção buarqueana, os arroubos desses bandidos invadindo-lhe os ouvidos e as janelas do vestido? Se não os sente, se não se arrepia, besteira, eles seguem a sonhar a sós, porque aluno é criatura renitente.

sábado, 4 de outubro de 2008

Destino



O soneto perdido nos confins
Do livro amarelado na estante
Será redescoberto num instante
Por batalhões de traças e cupins.

Os bichinhos famintos de aforismo
Provarão degustando verso a verso
Conhecer para frente e ao inverso
O valor nutritivo do lirismo.

E o poema de amor enclausurado
Entre as folhas do livro condenado
Seguirá finalmente outros trajetos.

Servirá, quem já fora nalgum tempo,
Da nobreza do espírito alimento,
Para encher a barriga dos insetos.