sábado, 24 de agosto de 2013

À flor da pele


Você mexe comigo de um jeito que não deveria. Ou deveria? O fato é que mexe com a suavidade de um soneto de Florbela Espanca. Sabe aquele?... "Sou talvez a visão que alguém sonhou/ Alguém que veio ao mundo prá me ver/ E que nunca na vida me encontrou"... Lembra?

Difícil resistir à ocasião de se fazer ladrão quando, na covardia, sacode os cabelos e me arrasta da memória uns versinhos franzinos alinhavados timidamente em estrofes juvenis que mal cabem em si de tanta insensatez. A vontade é a de assaltar-lhe mísera dúzia de beijos.

Ainda mais se abre a boca num vendaval de doidices e entorna sem cuidado o caos nos meus ouvidos, acusando-me de saber, de me fazer mouco, doido, algo assim. Logo eu, criatura, sempre incriminado do contrário, de ouvir e promover delírios no lirismo restante da embriaguez.

Às vezes me enrosco em sua língua numa luta sem tréguas, à caça de gemidos. Outras, minhas mãos violam seu vestido e se perdem na multidão dos próprios dedos. Certas horas lambuzo suas coxas, suas costas, a barriga, até desmaio à sombra de estrelas invisíveis. Sente?

Eu mexo com você, diz você, de um jeito que não poderia. Ou poderia? Talvez seja a pele, só pode ser. Coisa de pele não se explica e muito menos se prova. A arquitetura do arrepio desconstrói a espinha, espalha o sangue e infla de repente os pulmões, mas nunca deixa rastro.

Não precisa escancarar a janela, a musa só espera uma brecha para invadir o ambiente nas patas de um gato pardo desses que vivem por aí, sem eira nem beira, sobrevivente do amor com hora marcada. Não fará barulho nem incomodará os anjos caídos pela sala de estar. Creia.

sábado, 17 de agosto de 2013

Resistência


 Sou do tempo em que jornalista diplomado era persona non grata nas redações de Mossoró. Os primeiros que chegaram à cidade comeram o pão que o diabo amassou para se estabelecer, exceto os que frequentavam o meio antes de conquistar o canudo.

Durante 16 anos, até me graduar na UFRN, atuei como "provisionado", espécie de repórter sem formação acadêmica específica que exerce o ofício com autorização expressa do Ministério do Trabalho, algo em desuso desde a derrubada da exigência do diploma.

Muitos colegas da velha guarda protestaram quando passei no vestibular. Canindé Queiroz, um dos maiores polemistas da mídia norte-rio-grandense, telefonou parabenizando-me pela aprovação, mas não sem lamentar meu “rebaixamento de profissional a estudante”.

Pouco antes, em agosto de 1998, levei ao reitor José Walter da Fonseca a proposta de se criar um curso de comunicação na Uern. Isso, na condição de menino de recado do saudoso amigo Rogério Bastos Cadengue, que nos deixou aos 11 de setembro daquele ano.

O reitor anuiu e logo em 2002 o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão oficializou o sonho que Rogério infelizmente não viu realizar-se. Na verdade, Walter fez mais, porque além da habilitação em jornalismo estendeu o processo seletivo para publicidade e rádio e TV.

De lá para cá, o Curso de Comunicação da Uern vem evoluindo e mudando a cultura das nossas redações, onde os diplomados já superam em número os práticos, com destaque para a excelência dos professores que, embora sem estrutura, conseguem formar bacharéis de alto nível.

Semana passada, eu que percebo essa evolução acadêmica no dia-a-dia, graças à convivência com colegas formados ali, fiquei emocionado ao testemunhar outro exemplo de amadurecimento do curso: o documentário "Resistência", que narra a história d'O Mossoroense.

O vídeo feito pelos alunos Cleania Silva, Francinaldo Rafael, José de Paiva Rebouças, Ramon Vítor, Rayane Medeiros e Rosalba Moreira, orientados pela professora Márcia Pinto e com apoio de Edileusa Martins e Oziel Peixoto, tem padrão de mercado.

Só não digo que ficou impecável, por causa de minha presença entre os entrevistados.

De qualquer modo, resta a nós do jornal de Jeremias da Rocha Nogueira, primeira escola de jornalismo desta província, agradecer pela homenagem e registrar nosso reconhecimento à importância do Curso de Comunicação da Uern para o desenvolvimento da imprensa potiguar.

sábado, 10 de agosto de 2013

Mestre Picasso



Conto biográfico baseado em mentiras reais.


Mestre Picasso das Virgens costumava tomar umas lamboradas de cana no meio da madrugada, no Beco das Facas, junto ao Mercado do Peixe. Entrava sem dar palavra, erguia a mão, o dedo indicador estendido, no que Zé Maria, o dono do bar, já lhe servia aquela dose de Rainha das antigas, com respeitáveis 53 graus de teor alcoólico.

A primeira, ele virava para espalhar o sangue e juntar as ideias, como se fosse na veia. Da segunda em diante, degustava junto ao estranho tira-gosto de pimenta malagueta cortada em rodelas pelo próprio Zé, o dono do estabelecimento, que conhecia as manias do freguês e amigo de longos anos. Um gole, uma rodela de pimenta, nenhuma careta.

Somente depois da quarta ou quinta, Picasso relaxava e se dirigia individualmente aos presentes.

- Bom-dia, Fulano!

- Bom-dia, Beltrano!

- Bom-dia, Sicrano!

Aí, calava-se, contando com o respeito dos amigos circunstanciais que evitavam importuná-lo com perguntas vagas ou respostas que não eram pedidas.

Nasceu no Santo Antônio, filho de Maria Enorme e Antônio das Virgens, e, diferente do que muitos ainda hoje imaginam, não foi a mãe, dona de uma badalada casa de recursos nos tempos áureos do Alto do Louvor, quem resolveu dar ao filho o nome Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso... das Virgens.

A escolha adveio do pai, cafetão doido por rapariga, dinheiro e artes plásticas. Nem precisa dizer, o espanhol era seu ídolo. Não à toa, as paredes do cabaré de Maria Enorme eram ornamentadas com réplicas de obras das fases azul, rosa, africana, analítica, cubista sintética e surrealista do pintor ídolo de seu, digamos, marido.

Havia, aqui e acolá, reproduções de cartazes de Toulouse-Lautrec, para garantir a sofisticação do ambiente com toques de Art Nouveau. Lautrec chegou a disputar a denominação do menino. A mãe interferiu apenas para dizer que, se era para batizar a criança com palavra esquisita, que fosse Picasso, de maior simbologia e enquadramento temático.

O herói cresceu entre prostitutas, rufiões e outras figuras do alto meretrício de Mossoró. Não caiu na gandaia nem se deixou seduzir pela noite porque não quis. Tornou-se mestre de obras dos bons por esforço próprio, altamente requisitado e recomendado, a ponto de o ofício tornar-se prenome. Seus únicos pontos fracos eram a aguardente que o arrastava ao beco e um temperamentozinho polido que nem macambira.

Fazia relativo sucesso com a mulherada, a começar pela alcunha. A maioria, sem compreender a homenagem ao gênio de Málaga, desejava conferir se o instrumento correspondia à propaganda. Pelo que se sabe, nunca houve queixas. Seja pelas proporções ou pela qualidade da mexida, sobravam-lhe suspiros apaixonados.

Tudo isso fazia de Mestre Picasso um indivíduo confiante, mesmo antes do terceiro engasga-gato, quando qualquer sujeito alcança as fronteiras da alegria. Quem o estragou, deixando-o daquele jeito, macambúzio, foi Mocinha, quenga independente que prestava assistência domiciliar aos meninos do Nova Betânia.

Mocinha amoleceu Picasso e depois o abandonou. Fugiu para a Inglaterra, a desalmada, com um alemão de sotaque paraibano que conheceu numa praia entre Icapuí e Canoa Quebrada.

Naquela manhã, Picasso tinha nas mãos motivos de sobra para beber até se destroncar. No envelope com o carimbo do Royal Mail, os correios ingleses, o convite do casamento entre Mocinha e Thomas Kuderrã da Silva, que a megera enviara de sacanagem, como golpe de misericórdia.

E funcionou, pois Mestre Picasso sucumbiu no democrático balcão de Zé Maria instantes depois de erguer o copo de Rainha e esfolar a garganta no berro ouvido até na lanchonete de Zé Leão:  

God save the queennnnnn! Aquela vagabuuuuuuunda!

Ninguém entendeu o francês, mas todos responderam ao brinde que inaugurou a manhã e deu prumo ao dia no Beco das Facas.

domingo, 4 de agosto de 2013

Vista do terraço


Em consequência do pé quebrado, venho dedicando mais tempo do que o habitual à leitura e aos pensamentos. Passo horas na varanda do quarto, sentado na cadeira de rodas, viajando em livros e boas lembranças.

Domingo último, no fim daquela tarde estranhamente calma, deparei-me com o trecho de um livro que tratava do assunto sobre o qual, momentos antes da leitura, eu falava aos meus pacientes botões.

Não! Por favor, não pensem que foi algo mediúnico. Satisfaço-me com a explicação simplória de que tudo foi apenas feliz coincidência entre meus devaneios e o texto, cujo nome do autor trataram de apagar.

Escrevo desse modo, porque aprendi a valorizar as coisas pelo ângulo humano, porque descobri que a beleza de certos momentos está exatamente no fato de eles apenas acontecerem ou não, sem explicações.

Penso mesmo que foi à toa que, após idealizar a minha Marília no cenário de mar e coqueiros, encontrei um apaixonado e apaixonante relato sobre Tomaz Antônio Gonzaga e sua musa, Marília de Dirceu.

Coincidência, sim. Afinal, todas as Marílias, inclusive as que inventamos para passar o tempo ou como motivo daqueles tolos mas deliciosos poemas de amor, são iguais, sempre distantes, inalcançáveis.

Muitas vezes, é melhor que as musas permaneçam afastadas para não assassinar a poesia. É comum, nessa arte de malucos e sonhadores, a personagem idealizada ser morta por suas feições reais.

Se Gonzaga a tivesse possuído, talvez Marília desaparecesse, a exemplo de tantas outras que passaram. Por isso, contento-me com a simplicidade da vista do terraço, pois, somente assim, a fantasia será eterna.

(Tibau-RN, 22.1.2002)