sábado, 10 de agosto de 2013

Mestre Picasso



Conto biográfico baseado em mentiras reais.


Mestre Picasso das Virgens costumava tomar umas lamboradas de cana no meio da madrugada, no Beco das Facas, junto ao Mercado do Peixe. Entrava sem dar palavra, erguia a mão, o dedo indicador estendido, no que Zé Maria, o dono do bar, já lhe servia aquela dose de Rainha das antigas, com respeitáveis 53 graus de teor alcoólico.

A primeira, ele virava para espalhar o sangue e juntar as ideias, como se fosse na veia. Da segunda em diante, degustava junto ao estranho tira-gosto de pimenta malagueta cortada em rodelas pelo próprio Zé, o dono do estabelecimento, que conhecia as manias do freguês e amigo de longos anos. Um gole, uma rodela de pimenta, nenhuma careta.

Somente depois da quarta ou quinta, Picasso relaxava e se dirigia individualmente aos presentes.

- Bom-dia, Fulano!

- Bom-dia, Beltrano!

- Bom-dia, Sicrano!

Aí, calava-se, contando com o respeito dos amigos circunstanciais que evitavam importuná-lo com perguntas vagas ou respostas que não eram pedidas.

Nasceu no Santo Antônio, filho de Maria Enorme e Antônio das Virgens, e, diferente do que muitos ainda hoje imaginam, não foi a mãe, dona de uma badalada casa de recursos nos tempos áureos do Alto do Louvor, quem resolveu dar ao filho o nome Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso... das Virgens.

A escolha adveio do pai, cafetão doido por rapariga, dinheiro e artes plásticas. Nem precisa dizer, o espanhol era seu ídolo. Não à toa, as paredes do cabaré de Maria Enorme eram ornamentadas com réplicas de obras das fases azul, rosa, africana, analítica, cubista sintética e surrealista do pintor ídolo de seu, digamos, marido.

Havia, aqui e acolá, reproduções de cartazes de Toulouse-Lautrec, para garantir a sofisticação do ambiente com toques de Art Nouveau. Lautrec chegou a disputar a denominação do menino. A mãe interferiu apenas para dizer que, se era para batizar a criança com palavra esquisita, que fosse Picasso, de maior simbologia e enquadramento temático.

O herói cresceu entre prostitutas, rufiões e outras figuras do alto meretrício de Mossoró. Não caiu na gandaia nem se deixou seduzir pela noite porque não quis. Tornou-se mestre de obras dos bons por esforço próprio, altamente requisitado e recomendado, a ponto de o ofício tornar-se prenome. Seus únicos pontos fracos eram a aguardente que o arrastava ao beco e um temperamentozinho polido que nem macambira.

Fazia relativo sucesso com a mulherada, a começar pela alcunha. A maioria, sem compreender a homenagem ao gênio de Málaga, desejava conferir se o instrumento correspondia à propaganda. Pelo que se sabe, nunca houve queixas. Seja pelas proporções ou pela qualidade da mexida, sobravam-lhe suspiros apaixonados.

Tudo isso fazia de Mestre Picasso um indivíduo confiante, mesmo antes do terceiro engasga-gato, quando qualquer sujeito alcança as fronteiras da alegria. Quem o estragou, deixando-o daquele jeito, macambúzio, foi Mocinha, quenga independente que prestava assistência domiciliar aos meninos do Nova Betânia.

Mocinha amoleceu Picasso e depois o abandonou. Fugiu para a Inglaterra, a desalmada, com um alemão de sotaque paraibano que conheceu numa praia entre Icapuí e Canoa Quebrada.

Naquela manhã, Picasso tinha nas mãos motivos de sobra para beber até se destroncar. No envelope com o carimbo do Royal Mail, os correios ingleses, o convite do casamento entre Mocinha e Thomas Kuderrã da Silva, que a megera enviara de sacanagem, como golpe de misericórdia.

E funcionou, pois Mestre Picasso sucumbiu no democrático balcão de Zé Maria instantes depois de erguer o copo de Rainha e esfolar a garganta no berro ouvido até na lanchonete de Zé Leão:  

God save the queennnnnn! Aquela vagabuuuuuuunda!

Ninguém entendeu o francês, mas todos responderam ao brinde que inaugurou a manhã e deu prumo ao dia no Beco das Facas.

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