quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O Pálido Olho Azul

Acabo de encontrar O Pálido Olho Azul, na Netflix, estimulado pela informação de que uma das personagens é inspirada no poeta americano Edgar Allan Poe. A trama, “suspense gótico de Scott Cooper, baseado no best-seller de Louis Bayard”, diz a sinopse, envolve assassinatos misteriosos e vingança.


Edgar Allan Poe

Mas a crônica não é sobre isso, é sobre um momento, e é sobre “Nunca mais”.

Menino – menino mesmo, em idade da qual meus três filhos já passaram de sobra –, adorava as histórias de terror contadas em um livro de capa preta, que eu não sabia ler. Nem ele nem outro. Meu pai lia para mim.

Tempos analógicos, distantes da geração dos computadores, da Internet, dos celulares e das redes sociais, quando o entretenimento virtualizado ficava por conta da TV Verdes Mares, de Fortaleza. O sinal da emissora cearense era retransmitido – não até muito tarde – sob os auspícios da prefeitura de Mossoró. 

A primeira vez que assisti à televisão de madrugada, permita-me o registro, foi em Rui Barbosa, Bahia, na casa de um tio, lembrança cujos detalhes reservo para depois. Adianto apenas que, logo na estreia, deitado no chão da sala, com almofadas de apoio, tive o privilégio de ver o épico Gengis Khan. 

Na “rádio cabeça”, só para não dizer que não falei de Chico Buarque, você mais velho talvez esteja ouvindo The Fevers cantar que o sanguinário guerreiro mongol “conquistou a China, o Afeganistão e o Irã”, além de derrotar a tropa russa e se apossar do Império Turco. 

Tá escutando aí, não tá?... 


“Gengis, Gengis, Gengis Khan

Deixa na História uma página de dor

Era o Gengis, Gengis, Gengis Khan

Foi ditador, foi herói, foi bandido

E a todos que encontrava (oh ho ho ho)

Matava e queimava (ah, ha, ha, ha)

Era o mais temido dos mortais”.




Surpreendente. Em Mossoró, acesso a filmes de maior relevância, só no Pax, no Cid e no Caiçara, se a classificação permitisse, porque os comissários de menores marcavam cerrado nas portarias dos cinemas. Lá dentro, a galera aplaudia freneticamente e festejava – Êêêêêêêêêê! – na hora da reação do mocinho contra o bandido. Se a fita do projetor se partisse, o coro troava: “É roubo! É roubo! É roubo!”.

Enfim, com o seu perdão por haver enfiado tantas narrativas no meio do caminho, a quase me perder, verdadeira encheção de linguiça, as tramas de terror que tanto adorava eram lidas em voz alta por papai. Cada dia, um capítulo de Edgar Allan Poe. Eu ficava vidrado em Histórias Extraordinárias, edição que passou a integrar o meu acervo bibliográfico. Herança de gente viva, felizmente.

Talvez o garoto nem compreendesse a complexidade dos contos. Talvez o pai nem falasse exatamente o que estava escrito ali. Imagino que retraduzia e suavizava palavras, frases, orações, transformando o português adulto em português infantil.

É, não sei ao certo, e isso não me aflige. A exatidão é o de menos. Depois dos 50, o importante é a cena imperfeita reconstruída a partir de lampejos que, embora aos trapos, preservam a essência da casa, do quarto, do menino, do homem, da voz grave, calma, pausada, terna.

São alumbramentos que passeiam entre o que havia de fato e o que se projetou por capricho das convulsões cerebrais, um tanto diferentes da percepção de Manuel Bandeira, na Última Canção do Beco. Idêntico, contudo, no critério eternidade.


“Vão demolir esta casa.

Mas meu quarto vai ficar.

Não como forma imperfeita

Neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros,

Intacto, suspenso no ar!


Muitos anos depois das Histórias Extraordinárias, adulto, morando em Natal, contratei Charles Phellan para me dar aulas de inglês. No segundo ou terceiro encontro, o professor, imediatamente convertido em amigo, presenteou-me com uma cópia xerográfica de The Raven – O Corvo – e uma fita K-7 com alguém recitando o dito poema de Edgar Allan Poe, publicado na American Review, de Nova Iorque, em 1845, antes de ganhar fama mundial.

Os primeiros tradutores de The Raven para a língua portuguesa foram ninguém mais ninguém menos que Machado de Assis, em 1883, e Fernando Pessoa, em 1929. Preciso falar mais alguma coisa? Não, mas falo de enxerido: O Corvo é referenciado em músicas, quadrinhos, séries, e conta com várias adaptações cinematográficas. Lembra do nome da escola de Wandinha Addams? Vem dele. Os Simpsons, por sinal, têm sua própria versão, com Homer entoando o eu lírico.



Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico é a voz que sai das entranhas do poema para enunciar sentimentos, sensações. É quem fala no verso, correspondendo ao narrador no território da prosa. É como se o Grilo Falante largasse Pinóquio e se infiltrasse em Cecília Meireles para declamar O Menino Azul aos sentidos do leitor.

O eu lírico de The Raven é o viúvo pesaroso, desesperado “P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais”. O homem alucinado a conversar com um “velho corvo emigrado lá das trevas infernais”, que pousa no busto de Atena, posto nos umbrais da loucura, e se apresenta com o nome de “Nevermore”.

O texto não é leve, não é fácil. Parece ser, de qualquer maneira, uma boa porta de entrada para a obra de Edgar Allan Poe, a mim preciosa, sem demérito à genialidade do autor, pelo exato instante da infância que evoca. Espero aproveitá-lo enquanto fragmento de memória até que a ave “agoureira dos maus tempos ancestrais” se achegue aos meus ouvidos “Com aquele ‘Nunca mais’”.

Microconto nº 8


Razão e Paixão digladiavam-se nas redes antissociais. Razão não empolgava a torcida, enquanto Paixão parecia jogar em casa, em final de campeonato. Hora e meia depois do início do embate, surrada e humilhada, Razão entregou os pontos. Paixão, eufórica, correu pra galera. Razão, senhora de seus limites, sabe que jamais derrotará Paixão, por mais que vença.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Lou

A porta da redação do O Mossoroense se abre e meu amigo Luciano Lelis da Silva, maior repórter fotográfico do Rio Grande do Norte de todos os tempos, anuncia por debaixo dos vastos bigodes: “Visita para você. Doutor Lou, de Assú”. Como eu ainda apurava, redigia e editava notícias policiais, suponho que estávamos no final da década de 1980.

Foi o primeiro de três ou quatro brevíssimos encontros que tive com o lendário João Marcolino de Vasconcelos, o Lou, advogado, poeta, boêmio, escritor, jornalista, político e um dos grandes oradores a que assisti no Tribunal do Júri Popular de Mossoró, embora os processos específicos não me venham à superfície da lembrança.

Como diria Emery Costa, meu mestre e amigo, com quem tanto aprendi, “lá se vão” trinta e tantos anos, de modo que nem me sinto na obrigação de pedir desculpas por não conseguir me debruçar sobre detalhes. O importante, aqui, são os fragmentos preservados do momento, do aperto de mão, das conversas sobre jornalismo e direito penal.

Não precisa ninguém me dizer de sua generosidade intelectual. Eu a conheci. Revirando estas memórias um tanto quanto vagas, revejo aquele homem com seus 60 anos, de cultura vastíssima, conversando com um adolescente burro, rebelde sem causa e com fama de doido, posto a trabalhar no jornal da família por ser um caso perdido.

Talvez a loucura nos aproximasse. A loucura e a sensação de que a sobriedade é um porre, como me leva a crer o ex-prefeito e ex-deputado estadual Ronaldo Soares, ao afirmar que nosso amigo “não pertencia a um mundo chamado normal”, era um “Dom Quixote” a enfrentar moinhos de vento com as armas da prosa e o escudo da poesia. 

Jeová Liberado Júnior, proprietário do LaLua, bar mais astral da cidade, jornalista filho de outro jornalista, Jeová Liberato, que manteve a Tribuna do Vale em circulação por mais de 20 anos, o descreve como “figura simpática, amiga e simples” que “não escondia o inventor, poeta, escritor, radialista, advogado, escoteiro e mais uma centena de coisas”.

O artista plástico Gilvan Lopes, por sua vez, revela que Lou compôs os hinos das cidades de Areia Branca, Carnaubais e Alto do Rodrigues, além de haver atuado no teatro e publicado o livro Pé de Escada, em coautoria com Renato Caldas. Aproveitando a deixa, queria ser dono de um muro no meio do mundo para Gilvan Lopes pintar.



Juntando tudo isso, e depois de ler Crônica que Escrevi para Você, obra póstuma de João Marcolino de Vasconcelos, em exemplar raro pertencente a José Tarcísio de Sá Leitão Soares, só tenho a lamentar a insensibilidade que me impediu de conviver com ele para lá dos esbarrões no O Mossoroense e no Fórum Silveira Martins.

De consolo, réstias de recordações, a convivência com a obra e, pelo que leio, a sensação de que poderíamos ter sido bons amigos, bebido juntos e varado noites no Assú, como, aliás, tenho feito de vez em quando, nas oportunidades em que o bolso permite ou Germário abre o coração e me oferece um vale no botequim.

Evoé, Lou!


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Sobre os atos em Brasília e o crime de terrorismo

Não costumo retrucar comentários feitos em meus perfis de redes sociais. Em regra, apenas curto o que me escrevem, seja elogio ou crítica, concorde ou não concorde com o que está posto. Esse é o meu modo de agradecer pelas participações e de deixar todo mundo bastante à vontade.

Hoje, entretanto, sinto-me na obrigação de fazer alguns esclarecimentos, e começo afirmando que a postagem objeto deste texto não tem, nem de longe, o desejo de minimizar a gravidade dos atos criminosos praticados contra a democracia brasileira nesse domingo.


Postagem que deu origem a este texto.

Os golpistas responsáveis pela depredação dos prédios dos Três Poderes devem ser investigados pela polícia, denunciados após análise do Ministério Público e, se a Justiça assim o entender, condenados. Mas dentro do devido processo legal, com direito a contraditório e ampla defesa, mesmo que esses sejam mecanismos da democracia, regime que os ditos vândalos abominam.

Os rigores da lei devem ser impostos a todo aquele que, de qualquer modo, concorreu para as transgressões apuradas, na medida de sua culpabilidade, como determina o art. 29 do Código Penal (CP). Isso, logicamente, inclui coautores (executores diretos) e partícipes (sujeitos que ajudaram sem aparecer).

Em publicação anterior, enumerei uma série de delitos que podem estar configurados: dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso I e III, do CP), incitação ao crime (art. 286, caput e § 1º, do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).

Se o noticiário estiver correto, alguns baderneiros podem ser responsabilizados, ainda, por porte ilegal de arma de fogo (arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento), furto qualificado (art. 155, parágrafo 4º, inciso I e IV, do CP), lesão corporal (art. 129 do CP), associação criminosa (art. 288) e maus tratos a animais (art. 32 da Lei nº 9.605/1998).

Com o aprofundamento das investigações, quem sabe, as lideranças ocultas arquem com acusações de organização criminosa, nos termos da Lei nº 12.850/2013, vindo a ser constatada a existência de estrutura ordenada e divisão de tarefas, como uma “empresa antidemocrática”, com atuação em bloqueios de estradas, manifestações nos quartéis e atos violentos na capital da República.

O “patriota cagão”, merecedor de destaque especial, por representar a índole do movimento antidemocrático, pode ser responsabilizado por ato obsceno (art. 233 do CP), além dos atos de vandalismo eventualmente apurados contra ele.

O crime de terrorismo, no entanto, não me parece configurado, embora leia na Folha de S.Paulo a manchete “Presidentes dos três Poderes chamam atos de terroristas e pregam união”.

O jornal, a propósito, chegou a divulgar que cerca de 1.200 bolsonaristas que se recusaram a sair do acampamento montado nas imediações do QG do Exército seriam autuados em flagrante por terrorismo e abolição violenta da democracia. A matéria, contudo, parece ter saído do ar. “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, até onde aprendi na faculdade de direito, é desobediência (art. 330 do CP). 

Na perspectiva semântica, tudo bem. Concordo: são terroristas!

Embaso tal afirmação em simples consulta aos dicionários. O Houaiss define terrorista como “pessoa partidária do terrorismo ou que pratica atos de terrorismo”; enquanto o Michaelis registra terrorismo como “atitude de intolerância por parte de indivíduo ou grupo de indivíduos com aqueles que não compartilham suas convicções políticas, artísticas, religiosas etc”.

O problema é que, na perspectiva do art. 2º da Lei Antiterrorismo – Lei nº 13.260/2016 –, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em quem votei duas vezes, “terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

A propósito, o citado art. 2º é o que se chama de norma penal explicativa, espécie que não serve para proibir condutas nem estabelecer penalidades, limitando-se a esclarecer conceitos necessários à aplicação de determinado conteúdo jurídico. Pois bem ou pois mal, a exata interpretação desse dispositivo define se a Lei Antiterrorismo se aplica ou não ao caso concreto. 

Nesse processo analítico, por mais repulsivo que seja o ato criminoso, é inviável extrair uma expressão do contexto da norma. Assim, o substantivo “religião” não pode ser isolado para abarcar o lema fascistóide “Deus, pátria e família” nem mesmo as falações “em línguas” ou as orações ensaiadas entre os destroços.

Para facilitar a compreensão, prometendo fugir do tecnicismo jurídico, separarei o art. 2º da Lei nº 13.260/2016 em quatro partes. Vamos ler juntos? 

“[1] O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, [2] por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, [3] quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, [4] expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

Percebe qual trecho não se enquadra dos atos nefastos praticados pelos radicais bolsonaristas, em Brasília? Se não percebeu eu digo: a [2] “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, que são requisitos causais, motivos ensejadores da prática delituosa.

Não confunda. Uma coisa é a religião estar de algum modo presente nos discursos de vários dos que atacaram os Três Poderes, outra é o ataque ser motivado por discriminação ou preconceito religioso.

Por essas razões, desculpo-me pela interferência no debate e reafirmo: os “patriotas” que depredaram os Três Poderes não são terroristas à luz do direito penal, são golpistas perigosos que devem responder criminalmente pelo que fizeram, nos limites e com as garantias da Lei, em nome da democracia.


domingo, 8 de janeiro de 2023

O VALOR QUE O PEIDO TEM

Aguardava por atendimento diante do balcão da farmácia. Precisava comprar os cachetes que tomo desde os 25 anos de idade para controle da pressão arterial e do colesterol. Herança genética, segundo o cardiologista.

A fila estava parada porque uma senhora elegante, com sinais externos de hipocondria, a considerar as três cestinhas apinhadas de medicamentos, vitaminas, fitoterápicos, monopolizava a única funcionária disponível. Até Emulsão de Scott – eca! – a dondoca separara. Suspeito que este item, em especial, serviria de instrumento de tortura contra algum filho ou neto.

E eu ali, puto da vida, já pensando em mudar de fornecedor de drogas, comecei a ler anúncios colados nas prateleiras na expectativa de abstrair, quando, de repente, encontro o Luftal em promoção pela bagatela de R$ 46,00.

Inevitavelmente me veio à lembrança “O Valor que o peido tem”, de Celso da Silveira, de quem fui quase vizinho quando morei em Natal pela segunda vez, a partir de 1999. O título do livro, na verdade, é “Peido – O traque... O valor que o peido tem”, uma ode à emancipação do pum. Palavras dele:


“O peido de um general 

não pode ser comparado 

com o peido de um soldado

Que em tudo é desigual

Tem gente que peida mal,

há outros que peidam bem

Eu não conheço ninguém

que ainda não tenha peidado

Mas o povo não tem dado,

o valor que o peido tem”.


Com o Luftal em gotas ou comprimidos, de marca ou genérico, por quase 50 contos, eu mesmo já reconheço a grandiosidade da flatulência espontânea. 

Lógico, quem peida bem talvez saia por aí peidando e andando para o semelhante que vive entourido – chique, não é? Entourido! Prefiro o popular “inturido” –. Há, de fato, pessoas sádicas que não se importam com o sofrimento do pobre coitado – nada de Menino Pobrezinho, pela caridade – que sente as dores do parto sem parir, no exato instante em que a bufa resvala do tórax ao vazio, na transversal, sem encontrar a luz no fim do túnel.

Feliz era a musa de uma das mais célebres glosas fesceninas do Rio Grande do Norte, de autoria atribuída a Moyses Lopes Sesyom. De acordo com o poeta, a figura não passava tempo ruim, bastava fastar a perna de lado para fazer a terra balançar que nem os terremotos de João Câmara e Caraúbas. Diz assim:


“MOTE

O peido que a doida deu

Quase não cabe no cu


GLOSA

Isto ontem aconteceu

Debaixo da gameleira,

Foi um tiro de ronqueira

O peido que a doida deu.

A terra toda tremeu,

Abalou todo o Assú,

Ela mexendo um angu,

Puxou a perna de lado

Deu um peido tão danado

Quase não cabe no cu”.


Francisco Augusto Caldas de Amorim, na 3ª edição de “Eu conheci Sesyom”, que me foi presenteada por Fernando Tavares, atesta a autoria dos versos. A inspiradora, conforme Chisquito, foi Bandeira, mulher que habitava à sombra de um pé de gameleira que havia defronte onde veio a ser construído o Cine Pedro Amorim, em Assú/RN, nas décadas iniciais do século XX. O escritor João Ramalho, contudo, acusava Sesyom de plágio. A glosa ou o mote seria de um sujeito de Campo Grande cujo nome não recordo, embora o autor de “O beato da serra de João do Vale” sempre me falasse a respeito.

Debates à parte, e seja lá de quem for o peido da doida, só peço a Deus que me livre e guarde do entourimento – outra vez –, mas também do peido público, principalmente em tons denunciadores, ofensivos, humilhantes, que, confesso, já me pegaram desprevenido. 

Você fala e o bicho escapa semitonando. Exagero? Não! Pergunte a Deltan Dallagnol, que, em mensagem interceptada pela Vaza Jato – não é trocadilho – escreveu a frase “foi o tom do meu último peido”. Na época, a internauta Lívia Prata postou no Twitter que estava em dúvida se Deltan peida em “lá sustenido” ou “dó menor”.

Bom, o cara era procurador da República de Curitiba, renunciou para não ser punido e se elegeu deputado federal mais votado do Paraná, com quase 345 mil votos. Autarquia dessas, arrisco dizer, peida grave e grosso, em mi maior.

Pode parecer implicância. Jamais! Dou maior valor. Ruim é a sensação de querer e não poder peidar livremente. A liberdade precisa ser valorizada, tanto a dos patriotas quanto a dos esquerdistas, como também defende o grande Otacílio Batista:


“O peido é bom toda hora

Sem peido não há quem passe

A criança quando nasce

Tanto peida como chora

Um peido ao romper da aurora

Eu não troco por ninguém

Há noites que eu solto cem

Peidos grandes e pequenos

Já conheço mais ou menos

O valor que o peido tem”


Jurava que esses versos eram de Celso da Silveira. Não vou brigar com o Google, o pai de todos os burros. Ele certamente tem razão, considerando que 90% das minhas memórias são falsas e os outros 10% eu invento. De qualquer maneira, vou checar a informação em livros de “mermo-mermo”, em que a tinta sangra no papel, quando fizer bom tempo e puder entrar no quartinho em que está a minha singela biblioteca. Pode ser que os dois, Celso e Otacílio, tenham se servido do mesmo mote.

Abre parênteses.

Fiquei confuso com algo que escrevi parágrafos antes e que volta ao pensamento provocando a interrogação: bufa é manifestação da esquerda ou da direita? 

Ao alcance da mão, tenho o Houaiss, melhor dicionário da língua portuguesa da atualidade, conforme especialistas. Para ele, peidar significa “disparar peidos involuntários e repetidos”. Ou seja, um ato inconsciente coletivo que ignora a livre iniciativa, a existência e o prazer da porção unitária de gases. 

O peido, assim anunciado, só pode ser comunista, e o preço da simeticona um instrumento de exploração capitalista, mas vamos esquecer as ideologias. Deixa para lá, como diria o professor e advogado Charles Phelan, alter ego de Melissa Hofman, amante psicodélica do jornalista Jacson Damasceno.

Fecha parênteses.

Resumindo a ópera bufa – sem trocadilhos, repito – prefiro morrer entourido – ha, ha, ha, ha... ha... muito engraçado escrever desse jeito – do que pagar R$ 46,00 num frasco de Luftal. Domingo, também conhecido como hoje, amanheci na feira em busca de hortelã-pimenta, cidreira, erva-doce, camomila, louro e boldo. Estoque para dois meses garantido por menos de R$ 10,00.

Vou experimentar agora. Você não está convidado, não apareça. Quem avisa amigo é.



sábado, 7 de janeiro de 2023

Microconto nº 7

Meio quebrantado, mais ou menos capiongo, um tanto quanto bafejado pela Papary, olhou o espelho no fundo dos olhos e filosofou: “Não é fácil explicar o belo a quem só consegue enxergar o feio”.