sábado, 24 de dezembro de 2011

Palavras e amigos


Muito cuidado com as palavras na hora de lidar com os amigos. Pequenas frases, aparentemente inofensivas, podem ser mal-interpretadas e desgastar ou até mesmo destruir belas amizades. Digo isso porque na última segunda-feira descobri, sem querer, que uma amiga das mais queridas estava magoada comigo, por causa de um comentário bobo feito há semanas.

Talvez o momento impróprio. Talvez o tom de voz, o barulho do ambiente, o uísque, a música do Pink Floyd protestando contra o controle social. Talvez insensibilidade minha. Talvez o estado de espírito dela. Talvez semântica, semiótica, ruído de comunicação, comida macrobiótica, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, a cachorra da moléstia, o diabo a quatro. Talvez, talvez, talvez.

Pode ter acontecido qualquer coisa, e isso não importa. Importa o malfeito a ser reparado. Importa a lástima, a lâmina, a lágrima. Importa a tristeza, a vontade de não abrir os olhos, a vergonha, a consciência, a autopunição por haver usado falas equivocadas, a escolha da ironia abstrata, vaga, obscura, quando o instante clamava por solidariedade concreta, firme, cristalina.

Cuidado nas palavras e nas amizades. Tente uni-las na medida certa, no dizer e no ouvir. Tão importante quanto o texto é a compreensão que se tem dele para diferenciar brincadeira e insulto. Se houver problemas no arrazoado, não se constranja, pois as pessoas podem até não interpretar bem certos comentários, mas aceitam de bom grado o pedido de desculpa de um amigo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Conto de Natal


Inacreditável: acabo de disputar o banheiro com Papai Noel. Ele chegou transtornado, suando feito tampa de chaleira, e furou a fila sem a menor cerimônia. A vez era minha, juro por Deus, então protestei gritando um “Êpa!” logo ecoado nas bocas dos demais sofredores. Alguns, em situação visivelmente pior, acrescentaram desaforos ao enredo.


Depois de encastelado naquele templo de ágata, muito bem sentado no trono, o Bom Velhinho passou a nos desejar fortuna, amor, paz, e a clamar paciência, como um perfeito cristão. Em seguida, hô-hô-hô, começou a nos intimidar: se não o deixássemos esvaziar o saco e coisa e tal, usaria as missivas com nossos pedidos a fim de limpar o fiofó.


A galera apelou, pois chantagem dessa ordem é inadmissível. Queria arrancar o indivíduo pelas barbas brancas, enfiar-lhe goela abaixo a bolinha do gorro, chutar-lhe a enorme trouxa vermelha. Ninguém, no entanto, conseguiu aproximar-se. A inhaca de peru estragado na véspera – eca! – avançava pelas frestas da porta e rechaçava o inimigo.


Interferi, mas quase apanhava. Ofereci a vez, mas não colou. Propus enviar carta por debaixo da porta, mas o papel estava lá dentro. Chamar Rafinha Bastos para comê-lo com barriga e tudo, mas Ronaldinho reclamaria. Chael Sonnen para desafiá-lo estapeando o bumbum da Mamãe Noel, mas a Lei da Palmada complicaria a vida do lutador.


Santa Claus demorou além do necessário. “De pirraça”, diziam os sobreviventes da fileira já um tanto acrescida de desesperados. O sujeito ainda provocava cantarolando “Jingle bells, jingle bells, acabou papel”. Foi quando perdi as vontades e debandei, não sem bater à porta e mandar o tal Papai Noel... ter um feliz Natal e um profícuo “ânus-novo”.



sábado, 10 de dezembro de 2011

Não deu tempo reagir


Não deu tempo reagir. A bandida jogou-me na cama, invadiu-me as calças com a mão ligeira e botou para fora o que julgava seu de pleno direito. Lambeu, mordeu, esfregou entre os peitos, no rosto, engoliu, deixou no ponto. Aí, agarrou movimentando devagar, mas com força, enquanto passava a língua em meus lábios inundados de saliva.


Tomei as rédeas. Segurei-a pelos cabelos num movimento perpendicular que a deixou de lado, sobre o colchão. Entrei fundo, sem pedir licença, sem alterar a pintura, deslizando entre paredes de carne úmida. Ela reagiu com arrepios, gemeu e mais gemia, baixinho, com um ou outro sobressalto, na cadência dos nossos corpos quentes, suados.


O hálito de malbec, o cheiro dos fluidos, do amaciante dos lençóis, do perfume exalado dos pulsos, do pescoço, detrás dos joelhos, tudo misturado. Tudo alucinante, a confusão dos braços, dos membros, das babas, o ímpeto de dizer indecências, o dicionário de palavrões saindo da ponta da língua afiada para se perder nos labirintos do ouvido.


Seios latejavam no céu da boca liberando hormônios alucinógenos através dos bicos eriçados, uma espécie de fonte das fantasias, as de sempre e as da vez digladiando-se nas mentes desprovidas de pudor. Isso, enquanto a bunda abundava entre os dedos que a apertavam, testemunho do vigor dos tecidos, da veemência da matéria pulsante.


De repente estávamos de frente, revezando-nos na escala horizontal, em cima, embaixo, a cama preenchida, parecíamos tantos. De repente nos levantamos sem sair um do outro, portas, guarda-roupa, criados-mudos, armadores de rede, cada recanto. De repente por trás, de dois, de quatro, sem pé nem cabeça, sem chão. De repente no chão.


Havia sinais de explosão quando a doida vibrou no mesmo tom. Tremores, rigidez muscular, revirar de olhos, sensação de se entregar à morte sem deixar de viver, dentes trincados, até que, atingido por ela o máximo do máximo, arranquei-me de dentro para banhá-la por fora com jatos de âmbar. Aí, enroscados, nos apaziguamos. E dormimos.


sábado, 3 de dezembro de 2011

Entre pessoa e heterônimo


Descobri algo assustador: minhas dores não caberiam nesta página. Nem que me dessem um jornal inteiro, não se mostrariam por completo. Dadas as circunstâncias, melhor mantê-las onde estão, no fundo da alma, gritando inutilmente contra as paredes do buraco negro que habita em mim, à espera de cura ou de paliativo que as adormeçam.


Madrugadas, bares, mulheres em cetins, versos para envolver musas desinteressadas ou, quem sabe, apenas distraídas, soluços ébrios entrecortando orações. Foi-se o tempo das sutilezas, quando as paixões duravam a eternidade das horas de uma noite, as raparigas vestiam luzes vermelhas e gatos pardos se amavam feito loucos nos telhados.


A poesia caiu em alto-mar, sem que dessem por sua falta, nas rotas de “Oropa, França e Bahia”. Agora, por circunstâncias vis, não consigo tocar a lira, herança de Orfeu; não posso gritar “Evoé!” para começar a orgia; e só me vem à telha, repetindo-se sem parar, a canção de Caetano com a realidade nua e crua: “O grande escândalo sou eu aqui, só”.


Queria desabar no sono em vez de escrever: a insônia é quem escraviza o lápis entre meus dedos curtos, impróprios para os adeuses. Queria dormir e sonhar: a vigília é quem instiga o pesadelo, cão de três cabeças que espreita as portas do inferno para ninguém escapar. Queria ser menos triste: quem tanto se derrama um dia será seco feito pó.


Enquanto isso, palavras feridas curvam-se aos pés da vencedora e mostram o fundo das calças sem constrangimento. Elas, as palavras, até esboçam reação, mas os acentos circunflexos pesam sobre suas veias um tanto corrompidas por desilusões, levando-as a me dizer, como naquele velho Tango pra Teresa, “Que é hora de lembrar/ E de chorar”.


Por sorte, sou muitos. Divido-me na confusão entre pessoa e heterônimo e assim sobrevivo dos que me absorvem. A ideia do múltiplo pulveriza a angústia e evita que o indivíduo em estado de merda puxe em si a descarga. Estopar o vale de lágrimas, porque existe vida além das covas, será o próximo ato antes de reabrir o barraco à visita pública.