sábado, 27 de julho de 2013

O papa é pop


Dizem que os Engenheiros do Hawaii venderam 400 mil cópias, em 1990, do álbum "O Papa É Pop". Eu tinha um em vinil. Músicas como "O Exército De Um Homem Só", "Era um Garoto Que, Como Eu, Amava os Beatles e os Rolling Stones" e "Pra Ser Sincero", além daquela que intitula o projeto, são ouvidas até hoje em casas noturnas do Brasil, de Norte a Sul.

O carro-chefe do disco, aqui para nós, numa interpretação ultrapessoal, critica a massificação dos fatos e das pessoas pela mídia, a ponto de tudo e todos se tornarem alvos do bem e do mal. Nem o papa João Paulo II, que "Deus deu de Graça", conforme Gonzação, foi poupado de manchetes e de "um tiro a queima roupa", afinal "o pop não poupa ninguém".

Karol Wojtyla era querido e respeitado. Ocupou o trono de Pedro por quase 27 anos, a partir de 1978. O nome dele reverberava nos templos como a do santo a que será elevado. Foi estadista, falava 13 idiomas, influenciou o fim do comunismo na Europa, aparou arestas com judeus, islâmicos, ortodoxos e anglicanos. Visitou 129 países, só o Brasil por quatro vezes.

O hino dos Engenheiros, da autoria de Humberto Gessinger, é o que vem à mente com as transformações históricas às quais assistimos desde a fumaça branca do último conclave. O chefe supremo dos católicos no Twitter, igual a qualquer cidadão, tirando onda com a brasilidade do Todo-Poderoso - "Deus é brasileiro e vocês queriam um papa?". Quem diria!

O papa Francisco é pop, muito mais que os antecessores. Sua mensagem ao Brasil foi ouvida com simpatia até por seguidores de outros credos, agnósticos, ateus. O Vaticano, acostumado a impor dogmas goela abaixo e a proteger pedófilos sob batinas, ganhou líder capaz de trazer a instituição à realidade do terceiro milênio e frear a debandada de fiéis.

Justiça seja feita a Bento XVI, que, no corajoso ato de renúncia, revelou a humildade que ninguém enxergava nele e pôs fim à ideia faraônica da infalibilidade. A humanização, no entanto, está na carne e no sangue latino de Jorge Mario Bergoglio, cujo grande desafio será colocar a instituição mais rica do Planeta a serviço dos pobres. Tomara que consiga.


sábado, 20 de julho de 2013

Bolseta Família


Um membro duro da sociedade baiana tentou pagar uma garota de programa com o cartão do Bolsa Família, em Itapetinga, cidadezinha de aproximadamente 70 mil habitantes situada a 500 e tantos quilômetros de Salvador. Aflita e se sentindo lesada, a profissional do sexo pediu ajuda aos funcionários do motel, aos berros de "Golpe! Golpe!".

O sujeito não fez por maldade, estava precisado, a perigo, matando cachorro a grito. A moça, no entanto, esclareceu que sua maquineta não serve nem para passar cartão de crédito, quanto mais de programa social do governo; e que o bacalhau, a exemplo da sacanagem que fizeram com o camarão, foi vetado enquanto possível ingrediente da cesta básica.

Não adiantou o caboclo mencionar o caráter educativo do ato, as posições ideológicas do Kama Sutra e a eficácia fisioterápica dos alongamentos noturnos. Estado de necessidade, legítima defesa, protesto contra o orgasmo supostamente fingido pela jovem, a irresignação do povo brasileiro, nada sensibilizou a interlocutora.

O recepcionista do motel, na dúvida quanto aos honorários da trabalhadora e na suspeita de que o estabelecimento ficaria no prejuízo, chamou a Polícia Militar, que, de pronto, mandou guarnição ao local. O camburão teria entrado no estabelecimento,  com sirene ligada e luzes vermelhas piscando, só para criar aquele clima fetichista.

O herói da história ainda pediu que experimentassem seu Cartão do Cidadão, aquele emitido pela Caixa Econômica para a galera consultar saldos e sacar FGST, PIS, seguro-desemprego, abono salarial, essas coisas. A dona, contudo, revelando-se antenada com as transações - bancárias! - cortou-lhe o barato sem dó nem piedade: "Na poupança não entra!".

Sobrou para o som do carro, empenhado como garantia do pagamento das duas despesas, instante em que o membro da classe operária, ainda rijo, partiu em busca de socorro financeiro. Normal, tenho notícias de amigos que, além do insucesso nas projeções, precisaram deixar relógio, celular e pneu de estepe como caução do todinho.

Não se ria, meu amigo, pois a coisa é gravíssima, virou matéria na Folha de S. Paulo, e com destaque. Até a gloriosa Polícia Civil entrou no caso com unhas e dentes. O delegado quer explicações urgentes sobre o fato de os militares não terem formalizado a ocorrência nem prendido o meliante, autor da tentativa sabe-se lá de quê.


Espera! De repente, cai-me feito farelo de telha no cocuruto, um baião das antigas: "Tem mala, malinha e maleta/ Tem bolsa, bolsinha e Bolseta". Elementar, meu caro, o crime do indigitado está em recriar um diminutivo que a sabedoria popular acata, mas o dicionário não reconhece. Delito gramatical: Tem Bolsa, Bolsinha... e Bolseta Família.


sábado, 13 de julho de 2013

A mulher do próximo


Perdoai-me, Senhor, pois eu pequei. Mas também, não cobiçar a mulher do próximo, mesmo correndo riscos, já que o próximo estava realmente próximo, seria impossível a qualquer homem que se deparasse com a dama a quem meus sentidos despiram.

Além da penumbra do ambiente sob a lua nova, a taça de vinho tinto seco e a brisa marinha, vieram aquela boca devassa e aqueles olhos malditos desafiar a insônia dos seiscentos diabos que me devora a cada domingo. Se foi uma provação, convenhamos, exagerastes na dose.

Felizes os homens que conseguem dormir aos domingos, sem precisar sair por aí, tomando uns goles para entorpecer o juízo, atrapalhando a sinfonia das corujas, ouvindo o lamento dos desgraçados, desfiando sozinho o seu próprio rosário de desejos.

Desejos que nem sempre são puros, desejos de trair o paladar misturando cachaça com coca-cola e de se apaixonar louca e alucinadamente por mulheres sem nome cujos rostos serão esquecidos ao cair do primeiro raio de Sol, na hora de voltar pra casa.

Bem-aventurados os que não se esquecem da noite passada nem perdem beijos na neblina. Malditos os que desprezam as conquistas, desgraçada aquela noite, desgraçada aquela mulher que se foi sem legitimar o meu pecado para morrer no esquecimento.

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Texto originalmente publicado no O Mossoroense, aos 5 de dezembro de 2002.

sábado, 6 de julho de 2013

QUE SORTE!


Mossoró se vê de longe. Antigamente - o antigamente da minha infância e adolescência -, a cidade só se manifestava quando o viajante cortava o lombo do Alto de São Manoel. Isso, se viesse das bandas de Assú, pois, na procedência de Tibau ou de Aracati, pelo outro lado da BR-304, as vistas alcançavam a área urbana na linha do Puxa-Boi.

Quem chegasse de Areia Branca, de Governador Dix-sept Rosado, de Apodi, de Baraúna, praticamente despencava em nossas ruas, sem aviso prévio. De Apodi, na verdade, a fábrica de cimento, que era tão longe, tão distante, tão afastada, antecipava de certa maneira o encontro, espécie de anteclímax da penetração na faixa habitada do velho município.

A geografia nos reservou um vale sem montanhas, à margem do rio hoje perene, mas poluído por todas as pessoas de todas as localidades pelas quais ele tem a má sorte de passar. Menino, escondido de meus pais, fazia festa nas águas das chuvas de verão: Barragem de Genésio, Ponte de Ferro, Centro, Paredões, e sítios de parentes e amigos.

Bem ou mal, os tempos mudaram, as coisas avançaram. A "cidadona", como a classificou o historiador Raimundo Nonato da Silva em 1919, ano de sua mudança para cá, aos 12 de idade, encaixou-se nessa definição, ganhando ares e problemas de metrópole. Cem homicídios em seis meses bastam para revelar o quanto a tribo dos monxorós "evoluiu".

Mossoró virou uma senhora exibida, cujas luzes projetadas no céu escuro parecem próximas a qualquer observador. Mesmo sob o sol nordestino "de dois canos, de tiro repetido", na expressão de João Cabral de Melo Neto, as silhuetas dos arranha-céus, aglomerados especialmente no bairro Nova Betânia, mostram-se no rastro de quilômetros.

Certa feita, passeando de bicicleta com meu filho no calçamento infernal da Amaro Duarte, para fugir do trânsito da Duodécimo e da João da Escóssia, contei-lhe, a despeito deste tema, que, na idade dele, eu brincava ali, em ruas de barro, onde acabava a cidade, onde havia matas, lagoa, currais. E ele, olhos baixos, exclamou: "Que sorte a sua!".