domingo, 27 de março de 2022

BREVE EXERCÍCIO SOBRE ARGUMENTAÇÃO

 A argumentação é capacidade inata do ser humano. Ao nascer, instintivamente, a criança dá sinais claros sobre o que precisa, deseja, gosta, detesta, teme. Argumenta, por meio do choro, do riso, de movimentos corporais, que, embora inconscientes, não deixam de ser recursos lógicos capazes não apenas de levar o adulto à compreensão de algo, mas também de o convencer a respeito de alguma coisa.

Inicia-se ali, nas relações mais instintivas da existência, o exercício cotidiano de uma dialética que acompanha o indivíduo até o fim da vida. E mesmo além da morte, como se dá com grandes pensadores, a exemplo de Sócrates, Platão, Karl Marx, Bakhtin, Foucault, cujas ideias sobrevivem aos limites do corpo físico e se mantêm em latente dialogismo, despertando sentidos, geração a geração.

Percebe-se que a argumentação é essencial à vida em sociedade, em caráter indissociável. Naturalmente, ela ganha complexidade com o desenvolvimento das linguagens que integram a pessoa ao meio, com o apuro de marcas e mecanismos retóricos – silogismos, paradoxos, ironias, metáforas –, não sendo exagero afirmar que a experiência comunitária é um ato argumentativo por excelência.

Tudo o que faço ou deixo de fazer direciona-se ao outro, ao convencimento do outro. Eu, na verdade, arremedando Mário de Sá-Carneiro, “sou qualquer coisa de intermédio... que vai de mim para” a multidão de outros que me constituem sujeito. Mesmo na aparente concordância, eu e esses tantos outros – de mim e de além – estamos em luta infinita para estabilizar ou desconstruir enunciados.



Nas práticas acadêmicas, tais operações cognitivas ganham dupla importância: a da argumentação em si, em pleno uso, trabalhado com rigores intelectuais e certo grau de consciência retórica em prol do convencimento da comunidade científica; e a do ato ou efeito de argumentar enquanto objeto de estudo de diversos campos teóricos, como direito, filosofia, linguística, história, comunicação social.

Isso não significa que os letrados detenham a primazia da razão – a maioria, aliás, não chega à sola da apragata do repentista analfabeto –, até porque, nas democracias, em tese, a todos assiste o direito fundamental de se expressar, sem distinção de qualquer natureza, nos limites da lei, como forma de equilibrar as relações de poder. Na falta do argumento livre e plural, proliferam-se as tiranias.


sábado, 12 de março de 2022

QUALQUER PRAÇA TEM QUATRO PAREDES QUANDO O AMOR É URGENTE

Minha solidariedade aos amantes filmados na varanda do Teatro Dix-huit Rosado, em plena e benfazeja antropofagia cultural, e expostos nas redes antissociais. A mulher, dizem, com maior veemência, realçando a evolução da mentalidade do povo que se gaba de haver alistado a primeira eleitora brasileira.

Sem querer defendê-los, suponho que se imaginavam ocultados pelos tapumes que embelezam o Corredor Cultural da Rio Branco, desprovidos da vontade de ultrajar o pudor de quem publicizou a cena, insensível ao amor improrrogável, ao amor de improviso, que não sabe, não faz hora, mas teima acontecer.

Quiçá enredados por Nelson Rodrigues, percebiam-se invisíveis em “uma selva de epilépticos”; ou desejavam aplicar a tese de Jabor segundo a qual “o sexo sonha com proibições”. Para rompê-las, é claro. Talvez tenham se tornado valencianos: “cão vagabundo” e “onça-pintada” gozando metáfora na realidade.



Alguém dirá que esta crônica de meia pataca exorta a imoralidade, o pecado capital da luxúria e até o crime. Não se trata disso, e sim de expressar a sensação de que a imprudência peculiar dos amadores, se ofende alguém, ofende bem menos que a malícia do voyeur que grava e faz circular cenas de tal ordem.

É, “o Grande Irmão está de olho em você”. Há câmeras por todo lado, em todas as mãos, a serviço do público e do privado. George Orwell teria noção de que o seu Big Brother romperia os limites de Oceânia para dominar o mundo? Seria a realidade, depois de 1984, uma refração vulgar de lentes desfocadas?

Na falta de respostas, só posso dizer que transar em tempos de guerra soa como anúncio de paz, não desaforo, apesar do exibicionismo dos enamorados e da psicose dos espectadores. Além disso, qualquer praça tem quatro paredes quando o amor é urgente. E, se for a do teatro, sexo é pura expressão da arte.