sábado, 24 de julho de 2010

A vizinha



“Há um bocado de gente
Na mesma situação
Todo mundo gosta dela
Na mesma doce ilusão
A vizinha quando passa
Que não liga pra ninguém
Todo mundo fica louco
E o seu vizinho também.”
Dorival Caymmi

O instrumentista Danilo Caymmi, assim o apresentam, cantou aquela música da vizinha, composta por seu pai, Dorival Caymmi: “A vizinha quando passa/ com seu vestido grená/ todo mundo diz que é boa/ mas como a vizinha não há...”. Antes, disse que a moça, possivelmente baiana, existiu de fato e que, segundo a tradição, fazia jus à homenagem do velho.

Lembrei-me da vizinha de um dos meus primos, morador, à época da história, da avenida Alberto Maranhão, ali no centro. Não revelo o nome dele para não entregar a beldade por tabela. O endereço já é muito. A danada tomava banho no quintal nos finais de tarde, nuinha, nuinha, povoando os pensamentos da meninada com aquele corpo dos seiscentos capetas.

Ensaboava-se com visível prazer. Devagar. Cada parte. E o vento, criatura de sorte, arrepiava-lhe a pele depravadamente morena. Quando em vez, pousava os olhos castanhos sobre um dos ombros, enquanto se esforçava para alcançar a maior área possível das costas. Balzaquiana. Isso, devia ter seus 30, idade das idades. Nós, os voyeuristas, por volta dos 15.

Foi a época em que comprei meu primeiro Kama Sutra. Doido para experimentar as acrobacias eróticas ensinadas naquele santo livrinho, em meio ao apelo dos hormônios. Ah se tivesse sido com a vizinha, o papai-mamãe, a cadeira de balanço, o aprisionado, a oferenda, a sonolenta, a catalã, a medusa, o arco, a catapulta, a profunda, o furor selvagem ou a libélula.

Quanto alumbramento, quantas vezes toquei aquelas curvas, aquelas coxas, aquela bunda, aquele sexo, com as mãos púberes. Quantas vezes me despi, e a cheirei, e a lambi, e a mordi, e a penetrei com firmeza, sem que ela soubesse, sem que ela sentisse o gozo, os fluidos despejados em sua boca, sem que ela imaginasse quem a desejava além das fantasias.

sábado, 17 de julho de 2010

"Volta, Canindé!"



Pintou nostalgia. Deve ser o “uisquito gringo”. A terceira dose, feito o conhaque de Drummond, deixa a gente “comovido como o diabo”. Ainda mais assim, sozinho, caneta e guardanapo sobre a mesa. De repente, entre rabisco e outro, que se imaginavam poesia, as letras mal-amanhadas formam um nome nada afeito ao lirismo: Canindé Queiroz, fundador da Gazeta do Oeste, polemista ferino, que marcou época no jornalismo “tupiniquim”, despertando sentimentos de amor e de ódio.

Brigou com muita gente, quase o mundo inteiro. E de peito aberto, sem se esconder na barra da saia do anonimato. Nem eu, menino velho, escapei. Acusou-me de algo engraçado: ser rosalbista. “Tem rosalbista editando o vetusto O Mossoroense”, dizia, irado, porque o jornal não se filiou à campanha dele contra Rosalba Ciarlini. Quando passei no vestibular para o curso de Comunicação Social da UFRN, telefonou-me lamentando o que considerou “rebaixamento de profissional a estudante”.

Fez escola com o famoso estilo arrasa-quarteirão, tanto que, embora não escreva há anos, ainda inspira profissionais e comunicadores leigos, inclusive e estranhamente umas vítimas de seus escritos, nos tempos áureos da coluna “Penso, Logo...”. Isto, Freud explica. Vem daí, na terra de Souza Machado, a incapacidade para se distinguir entre crítica e agressão, bem como a ideia de que jornalista bom é o sujeito escroto que bota para moer, escreve palavrões, desaforos, humilha e ridiculariza.

Na briga com Gustavo Rosado – vixe, parece que foi ontem! –, Canindé banhou de ouro um baú de injúrias, calúnias e difamações. Referências tão descabidas só voltaram a ser feitas ao hoje secretário do Gabinete da Prefeita, em processo judicial recente, quando advogados interrogavam falsários do vuco-vuco. A defesa de Gustavo contra a Gazeta do Oeste coube ao movimento artístico e, creiam-me os jovens, a este jornaleco que o Palácio da Resistência persegue com energia e entusiasmo.

A guerra contra o Colégio Sagrado Coração de Maria (Colégio das Irmãs), sem poupar as freiras, as mães de alunos nem o Papa João Paulo II, a quem desejou penetrações profundas em sete vias e com areia da praia, suscitou debates além das fronteiras do Rio Grande do Norte. E não havia Internet. Carlos Santos, editor da Gazeta, à época, impediu a publicação do texto em que o chefe utilizava cinquenta sinônimos de “homossexual” para designar respeitado sacerdote de nossa paróquia.

Não conseguiu evitar, no entanto, que certo jurista tivesse o lombo – como era mesmo a expressão? – “amaciado com porrete de jucá”. O homem não merecia, asseguro, mas apanhou até o colunista cansar o braço de tanto bater. Ah, voltou-se também contra colega nosso, de redação, estimulando-o a usar cangalha como fardamento de trabalho. Vários professores da Ufersa, além de empresários de dentro e de fora do “condomínio”, sentiram o peso das palavras com as tintas de CQ.

A campanha anti-Rosalba, mencionada no início deste arremedo de crônica, foi das mais cruéis, equiparando-se a episódio de há pouco, tendo por alvo a deputada federal Sandra Rosado. Em ambos os casos, as ofensas são intranscritíveis e atingiram níveis extremos. O contra-ataque da Rosa, pelas vias judiciais, arrasta-se por 15 anos, impondo severas indenizações à Gazeta, sem, contudo, desarticular a estrutura do jornal, que se mantém e cresce graças à competência de Maria Emília.

Esse relato comparado ao estilo dos neopolemistas dá uma saudade! Imagino até realizar a campanha “Volta, Canindé!”, lá no “tuíte”, como estímulo para que o mestre retorne às páginas da “urbe amada de todos nós”. CQ será idolatrado e o porrete de jucá convertido em bastião da democracia. Os únicos problemas, frente aos que se julgam seus discípulos, seriam os fatos de ele ser inteligente e ter coragem para assinar o que escreve. Mesmo assim, valeria a pena: “Volta, Canindé!”.

sábado, 10 de julho de 2010

Olhos



Jamais esqueci nenhum. Os primeiros eram negros, redondos, ornados por cílios enormes. Diziam pouco de si, apenas o bastante para encantar a garotada. E como seduziam! Seduziam e se aproveitavam da inocência dos meninos naqueles tempos de fogueira, milho verde e balão.

Os segundos, amendoados, apertavam-se na moldura do rostinho trigueiro e falavam pelos cotovelos. A poesia os agitava, dava-lhes o brilho das estrelas de grandeza superior. Por eles, os rapazes bebiam enormes goles no cálice do ciúme e faziam todas as besteiras juvenis.

Depois vieram uns cuja cor nem é bom mencionar. Diferentes dos primeiros, que enganavam sem malícia, estes mentiam por maldade, roubavam a pureza, a fé e lançavam qualquer pessoa na sarjeta, sem dó nem piedade. Quem escapou ainda traz as marcas de suas unhas no corpo e na alma.

Por outro lado, houve dois favos de mel. Os mais doces e meigos de todos, sempre empenhados em fazer o bem e em semear a felicidade nos corações humanos. Amavam de modo pleno, fiel e compreendiam as particularidades alheias, por estranhas que fossem ou parecessem aos comuns.

Os penúltimos eram depravadamente azuis, iguais àquelas metáforas batidas: azuis da cor do céu, da cor do mar, de anil etc, etc, etc. Loucos de pedra. Não mentiam por nada neste mundo, mas suas verdades rasgavam a carne com a violência de uma navalha cega, com a insensatez do fogo das paixões.

Os de ontem também surgiram azuis até se revelarem castanhos. A cada frase, dez mistérios que os tornavam ao mesmo tempo inocentes e depravados, verdadeiros e falsos, doces e amargos, generosos e cruéis. Por isso, meu amigo, deixo o aviso: caso os encontre pela noite, não arrisque fitá-los. Você pode imaginar o céu e cair no inferno.

sábado, 3 de julho de 2010

Profilaxia



Mastigo um punhado de palavras por vez, tentando encontrar sabor menos amargo nas construções verbais. Não devo vomitar orações unidas pela saliva grossa de ontem à noite, embora o desejo seja tanto e me consuma desde quando. É difícil, certas vezes, o sujeito conter a própria voz, ficar quieto, policiar-se para não botar a alma a negócio nas mãos do diabo, por momentos fugazes nos braços das fúrias.

Megera, mãe do ciúme, da inveja, do rancor, perseguidora implacável, eterna memória das fraquezas. Tisífone, marcando a loucura no compasso do chicote. Alecto, que alimenta as maldições no prato da soberba e rouba o sono dos incautos com as tochas do desassossego. São filhas da vingança, essas fúrias, existem desde antes de o mundo ser mundo, e perdem o homem mais que as ilhas de Drummond.

Também não cuspo. O azedo. Pedra. Espinho. Trituro. Engulo. Calado. Desce. Volta. Atravessa. Rumino. Truncado. Seco. Boca. Garganta. Estômago. Estômago. Garganta. Boca. Por enquanto? Para sempre? Sei lá! O tinhoso não sabe. Deus não sabe. O padre! Sim, o padre! O cão sabe! Ou imagina? Infeliz. Insípido. Inodoro. Indigesto. Filho da... Epa! Ponto. Pronto. Xapralá. Pronto. Ponto. Pronto... Ponto.

Sábio não se deixa seduzir por tais beldades. Sábio não vai às ilhas. A tentação pode ser grande, enorme, gigantesca, mas ele espera, porque conhece as voltas do mundo. Iazul. O idiota relincha palavras de ordem, mete as patas sujas pelas mãos e lança coices de ofício, ao som das ventosidades anais que lhe escapam em semitons. Não sabe, coitado, que as cobras morrem por excesso de confiança no veneno.

Perdoe-me, estimado leitor, pelos desarranjos no estilo, nesta viagem nas asas libertinas dos delírios. Tenho me contido para não escarrar na cara de fantasmas sem formação óssea, cartilaginosa ou moral que você desconhece, por sorte e saúde mental. E isso, para o ora pretendido, é desnecessário. Basta que os fonemas penetrem o juízo certo, na dose exata, para surtirem os efeitos profiláticos desejados.