sábado, 21 de julho de 2012

Saudade e esperança



Vesti o paletó cinza-claro para trabalhar quinta-feira. O dia inteiro. Ninguém percebeu. Parecia um daqueles que tenho usado nos últimos meses, como castigo por haver me formado em Direito e passado no exame da OAB. Eu, que sempre andei de camiseta e calças jeans, agora de terno e gravata. Absurdo!

Diazinho complicado, a tal da quinta, de muita saudade por um lado e muita esperança de outro. Onze anos sem o antigo proprietário do paletó cinza-claro, meu irmão Vingt Neto, para quem olho todos os dias, os dias todos, nas fotos. Colação de grau de minha filha Sandra Maria, uma vitoriosa, no curso de Fisioterapia.

Chorei, dividindo e misturando lágrimas. Tanta saudade, tanta alegria. E eu que misturo de tudo, amor e ódio, mal e bem, paixão e desespero, mulheres particulares e coletivas, ciúme e desprendimento, aqui, confuso entre as palavras, matéria-prima de meu suor cotidiano.

Encontrei meus pais na formatura, mais sofridos e mais alegres. Disse-me, o meu pai, que a vida passa ligeiro, sem tempo de a gente saber se fez tudo que nos cabia, o programado pelo destino, o esperado pelas pessoas. Terá o Galego concluído a missão dele ao se fazer sonho? A que universos remete o destino de Shanshan?

Reli um poema de Caio Muniz velho que nem a dor, 11 anos, "Sobre um Guerreiro Adormecido". Li versos nos olhos de minha filha, fotografei-lhe o sorriso, os abraços dos colegas, a assinatura no diploma, a força vital de um soneto fervilhante na cabeça, as mãos que no ocaso farão de meus olhos o silêncio.

As homenagens aos dois, feitas por seus respectivos amigos, vários comuns a ambos, partiam e remendavam-me o coração meia-vida que, a despeito das cicatrizes e das feridas ainda abertas, teima em trabalhar no ritmo das ilusões.

Pendurei o paletó cinza-claro no cabide ao fim daquela quinta-feira, 19 de julho de 2012, e me pus a escrever até agora, quando a exaustão me encontra alegre, triste, poeta, obrigando-me a encerrar este arremedo de crônica dedicado ao meu irmão e à minha filha, a saudade e a esperança que ao fim e ao cabo me enchem de humanidade.

sábado, 14 de julho de 2012

Os versos mais tristes


Na madrugada depois de tanto tempo, eu e o poeta Caio César Muniz, dividindo copos de tristeza, percebemos, angustiados, que a noite de Mossoró não é mais aquela.

Na realidade, assaltou-nos a dúvida sobre as supostas mudanças, se afetaram a noite em si ou os nossos olhares de boêmios de asas quebradas que talvez tenham perdido o jeito de paquerar as estrelas.

De qualquer modo, apenas a seresta da praça do Alto da Conceição, de frente ao casarão de Dedé do Sandubar, mestre-cuca, humorista e versejador fescenino, socorre a humanidade às segundas-feiras.

Fica também pertinho do mercado, aonde eu ia de bicicleta, oriundo do Rabo da Gata, para tomar suco de maracujá e comer pastéis. O velho prédio, apesar do abandono, consegue nos emprestar algum lirismo.

Talvez mercados sejam essencialmente líricos por amanhecerem as cidades, por suas formas arquitetônicas, as coisas dependuradas, as carnes expostas, as figuras que o povoam.

No tocante à povoação, há em todo mercado ao menos um louco, um bêbado, uma personagem folclórica, um contador de causos.

Espaço mais democrático é difícil encontrar, a não ser, como no lamentável episódio da Cobal, quando resolvem expulsar artistas em pleno 14 de março, Dia da Poesia, sob a acusação de estarem declamando poemas.

Caio Muniz continua bom de copo e afiado na palavra. Brindamos a Neruda – “Posso escrever os versos mais tristes esta noite” – e nos despedimos um do outro e da quase manhã, tristes, em frangalhos, distantes dos leitos sagrados das nossas amadas.


domingo, 8 de julho de 2012

Deus Morreu!


Desta vez não veio de Nietzsche. Foi meu filho Jerônimo Augusto, com a sabedoria dos seus três anos, quem disse a frase “Deus morreu!” ao se deparar com uma escultura em bronze de Jesus crucificado, horizontalmente fixada num dos túmulos do cemitério Novo Tempo.

Não menos perplexo, olhou-me de testa franzida, com aquele semblante de criança quando sente dor de sono, e tascou a pergunta incriminadora:

- Quem matou Deus?

- Sou inocente - defendi-me.

Em seguida, entrando na capela piramidal, não deixou de perceber a sujeira dentro e fora do lugar, especialmente no lago seco que rodeia o polígono:

- É lixo! Muito lixo! Eca!

A franqueza lembrou-me “O Rei Nu” ou a “Roupa Nova do Rei”, conto de Hans Christian Andersen em que dois falsários enganam um vaidoso soberano, vendendo a ele tecido invisível, que, segundo afirmavam, somente os inteligentes podiam contemplar.

O próprio monarca e os babões da coroa fiscalizavam o trabalho dos tecelões embusteiros, olhavam as tesouras ao vento e nada viam, evidentemente, mas, temendo serem rotulados de tolos, elogiavam o desenho, as cores, a maciez.

Depois, aconselhado por cortesãos, sua majestade resolveu inaugurar os trajes mágicos durante um desfile cívico, estilo o 30 de Setembro em Mossoró.

As pessoas ao longo do trajeto, com idêntico receio de serem chamadas de imbecis, elogiavam:

- Que linda é a nova roupa do rei!

- Que belo manto!

- Que perfeição de tecido!

- Nenhuma roupa do rei obtivera antes tamanho sucesso!

Um garoto, entretanto, com o moral que só a inocência confere ao ser humano, gritou o óbvio:

- Coitado! Ele está completamente nu! O rei está nu!

Nobres e plebeus caíram na real - perdão pelo trocadilho chinfrim - e o vaidoso governante, apesar do vexame, concluiu o percurso para não dar o braço a torcer, enquanto dois servos sustentavam no ar a calda do manto invisível. Em compensação, dirigiu-se ao palácio certo de nunca mais sair de lá, o que, de acordo com Andersen, voltou a acontecer em poucos e breves momentos.

Precisamos de um desses meninos para abrir-nos os olhos, a fim de que todos percebamos, na agonia azul dos que se acham deuses, a nudez de espírito de quem desgoverna coberto pelos mesmos fios de ouro de tolo que remuneram doidos para ofender quem não sente medo de enxergar.

E viva Jerônimo Augusto.