domingo, 27 de setembro de 2009

Eu de manhã



Tudo
que em minha boca cala
traduz o silêncio
posto à mesa
O copo
o uísque
o gelo
o cardápio do Lyon

Há palavras
excitando a tempestade
dicionário de sussurros
e gemidos
gritos de neon
arrepiando a flor da noite

Mas eu
infelizmente
insuportavelmente
terrivelmente
de manhã

sábado, 19 de setembro de 2009

Letra de médico



Aqui e acolá tenho sorte de assistir a Salomão Schvartzman apresentando suas crônicas na BandNews. Acabo de vê-lo, brilhante como sempre, a comparar o sacrifício dos farmacêuticos para traduzir as letras dos médicos e o esforço de Jean-François Champollion para decifrar, além do grego, as inscrições em egípcio demótico e em hieróglifos egípcios estampadas na pedra de Roseta.

Quem frequenta farmácias aprende a admirar a destreza dos seus balconistas. Ler determinadas receitas médicas pode exigir mais esforço mental do que os neurônios queimados por Champollion em busca de compreender o fraseado esculpido no bloco de granito negro descoberto pelas tropas de Napoleão, lá pras bandas de 1799, justo em Roseta, cidadela próxima a Alexandria.

Falo de cátedra, pois sou filho, bisneto, sobrinho e primo de médicos. Tornar-me-ia um deles não houvesse abandonado os estudos aos 16 anos, retomando-os muito posteriormente, já trabalhando em jornal. Para balancear, os avôs eram farmacêuticos, assim como o bisavô materno que também é trisavô paterno. Compliquei? Veja se melhora: mamãe é prima legítima do pai de papai.

Meu primo, digo, meu pai é homem culto, viajado, de muita leitura e texto irretocável, mas faz garrancho em letra de forma. No final dos anos 1970, ele me trouxe um presente e o guardou carinhosamente, deixando-me na cama um bilhete no qual indicava a localização do tal objeto. Precisei esperá-lo até o dia seguinte, após o plantão, porque a única coisa identificável era a assinatura.

Existem casos, no entanto, que comprometem a glória médica. Mestre Câmara Cascudo dizia que o agrônomo Vingt-un Rosado, maior editor brasileiro, tinha a letra ruim inclusive quando escrevia à máquina. Pedi-lhe certa feita que me “traduzisse” escritos seus. Depois de fitá-los com olhar grave, passando a mão no queixo, ele achou graça e disse: “Vamos pedir ajuda ao poeta Caio Muniz”.

sábado, 12 de setembro de 2009

Vai, Cid! ser frouxo na vida



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(Drummond)


Quando nasci, um anjo caído do Alto do Louvor, com as ideias temperadas nos vapores etílicos e a moleira rachada pelo sol de Mossoró, olhou-me no fundo dos olhos e disse: “Vai, Cid! ser frouxo na vida”. Não levei a sério o vaticínio, mas, logo na infância percebi sua eficácia quando outra criança, menorzinha inclusive, estapeou-me as bochechas rosadas no corredor do Colégio Diocesano, de frente à cozinha de Dona Raimunda, e eu corri em desespero clamando socorro.

O que entristecia até o fim da adolescência, período no qual todos querem ser “os caras”, transformou-se em orgulho na fase adulta. Deus me deu o privilégio de ser pacato e, como diz Mestre Tonino, com a sapiência dos velhos lobos do mar, ninguém derrota a própria natureza. O corpo flácido de musculatura não menos lânguida revela a indisposição deste humilde sujeito que o habita faz 37 anos, quase 38, para a troca de socos, pontapés e mais babaquices da ordem.

Ser assim, molenga militante, tem vantagens, incluindo integridade física e longevidade. Quem compra briga pode levar a morte de brinde, como ocorreu ao sobrinho do vaqueiro da antiga fazenda Mororó. Ouvi sobre suas aventuras de madrugada, escanchado nos mourões do curral, e pouco depois de o dia se espalhar na caatinga empoeirada, ouvi sobre seu passamento na ponta da faca de um sertanejo sereno que reagiu de susto, matando-o por medo de ser assassinado.

Coincidência temática: o radio toca a música “We Can Work It Out”, algo como “Podemos resolver esse problema”, de John Lennon e Paul McCartney. Os Beatles a interpretam enfatizando o trecho “Life is very short/ and there’s no time/ for fussing and fighting, my friend”. Perfeito: “A vida é muito curta/ e não há tempo/ para confusão e briga, meu amigo”. Dou um boi para não cair numa peleja e, se entrar por má sorte, a boiada para escapar sem hematomas.

Brigar não faz parte dos meus defeitos. Tirei a última prova segunda-feira, feriado da Independência, no momento em que um rapaz rico, funcionário de uma empresa importante, tentou intimidar-me com a cara feia e meia dúzia de ameaças, depois que fotografei o estrago feito por vândalos no portão da casa de minha família, na praia de Tibau, bem como placas de veículos suspeitos estacionados em nosso pátio para que, a partir delas, a polícia investigasse o crime.

A figura de sotaque carioca cismou que seu semblante desafiador ficara registrado nas imagens e invadiu nossa propriedade exigindo que eu as apagasse, pois se o seu rosto aparecesse em algum lugar, haveria consequências. O gesto impensado e desrespeitoso, passível de enquadramento em pelo menos dois artigos do Código Penal, provocou o internamento, com severa crise hipertensiva, da senhora que, em meio à cena dantesca, posicionou-se entre nós e o expulsou.

A propósito, nem sei se o valentão aparece nas fotos entregues à polícia. Espero, no entanto, que ele, enxergando-se nestas mal traçadas, reflita sobre seus arroubos juvenis e perceba que o poder da violência se nutre da fraqueza do espírito. Se em vez de paz o texto despertar ódio e o moço resolver concluir o serviço, apresso-me em adverti-lo, como se amigos fôssemos, para evitar constrangimentos: prepare-se porque eu corro muito. Com medo, nem bala me pega.

sábado, 5 de setembro de 2009

“Homem estupra menina com o dedo”



A advogada Marlene Otto Kummer telefonou-me certa vez, danada da vida. O Mossoroense estampara na capa o título “Homem estupra menina com o dedo”. Se não dizia exatamente assim, tinha esse sentido, e foi escrito pelo editor da época, Gilberto de Sousa, hoje na Gazeta do Oeste, que montara estratégia baseada em manchetes policiais fortes buscando tirar o jornal do ostracismo.

Tempos ruins, de vacas esqueléticas. Hoje, a cúpula palaciana boicota aberta, vergonhosa e impunemente a Rede Resistência, excluindo-a dos mapas da propaganda oficial, mas não consegue inviabilizá-la. Naquela época, além da baixa circulação, sofriam-se os efeitos da sanha dos governos municipal e estadual que, na base da ameaça direta, afastava até mesmo anunciantes privados.

A empresa amargou o maior boicote de sua história por defender quem agora a persegue por não conseguir silenciá-la nem com 30 dinheiros públicos. Ironia do Destino! O episódio é famoso, tornando desnecessária a exposição de detalhes. Registre-se apenas que, embora oprimido pelos poderosos de plantão, fecha não fecha, o velho diário impediu que o seu atual algoz acabasse esmagado.

Por outro lado, a polêmica ajudou. A briga, na qual se disse o que ninguém ousava pronunciar, por medo, e a estratégia policialesca do mestre Giba deram sangue novo ao periódico falido. As manchetes de crimes e acontecimentos bizarros, segundo o saudoso Luiz Cavalcanti Filho, impulsionavam as vendas de assinaturas e de exemplares avulsos nas bancas e pelas mãos dos jornaleiros.

Entre as pérolas da fase desesperadora, quando atrasos salariais alcançavam três meses, veio a tal menina que o sujeito estuprou com o dedo. Marlene Otto, leitora fiel e atenta, estava indignada com a frase. “Não existe estupro com o dedo!”, falou-me ela com jurídica razão, pois a ocorrência do referido crime, antes da última reforma do Código Penal, exigia penetração de pênis em vagina.

O simpático carão de Marlene entrou para o anedotário da casa. Acaba de ser lembrado porque o atentado violento ao pudor, crime do qual foi vítima a jovem da notícia, incorporou-se ao tipo penal do estupro, com a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Na ótica contemporânea, dedos podem consumar o estupro. O selinho que o turista italiano deu nos lábios da filha, em Fortaleza, estão jurando ser estupro. A polícia alencarina interpreta assim. Tudo é estupro. Homem pode ser estuprado. Mulher pode estuprar. Até parece que Giba furou o Código Penal com seu grande faro de repórter. Eita-pau, será que esse tipo de furo também é estupro?