sábado, 29 de abril de 2023

O São João mais antigo do mundo

Daqui a pouco chegam os eventos juninos, com Santo Antônio, São João e São Pedro. Quando criança, ficava deveras ansioso pelo período. Pela farra, pela comida, pela fazenda de meu avô, situada entre Mossoró e Felipe Guerra, margeando dos dois lados a BR-405. Na verdade, ele tratava como duas propriedades: a Mororó, do lado direito de quem segue rumo a Apodi; e a Tapuio, na banda esquerda da rodovia.

A ansiedade dizia menos com junho e mais com o gosto pelas coisas do sertão onde nasci e ainda vivo, até porque, ali na Mororó e na Tapuio, sem luz elétrica, as fogueiras eram acontecimentos corriqueiros, de relevante valor social. Ao seu redor, confraternizavam-se familiares, amigos, vaqueiros, caçadores. O seu calor, além de nos aquecer os corpos, servia de combustível para o café, o milho. Para as ideais.

Trago daquele tempo o gosto da culinária sertaneja. Assim, do mesmo modo, pratos como canjica, mucunzá, pamonha, cuscuz, picado, buchada, panelada, coalhada, não eram coisas apenas do meio do ano. Ainda hoje, aliás, quando pretende me encurralar, sem possibilidade de rejeição a convite, minha mãe usa o conhecimento privilegiado a meu respeito e anuncia, sem dó nem piedade: “Tem maxixe!”.

Não desejava falar sobre isso. Digo “falar” – embora escreva –, tentando fazer da escrita uma extensão da fala, para conversar com você. Porque o imagino aqui, diante dos olhos, enquanto as palavras se derramam na tela do computador. Peço desculpas. Minha mente é uma colcha de retalhos multicolores cosidos uns aos outros com a agulha do tempo e qualquer linhazinha vagabunda que a memória empresta.

A intenção era aproveitar o comecinho do sábado, antes das atividades pendentes na advocacia e na docência, para me entregar à crônica, porção que me resta do jornalismo, paixão da vida toda. E na crônica, artesanato da palavra que não se fez notícia, desejava escrever sobre o evento que a prefeitura de Assú realizou ontem – hoje são 29 de abril de 2023 – para receber alunos do colégio Marista, de Natal.

O Marista natalense, cujo padroeiro é Santo Antônio, homenageia uma cidade a cada ano. Assú é o lugar da vez, eleita em votação realizada na Internet, com mais de 20 mil votos. Eis o motivo da visita e da recepção que se fez em prosa e verso, com direito a apreciar painéis do compadre Gilvan Lopes e a arquitetura secular da Igreja Matriz, sem dizer da inenarrável sensação de chafurdar no Buraco do Prefeito.

Pelo que as vistas alcançaram, apesar das lentes arranhadas dos óculos, eram centenas de meninos e meninas, além de professores e professoras, lotando de azul e branco o Cine Teatro Pedro Amorim para ver tradições juninas do jeito que só o interior preserva. A plateia ficou extasiada diante da riqueza imaterial das atrações levadas ao palco, da prosa e do verso, da luz cheia de poesia que salta do olho do artista.

Impossível não recordar meu avô, a fazenda, o povo, os costumes. Não tem metrópole que afaste o sertanejo de mim. Igualmente inevitável lembrar do Santo Antônio Marista, onde estudamos meu pai, eu e um dos meus filhos. Quer dizer, eles estudaram: meu pai e meu filho. Eu apenas frequentei aulas na década de 1980 até ser convidado a me retirar. Fase ruim! Rebeldia sem causa que, aos 51, ainda custa caro.

E já que esta história virou memória, a música tema do São João de Assú, composta por minha amiga highlander Fernanda de Sá Leitão, interpretada por Dayane Martinelli e Priscyla Arrazo, arrancou-me outra reminiscência lá das brenhas cerebrais. Quando ouvi Dayane e Priscyla cantarem “Venha pra cá/ Venha curtir o São João/ É o mais antigo do mundo/ festa de fé e tradição”, variei de novo nas ideias.



Decerto, Assú não realiza o São João mais antigo do mundo. A expressão é, antes de tudo, um ótimo lance de marketing, afinal a tradição tem origem na Europa da Idade Média, na transmudação do louvor aos deuses pagãos da natureza e da fertilidade para o culto a santos católicos. Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra mantêm vivo o legado, inclusive com fogueira, balão, bandeirinha, culinária e tudo o mais.

Contudo, entretanto, todavia, com redundâncias, hipérboles e pleonasmos à parte, o lance de “mais antigo do mundo” fez a mente viajar ao jornal O Mossoroense da década de 1950, até uma crítica ao Mossoró Cidade Junina da época. Para o autor do comentário feito há cerca de 73 anos, o único São João de “mermo-mermo” das bandas do RN, o maior, melhor, mais tradicional, seria o da Atenas Potiguar.

Não entro na peleja nem por cem e uma cocada. Mossoró é minha terra, Assú a de minha proprietária. Ela não perde noite de junho nem que o Buraco do Prefeito esteja acochado igual fiofó de jia. Para mais, sou não de barulho. Sou de balcão. Aprecio beber enquanto converso miolo de pote e escrevo besteira em guardanapos, embora confidencie – não diga a ninguém! – que sufraguei Assú no pleito do Marista. 

***

Postscriptum ou P.S., para os íntimos. Minha doce proprietária, Clarisse Tavares, acaba de ler a crônica encerrada linhas atrás. Por determinação dela, contra a qual não cabe nem recurso, nem choro e nem vela, devo pedir desculpas e me retratar publicamente. Então, leitor amado, que se danem Espanha, Polônia, Portugal, Inglaterra e o resto do planeta. Assú tem o São João mais antigo do mundo. E ponto final!

Olha a cobra! Uh!


domingo, 2 de abril de 2023

Microconto nº 12

No mercado, às 5h00, cada bêbado ostenta sobre a própria mesa, a própria latinha de cachaça, a própria laranja, a própria solidão. Como fossem ilhas em homens, conversam com amigos tão íntimos que somente eles enxergam e ouvem. Quanta inveja, a minha! Queria um tantinho desse lirismo que faz a ponte entre o ébrio e o louco. Chega o poeta concreto, pede a cerveja que anuncia ser a última de um périplo iniciado ontem. O bardo ainda ameaça cometer uns versos de improviso, mas é dissuadido pela senhora de crucifixo de prata, que bebe algo em uma xícara de asa quebrada. O que será? O velho do cão maltês também comparece. “Vai pedir café”, imagino. Pede conhaque. Duplo, ainda por cima. Deu a hora de chegar.