sábado, 28 de maio de 2011

Era uma vez...



Pode dar cacete. Pode dar cadeia. Pode dar o inferno da pedra e a cachorra da moléstia. Direi mesmo assim que meu amigo, aquele sobre quem falei, sua paixão por uma musa sacana, deu-se finalmente bem. E muito bem. Conquistou a domadora de beija-flores e ameaça-me com detalhes, o sabor dos beijos, a temperatura dos abraços, para que eu os traduza em palavras.

Como se um pobre diabo metido a cronista, invejoso e doente dos cotovelos, fosse capaz de decifrar os caminhos da beleza em águas onde gregos e romanos naufragaram sob a égide dos vinhos de Massalia. Como se alguém, na condição de mero expectador, sentado na última linha de cadeiras do anfiteatro do mediterrâneo, pudesse descrever as formas da Cours Julien.

Cerro os olhos para não gritar, a boca para não ouvir, os ouvidos para não enxergar, as narinas para não perceber-lhe as formas, as mãos para não suspeitar do seu perfume, o sexto sentido para não morrer de tanta fome. Doutro modo, cairia da corda armada entre as paredes do buraco negro e escreveria alucinações, o calafrio de uma queda livre rumo ao desconhecido.

O tempo não está para crônica. Impossível quando o sujeito se encontra nada prosa. Outro soneto! Talvez me socorram aves noturnas, protetoras dos homens que se arremessam aos abismos, para que não quebre o pé ao tropeçar em sílabas poeticamente distraídas. Poema livre? Há séculos e séculos perdi a autonomia dos vendavais. Boêmio com asa quebrada não voa.

Mas prometi, depois de duvidar, e promessa de bêbado tem dono, a exemplo de outras coisas. O jeito então é expiar a pena através da pena, contando o que fiz questão de ignorar. Dizer algo, alimentar a imaginação dos leitores apreensivos. Uísque, pela caridade, e sem gelo, para brindarmos ao romance em construção e à história que passo a narrar. Era uma vez...

sábado, 21 de maio de 2011

O flautista de Bath



Logo que desci na Orange Grove e comecei a caminhar na lateral da Abadia de Bath, cidade encravada no Oeste da Inglaterra, ouvi o solo de flauta. Era um sábado, por volta das 13 horas, e fazia frio, algo em torno de zero grau, conforme atestava o termômetro do Ônibus.

Na Abbey Church Yard, onde se localizam as entradas da abadia e das termas romanas, estava ele, o flautista. Solitário, o velho alto, de cabeça e barbas brancas, tirava suaves canções da flauta de metal, fazendo gestos de reverência sempre que alguém depositava alguns centavos de libra no gorro de lã deixado ao chão. Na Inglaterra, isso é comum. Principalmente nas cidades turísticas, os artistas vão às ruas, sozinhos ou em grupos, batalhar a sobrevivência.

As pessoas param a fim de ver e ouvir. Se gostam, pagam. Outras seguem indiferentes ou apressadas. O malabarista que se apresentava a poucos metros, no mesmo pátio, atraiu bem mais atenção e dinheiro do que o flautista. O mímico vestido de manta azul, na Union Street, também. Mas nenhum deles demonstrava em seus respectivos ofícios a obstinação, o fôlego e a poesia do velho músico. Visitei as termas romanas, construídas no século I, que dão nome à cidade (Bath significa banho).

Na volta à praça, lá estava ele, firme e forte, transformando o frio em calor com a música, como se fosse o flautista de Hamelin, do conto de Joseph Jacobs, que conhecia melodias para todos os fins, talvez até para se defender das intempéries.
Caminhei nas ruas, observando monumentos e casas construídos no melhor estilo georgiano. Parei para fotografias. Para consultar mapas. Para olhar vitrinas. Para comer. Para alimentar pombos.

Ainda o inspirado flautista trabalhava. Adentrei a Bath Abbey, em cujo frontispício anjos pétreos escalam eternamente a escada de Jacó rumo ao céu. No interior, distrai-me apreciando vitrais que narram a vida de Cristo e tentando ler inscrições medievas.

Ao sair, às 4h30min, eis ali, impávido, o flautista. Coloquei, então, uma libra no gorro e parti levando a imagem do velho artista estampada nas retinas e o som da flauta gravado na memória.

sábado, 14 de maio de 2011

Que a morte seja o fim



Se eu morrer de morte morrida ou matada antes de concluir esta crônica, ninguém saberá o quanto desejei partir flutuando entre o real e a fantasia, pois o veneno dos desejos não deixa vestígio nas vísceras e o sorriso plantado nos cadáveres pelos necrotomistas mascara as tragédias dos indivíduos.

Apenas dois amigos íntimos, diante das circunstâncias banais de minha passagem, lembrarão da inveja que sinto de Ismália, que conquistou o privilégio de enlouquecer plenamente e, após tantos devaneios, pôde lançar-se de sua torre em busca da lua, afogando-se na imortalidade de um poema.

Só uma pessoa saberá do fascínio que me provoca Li Po, não pela grandeza do gênio, eleito entre 2.300 chineses o melhor poeta do seu tempo, mas pura e simplesmente pelo romantismo boêmio do ato final daquele homem que reclamava o direito de ver o luar refletido no fundo da taça em que ele bebia.

"Para lavar velhas mágoas,/ é preciso beber mil frascos", disse Li Po, antes de se afogar tentando, sob a inspiração do vinho, abraçar o reflexo da lua nas águas de um lago. Mergulhou imaginando encontrar na Via Láctea duas companheiras inseparáveis, sua sombra e a lua, imortalizando-se na própria lenda.

Não almejo a eternidade dos poemas ou das lendas, a exemplo de Ismália e de Li Po, este tão vivo 1.240 anos depois da morte. De preferência, que meu corpo seja cremado e as cinzas jogadas ao vento numa noite enluarada. Deus me livre da missa de corpo presente, de sétimo e trigésimo dias, deus me guarde daqueles epitáfios com letras de ouro.

A certeza da lembrança dos que me amam é o bastante para satisfazer minha vaidade, até porque, como bem lembra Tu Fu, outro brilhante poeta chinês, "Depois de dez mil, cem mil outonos,/ não terás outro prêmio que o prêmio inútil/ da imortalidade". Quero morrer na paz da loucura e que a morte seja o fim.

domingo, 8 de maio de 2011

Convertidos - uma crônica buarqueana



Se eu encontrar todo mundo de blusa amarela, poderei até imaginar que é você voltando pra mim, oito horas, na rua. Aí, quem sabe, vou beber e soluçar como se fosse náufrago, último, máquina, único. Juro, por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, que não amaldiçoarei o dia em que te conheci nem me trancarei no camarim.

Quando a banda passar, tocando coisas de amor, quando a marcha alegre se espalhar na avenida, mesmo que insista, não terei ilusões, acostumado com cada qual no seu canto, em cada canto uma dor. Vai a onda, vem a nuvem, cai a folha, passarão amigas secretas com perfumes baratos de Amsterdã. Quem dessas saberá meu nome?

Não, solidão, hoje não. Também não tenho planos de amanhã me retocar nesse salão de tristezas onde se penteiam mágoas, embora os olhos do meu bem olhem outro alguém quando me revelo e tento levar todos seus desejos. Ai, quanto descuido, o dessa moça, havendo tantos marmanjos querendo entrar nos reversos da cantiga.

Os sonhos que você contou pra mim, as fogueiras, os balões, os luares sertanejos, a jaqueira, a fruta no capim, a erva daninha no chão espezinhado. Eu era tão criança! E ainda sou. Ainda sou - oh, bela - um sonhador titã, tórax de superman, coração de poeta, quase cometendo um soneto para arrombar-lhe as janelas da alma.

Pode continuar fazendo papel de louca, arrasando meu projeto de vida, garantindo que é sempre minha. Saiba, contudo, que o mar perde o valor, o fim do mundo é opaco na cabeça de qualquer marujo, que tenho um jeito manso só meu. Acorda, amor, pode ter gente lá fora, batendo no portão. Tomara que seja só um pesadelo.

Além do mais, reparando bem, a bailarina tem pentelho, marca de vacina, pereba, irmão zarolho, calcinha velha. Imagino-me, desde logo, o artista no anfiteatro onde o tempo é a grande estrela, de quem arrebatam a garganta e que sorri porque lhe desenham contrapesos nos cantos da boca, triste para quem gozou de boa vida.

Agora falando sério, nada de esperar que a morte nos una. Melhor ser feliz. E passar bem. Nada de morrer de ciúme, de quase enlouquecer. Sei que a saudade é o maior tormento, é pior do que se entrevar, mas, apesar de você, de mim, amanhã será outro dia, porque, definitivamente, não somos mais aqueles dois pagãos.